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O Estatuto do Idoso e o transporte rodoviário de passageiros

O Estado brasileiro, com a Constituição de 1.988, fez clara opção por privilegiar o cidadão, garantindo-lhe direitos individuais apostos, por exemplo, no artigo 5º. da Magna Carta. Não por menos, o texto constitucional aprovado pela Assembléia Constituinte ficou conhecido como a “Constituição Cidadã”.

25/6/2004

O Estatuto do Idoso e o transporte rodoviário de passageiros


Sergio Roberto Maluf*

O Estado brasileiro, com a Constituição de 1.988, fez clara opção por privilegiar o cidadão, garantindo-lhe direitos individuais apostos, por exemplo, no artigo 5º. da Magna Carta. Não por menos, o texto constitucional aprovado pela Assembléia Constituinte ficou conhecido como a “Constituição Cidadã”. A família, base da sociedade desde a época da “cidade antiga” relatada na obra de Fustel de Coulanges que leva o mesmo nome (a obra relata a evolução da sociedade greco-romana descrevendo com rigor científico a família e sua importância na sociedade da época), mereceu especial atenção do legislador constituinte. O Capítulo VII do Título VIII (Da Ordem Social) é voltado a determinar e regrar a existência da família, da criança, do adolescente e do idoso.

Tardiamente, e séculos depois se comparados com os povos orientais, descobrimos o valor e a atenção que devemos, como sociedade, ao idoso. O idoso, chefe da família relatada na Roma Antiga por Coulanges como detentor de poderes enquanto vivo e idolatrado como divindade após sua morte, não gozava, entre nós, de privilégios ou garantias, quer seja como benesse da sociedade, quer seja – o que parece mais correto – como justa retribuição ao tempo dedicado na construção desta sociedade.

Festejado, assim, o diploma legal vazado na Lei 10.741/2003, denominado “Estatuto do Idoso”. A Lei, da forma como se nos apresenta, veio contemplar camada social que há muito reclamava seus direitos e, mais, buscava concretização do disposto no art. 230 da Constituição Federal: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. Assim, pacífico é que a Lei 10.741/2003 encontra fundamento no preceito constitucional, como de regra devem ser todas os dispositivos legais inseridos no nosso ordenamento jurídico.

Inovação, porém, apresentou o Estatuto do Idoso: o benefício no transporte rodoviário interestadual de passageiros, reservando aos idosos (maiores de 60 anos pelo disposto no art. 1º.), nos termos de legislação específica, 2 vagas gratuitas por veículo para aqueles que comprovem renda igual ou inferior a 2 salários-mínimos. Concedeu mais o legislador infraconstitucional: o desconto de 50% no valor da tarifa para os idosos que não puderem usufruir da vaga-cortesia e igualmente comprovarem renda igual ou inferior a 2 salários-mínimos. O parágrafo único do mesmo art. 40, dispôs: “Caberá aos órgãos competentes definir os mecanismos e os critérios para o exercício dos direitos previstos nos incisos I e II”.

Muito se tem abordado o tema em sede doutrinária. A matéria tem sido objeto de constante cobertura jornalística. Inevitável, ainda, o assunto ser levado “às barras da justiça”. Destarte, uma reflexão a mais pode contribuir para boa condução da necessária sedimentação doutrinária.

O transporte coletivo rodoviário interestadual de passageiros é, por força da mesma Constituição que inaugurou o Estatuto do Idoso, serviço público de competência da União (art. 21, XII, “e”), podendo o Poder Público ofertá-lo explorando-o diretamente, ou mediante autorização, concessão ou permissão (art. 21, XII). Reza ainda o art. 175 da “Carta Cidadã” que ao Poder Público incumbe, na forma da lei, a prestação dos serviços públicos, executados diretamente ou ainda que operados sob o regime de concessão ou permissão. Optando pela concessão, regramento atual utilizado pela União para exploração do serviço público em discussão, inevitavelmente ficarão afetos à legislação infraconstitucional a União e o concessionário, particular responsável pela sua execução. É mandamento constitucional que a norma infraconstitucional urgida deverá ter como objeto o regime dos concessionários, o caráter (público) especial de seu contrato, sua prorrogação, os direitos dos usuários e a política tarifária.

Após o advento da Constituição, em 1988, os concessionários conheceram, em Fevereiro de 1.995 com a edição da Lei nº. 8.987, a norma ordinária que disciplinaria, entre outras coisas, a necessária política tarifária,. Deste diploma, verdadeiro “Estatuto do Concessionário” prestador de serviço público de transporte interestadual, podemos extrair, com rigor, o disposto no art. 9º., § 4º.: “Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração” (grifamos). Qualidade imprescindível à prestação do serviço público pelo particular concessionário é a justa remuneração tarifária capaz de fazer frente às despesas advindas do serviço prestado.

Mais. A Lei nº. 9.074/95, veio complementar aquele “Estatuto do Concessionário”, dispondo de forma inequívoca em seu art. 35: “a estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente, fica condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato” (grifamos). Cabe, ainda, reconhecer, antes de discussão qualquer sobre o assunto, quem é a figura do “Poder Concedente”, aclamada nos artigos das duas normas precitadas.

A União, quando incumbida de realizar um serviço público, só pode fazê-lo através daquele poder encarregado de executar funções previstas nos ordenamentos jurídicos. Esta função está, então, intimamente ligada ao chefe do executivo, Presidente da República. A Constituição Federal, em seu art. 61, § 1º., II, “b”, disciplina que, para leis que disponham sobre serviços públicos, a iniciativa é exclusiva do Presidente da República. Não parece merecedora de grande exercício intelectual a conclusão de que o Poder Concedente dos serviços públicos será o Poder Executivo, detendo o seu chefe, a prerrogativa de submeter, de forma privativa em sua origem, normas a serem apreciadas pelo Legislativo.

O Estatuto do Idoso, ao disciplinar o transporte de passageiros interestadual, alvoroçou-se em campo privativo do Poder Executivo, ou seja, tomando a iniciativa de proposição legislativa dos regramentos a serem impostos ao serviço público. Torna-se assim, a proposta do Deputado Paulo Paim, de 1997, motivo de afronta ao texto constitucional no tocante ao serviço público de transporte interestadual de passageiros. Mas, ainda que se possível fosse relevar a matéria, em nome da “dívida” da sociedade para com os idosos, defrontaríamos com aquilo que já denominamos ser o “Estatuto do Concessionário”.

O sistema de transporte interestadual de passageiros remunera-se através da tarifa prevista nas Leis nº. 8.987/95 e 9.074/95. Os diplomas legais, como já demonstrado, são claros em requerer concomitante alteração quando afetado o equilíbrio econômico-financeiro ou previsão em lei da necessária revisão tarifária. O legislador, no afã de dar dignidade aos milhões de idosos brasileiros, representados até por simpáticos casais de velhinhos em telenovelas, atropelou aquele que deveria ser o diploma legal correto: o que não avançasse em matéria privativa do Executivo ou não dispusesse norma em confronto com outras matérias de mesmo nível hierárquico da lei ordinária em tela.

A matéria, polêmica como toda argüição de direitos individuais quando da situação fática, mereceu análise já conhecida do judiciário. Assim, tem-se conhecimento de julgados, em sede de Ação Civil Pública, com antecipação de tutela, figurando como requeridos os concessionários do serviço público no âmbito da justiça estadual. Oras, coroando de êxito os julgados da esfera estadual a Constituição Federal será, sim, letra morta. O art. 109 ao definir a competência dos juízes federais cita, entre várias, julgar e processar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes. Como já demonstrado, a União é o Poder Concedente, independendo do concessionário decidir a forma, modos e tempo exato da implantação de uma gratuidade. Ao concessionário é lícito prestar o serviço na forma que a União lhe imponha. No caso do Estatuto do Idoso, correta e legalmente amparada é a posição dos concessionários ao aguardar que a União se manifeste, primordialmente, sobre a necessária revisão tarifária, possibilidade única de não se onerar o operador serviço. Após, que defina a sistemática de operação da legislação. A causa apresenta-se assim como que endereçada a União, sendo ela parte legítima para figurar em juízo da instância federal, incompetentes os juízos estaduais.

O não cumprimento do disposto no Estatuto do Idoso para o transporte rodoviário interestadual desponta-se, assim, como conseqüência da afronta ao texto constitucional e à legislação vigente de mesma hierarquia. A (necessária) regulamentação, dita por muitos como não importante ou não imprescindível para aplicação imediata da Lei, permitiria, entre outros, a justa aplicação do benefício. Não há, por exemplo, qualquer regulamento a conceder a gratuidade para passageiros que embarquem em meio ao trajeto interestadual realizado. Teoricamente, e isto é possível, privilegiados seriam aqueles que embarcam no início do trajeto, já que sempre teriam à sua disposição dois assentos gratuitos.

Os idosos ao conquistarem seus direitos, ainda que de forma tardia, merecem todo o nosso respeito. As normas, tal como postas, também. O mesmo ordenamento jurídico que ampara ao idoso ampara também ao concessionário. E, após tantos anos vendo seus direitos relegados a terceiro plano, não será agora que nossos bons velhinhos farão de uma ilegalidade a bandeira de sua causa.
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* Acadêmico de Direito do 5º. ano da Faculdade de Direito
da Universidade Tuiuti do Paraná






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