Rejeição de contas municipais
Sérgio Roxo da Fonseca*
O argentino A. Gordillo estuda a questão com pena de grande mestre. Os atos do Legislativo, quando não legisla, são administrativos. Os atos do Judiciário, quando não julga e nem preenche lacunas do ordenamento jurídico, são atos administrativos. Os atos do Executivo, quando não legisla, são atos administrativos. Assim, tais decisões, vindas do Legislativo, do Judiciário ou do Executivo são atos administrativos.
Ora, todos os atos administrativos estão submetidos ao seu regime jurídico próprio, venham de onde vierem. O regime jurídico-administrativo é aquele que submete essas decisões ao princípio da mais rígida legalidade. Diz Stassinopoulos que o administrador público somente pode decidir segundo a lei, nunca contra a lei e nem mesmo além da lei, pois não tem poderes para colmatar lacunas do sistema legislativo. Portanto, ainda quando o ato administrativo nasça no leito do Legislativo, o seu responsável deve se render às regras da lei por ele próprio criada. Se todos são iguais perante a lei, o legislador também está atrelado a tal regra porque não é ele um desigual.
Segundo tal concepção, as decisões administrativas não poderão ser editadas, senão quando respeitados os princípios da plenitude da defesa, do contraditório e da motivação.
Neste sentido está o conteúdo da decisão do Ministro Celso de Mello, no Recurso Extraordinário nº 235.593, de 31 de março de 2004, originário de Minas Gerais. Como se trata de caso recente, nem mesmo chegou a ser publicado pela imprensa oficial.
O feito submetido a julgamento referia-se à rejeição das contas do Prefeito pela Câmara Municipal do que redundou na suspensão de seus direitos políticos.
Foi pronunciada a nulidade da decisão da Câmara Municipal, entendendo tratar-se de uma manifestação político-administrativa que, por tal razão, deveria submeter-se aos mencionados princípios da plenitude da defesa, do contraditório e da motivação.
Gordillo, na Revista de Direito Público nº 10, cita uma decisão inglesa que proclama ser desnecessária a positivação deste princípio por lei. Se Deus, ao proferir as duas primeiras sentenças condenatórias da história, ouviu seus réus, antes de condenar, por sobradas razões o juiz inglês tem de submeter a tal norma. Realmente, na Bíblia, Jeová, que conhece o passado, o presente e o futuro, dirige-se a Adão e a Caim, como se não soubesse de seus delitos, indagando pelas razões de suas condutas. Registre-se que Adão, naqueles antigos tempos, defendeu-se jogando o peso de sua culpa nas costas da sua mulher.
O princípio do contraditório é aquele que impõe ao acusador o dever de previamente notificar o acusado reconhecendo o seu direito de rechaçar a imputação usando todas as armas permitidas em direito. O tema é examinado no livro Teoria Geral do Processo escrito por Cândido Rangel Dinamarco e outros.
O princípio da motivação exige que todas as decisões explicitem os motivos de seu convencimento. O julgamento deve exteriorizar um raciocínio lógico, segundo o qual as contas deverão ser rejeitadas em face dessa ou daquela ilicitude, assim como dois mais dois são quatro. Aplica-se o princípio da subsunção proibindo-se decisões viciadas pela perseguição política e antidemocrática.
Inúmeros prefeitos foram vítimas de suspensão de direitos políticos face à rejeição de suas contas pelas Câmaras Municipais, sem que lhes fossem respeitados os direitos enunciados pelo julgamento do Supremo Tribunal Federal.
Tal orientação jurisprudencial homenageia as tradições do Pretório Excelso, como também lança luzes sobre a natureza jurídica das decisões político-administrativas das Câmaras Municipais.
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* Advogado, professor da UNESP e Procurador de Justiça de São Paulo, aposentado
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