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O direito do ser nascente

A Constituição Federal (CF) de 1988 traz, em seu preâmbulo, que os representantes do povo, reunidos em Assembléia Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução das controvérsias, promulgaram, sob a proteção de Deus, a Constituição da República Federativa do Brasil.

24/3/2008


O direito do ser nascente

Luis Marcelo Mileo Theodoro*

A Constituição Federal de 1988 (clique aqui) traz, em seu preâmbulo, que os representantes do povo, reunidos em Assembléia Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução das controvérsias, promulgaram, sob a proteção de Deus, a Constituição da República Federativa do Brasil.

No art. 1.º, a Carta Constitucional enumerou os princípios fundamentais do Estado Democrático. São eles: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Dentre esses princípios fundamentais – cidadania e dignidade da pessoa humana –, o legislador constitucional fez uma leitura desses direitos sob a exegese da pessoa existente, nascida, com personalidade civil. Em consonância com esses fundamentos está a disposição do art. 2.º do Código Civil (clique aqui), ao determinar que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

O art. 5.º da CF, por sua vez, em obediência a esses princípios fundamentais, estabelece que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, [...], à igualdade [...]", entre outros. Estabelece, ainda, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (inc. III); garante o direito à herança (inc. XXX); "nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]" (inc. XLV) e não haverá pena de morte, exceção aos casos previstos no art. 84, nem penas cruéis (inc. XLVII, "a" e "e").

Da narrativa do art. 5.º da Magna Carta, extrai-se o princípio da isonomia. Essa leitura de que o legislador infraconstitucional deve atentar que a adequada técnica legislativa é a da generalidade da lei, pois, se todos são iguais perante a lei, esta deve atingir e ser dirigida indistintamente a todos. A propósito ensinou Georges Ripert: "a generalidade da lei deve ser considerada como característica essencial para que exista um regime legal que constitua garantia contra o arbítrio. Tal generalidade assegura a igualdade, não permitindo ao legislador fazer, entre os homens, distinções que seriam estabelecidas por considerações religiosas, políticas ou profissionais. Como nós associamos a idéia de justiça à de igualdade, a regra geral aparece como sendo uma regra justa"1.

Essa idéia de igualdade deve ser fundada não no conceito de igualdade natural entre os homens, mas no reconhecimento da universalidade do homem2. Vale lembrar os ensinamentos de Rui Barbosa: "A regra de igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualdade os desiguais, na medida em que se desigualam. Nessa desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei de igualdade. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real"3.

Dessa forma, o princípio da isonomia revela uma igualdade relativa e não absoluta. Essa igualdade, no Direito moderno, alinha-se, indissoluvelmente, à personalidade, constituindo a mais elementar e sensível forma de realização da justiça. A isso ensina Maurice Hauriou: "A igualdade perante a lei deverá assegurar a todos le minimum de vie"4.

Nesse propósito se comportou o legislador ao editar o CC de 2002, em seus arts. 1.º e 2.º, dispondo que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1.º), e que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (art. 2.º). Faz tratamento igual da pessoa viva e da pessoa com "expectativa de vida" – nascituro.

Para se compreender do que está se tratando, necessário se faz analisar a intenção do legislador infraconstitucional ao utilizar a expressão "nascituro".

Tem-se por nascituro o produto da concepção que está por vir ao mundo, quer dizer, já está concebido, mas ainda permanece no ventre materno, ou seja, é o embrião ou feto que está no seu processo de desenvolvimento gravídico, não tendo sido retirado das entranhas maternas. É uma vida dependente. Assim, sua existência é uterina e sua vida é meramente biológica e não jurídica, embora detenha reflexos, pois é legalmente considerado sujeito capaz de direitos e obrigações na ordem civil. O ser nascente, entretanto, adquire a plenitude de seus direitos com o nascimento com vida.

As Ordenações e Leis do Reino de Portugal, de D. Felippe5, preceituavam que o início da personalidade se dava com a concepção. Esse entendimento perdurou até o advento da legislação pertinente ao casamento (Dec. n. 181, de 24 de janeiro de 1890), a qual preceituou que a personalidade se adquiria com a vida (extra-uterina). Esses pressupostos da personalidade foram repetidos pelo legislador do antigo CC de 1916 (clique aqui) e, agora, recepcionados pela nova legislação civil (CC de 2002). Assim, contempla-se o reconhecimento da pessoa natural com o nascimento com vida, resguardando, todavia, os diretos do nascituro.

O preceito legal civil (art. 2.º do CC), contudo, resguarda ao nascituro, em regra, no âmbito civil, o direito hereditário. Já no âmbito penal, o direito está fincado na expectativa da vida, por meio da garantia de ter seu processo gestacional resguardado, punindo aquele que, de maneira intencional, interrompê-lo. Nessa esteira, não há de se confundir vida e direito biológico com vida e direitos jurídicos. A lei penal assegura ao produto da concepção a não-interrupção da gravidez, mesmo que sob o estado potencial – vida –, o qual, invariavelmente, não alcançará a segunda hipótese (vida e direitos jurídicos) sem que se constate o nascimento com vida.

Esse amparo legal, em que pese haver certas situações nas quais possam se assemelhar à pessoa, não lhe dá conceito de personalidade, quer dizer, traduz-se a uma hipótese de potencial de direito. Para tanto, o legislador civil de 2002, em repetição ao CC anterior (1916), adotou a corrente naturalista6, ao repudiar o entendimento concepcionista7, reservando ao nascituro uma expectativa de direito, na lição de Clóvis Beviláquaara8 Von Liszt, o feto, não sendo pessoa, não pode ser titular de um direito qualquer, de um bem juridicamente protegido9.

Para Vicente Ráo, "a proteção dispensada ao nascituro, i.e., ao ser concebido, mas ainda não nascido, não importa reconhecimento nem atribuição de personalidade, mas equivale, apenas, a uma situação jurídica de expectativa de pendência, situação que só com o nascimento se aperfeiçoa, ou, então, indica a situação ou fato em virtude do qual certas ações podem ser propostas, ao qual se reportam, retroativamente, os efeitos de determinados atos futuros"10.

Trata-se, assim, de salvaguarda de direitos naturais e reais, mas, antes disso, da expectativa, os quais se transformarão em direitos, na sua integralidade, com o nascimento com vida, com sua conseqüente autonomia biológica. Evidencia-se que essa circunstância está, incontestavelmente, condicionada ao nascimento com vida, de que a gestação é um pressuposto. Do contrário, transformaria em definitiva uma situação provisória entre o biológico e o jurídico. Tal ilação não pode se ter por verdadeira, pois sequer se sabe quem será o titular definitivo desses direitos, aliada à circunstância da não-certeza, ainda, do nascimento com vida. A isso se conclui pela preferência à doutrina natalista.

Em outras palavras, a ordem civil assegura direitos em potencial ao nascituro, uma vez que condiciona o nascimento com vida para que se integralize o direito. No âmbito penal, esse direito se apresenta de imediato, pois basta a concepção, sem fazer qualquer ressalva da certeza de vitalidade do feto.

Como consentâneo, denota-se que ao nascituro assiste o direito a esta vida futura, amparada pelo direito, no sentido de não ter seu ciclo gestativo interrompido, por meios artificiais ou não, garantindo-lhe que o processo gravídico seja levado a bom termo, ressalvando as hipóteses legais de aborto, previstas no Código Penal (clique aqui).

Verifica-se, portanto, que essa garantia – ciclo gestativo – está em total conformidade com os princípios fundamentais constitucionais – dignidade da pessoa humana –, respaldado pela também garantia constitucional de direito à vida (art. 5.º, caput, da CF), e a repressão penal daqueles que afrontarem esse direito (arts. 124 a 126 do CP).

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1 SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo: Lejus, 1997. p. 36.

2 RANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de Direito Constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 1, p. 89.

3 BARBOSA, Rui apud SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. Op. cit. p. 37.

4 SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. Loc. cit.

5 PORTUGAL. Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1883. Livro 3, título 18, § 7.º e Livro 4, título 82, § 5.º.

6 Doutrina natalista: aceita por tratadistas e legisladores, essa doutrina não reconhece no feto qualidade de pessoa, a não ser por mera ficção jurídica.

7 Doutrina concepcionista: o feto, desde a sua concepção, tem personalidade jurídica, real e plena. É a tese da animação simultânea, sustentada por filósofos, legisladores e teólogos. Adeptos dessa teoria: J. J. da Silva Correia, Carrara, Pugliese, Teixeira de Freitas, entre outros.

8 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1956. v. 1, p. 170.

9 MAMMANA, Caetano Zamitti. O aborto ante o direito, a medicina, a moral e a religião. São Paulo: Letras, 1969. v. 1, p. 35.

10 RÁO, Vicente apud SPOLIDORO, Luiz Cláudio Amerise. Op. cit. p. 66.

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*Promotor de Justiça do Estado de São Paulo







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