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A avaliação ambiental dos produtos da biotecnologia

Uma lei votada em Congresso pretendeu regular por inteiro uma determinada atividade. A Lei nº 8.974 de 5.1.1995 (“Lei de Biossegurança”) tem a pretensão de disciplinar a biotecnologia no Brasil, sob todos os enfoques, inclusive sob o ponto de vista da segurança ambiental.

22/6/2004

A avaliação ambiental dos produtos da biotecnologia


Antonio José L.C. Monteiro*

A Lei de Biossegurança e a intervenção do Poder Judiciário

Uma lei votada em Congresso pretendeu regular por inteiro uma determinada atividade. A Lei nº 8.974 de 5.1.1995 (“Lei de Biossegurança”) tem a pretensão de disciplinar a biotecnologia no Brasil, sob todos os enfoques, inclusive sob o ponto de vista da segurança ambiental.

A Lei de Biossegurança, como lei específica a derrogar as normas de caráter geral, atribui à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, o poder discricionário de avaliar se determinados produtos e atividades da biotecnologia são ou não passíveis de causar impacto no meio ambiente. Para essa avaliação, a CTNBio conta com integrantes do próprio Ministério do Meio Ambiente.

Mas assim que a CTNBio concluiu a análise do primeiro produto da biotecnologia que lhe foi submetido (a soja Roundup Ready) houve recurso ao Poder Judiciário, por parte do IDEC e do Greenpeace, sob o pretexto de que a Constituição1 exige estudo prévio de impacto ambiental de qualquer atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental, e a CTNBio não fez essa exigência em relação à soja Roundup Ready. A demanda expressa inconformismo com o fato de a Lei de Biossegurança autorizar a CTNBio a avaliar se há ou não potencial de degradação ambiental na atividade que lhe é submetida, papel que a legislação ambiental em geral confere ao IBAMA.

A ação não concebe que a Constituição Federal, ao impor ao Poder Público que exija estudo prévio de impacto ambiental de atividades potencialmente impactantes, está de qualquer forma delegando ao Poder Público que avalie quais atividades têm esse potencial de causar impacto ambiental, para exigir dessas atividades a realização do estudo prévio de impacto ambiental. Como a Constituição não exige de todas atividades a realização do estudo prévio de impacto ambiental, está claro que cabe a alguém decidir quais atividades devem e quais atividades não devem realizar esse estudo prévio de impacto ambiental.

A ação ajuizada também não concebe que a CTNBio possa ser o Poder Público a que se refere a Constituição, com a prerrogativa de avaliar se a atividade possui ou não potencial de causar impacto ambiental, para efeitos de exigir ou não o estudo prévio de impacto ambiental. E de qualquer modo, a ação pressupõe que a CTNBio errou ao dispensar a soja transgênica da realização do estudo de impacto ambiental.

Foi afinal concedida liminar sustando a eficácia do parecer da CTNBio que aprovou a soja Roundup Ready; mais ainda, condicionando a liberação de quaisquer espécies geneticamente modificadas à realização de estudo prévio de impacto ambiental. Essa liminar judicial está em vigor desde fins de 1998, ainda no aguardo de conclusão do julgamento das apelações interpostas, provocando o que se convencionou chamar de moratória à Biotecnologia no Brasil.

Deu alguma esperança o voto proferido no início de 2002 pela Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, da Quinta Turma do Tribunal Federal Regional da 1a Região, restabelecendo a competência legalmente conferida à CTNBio para avaliar ambientalmente os produtos da biotecnologia. O julgamento no entanto está suspenso desde então, a espera dos votos dos demais julgadores.

A Resolução CONAMA nº 305

A Medida Provisória 2137, de 28/12/2000, tentou estabelecer uma solução de consenso, conferindo ao Ministério do Meio Ambiente a função de “emitir as autorizações e os registros (...) referentes a produtos e atividades que utilizem OGM destinado a uso em ambientes naturais, na biorremediação, floresta, pesca e áreas afins, de acordo com a legislação em vigor e segundo regulamento desta Lei (Artigo 7o., parágrafo 6o)”.

Mas o Ministério do Meio Ambiente, através do CONAMA, não se restringiu a autorizar e registrar os OGM’s destinados a uso em ambientes naturais, biorremediação, floresta, pesca e áreas afins. O CONAMA pretendeu licenciar todos os organismos geneticamente modificados e todas as atividades correlatas, como se a CTNBio simplesmente não existisse.

A Resolução CONAMA nº 305, de 4/7/2002, impõe uma sistemática de licenciamento altamente restritiva e extenuante aos produtos e atividades vinculados à biotecnologia. Todas as fases de desenvolvimento de um organismo geneticamente modificado para uso agrícola (pesquisa; plantio experimental; multiplicação de sementes; plantio comercial) foram contempladas com registro, licenciamento e elaboração de estudo de impacto ambiental junto ao IBAMA, em um procedimento seqüencial que promete demorar anos a fio.

O ideário da Lei de Biossegurança foi claramente subvertido pelo CONAMA. Ao invés de a CTNBio avaliar se uma atividade é ou não passível de causar degradação ambiental e só no caso positivo recorrer ao IBAMA para a avaliação do impacto; é o IBAMA que avalia se a atividade é ou não passível de causar impacto ambiental, usurpando a competência da CTNBio por tornar absolutamente inócua a sua análise ambiental. Agora sim se está diante de um claro vício de inconstitucionalidade, porquanto não se altera uma lei por resolução de um órgão ministerial.

O fato consumado à revelia da norma e o Projeto de Lei em tramitação

Enquanto isso o país foi atropelado pelo plantio arraigado da soja (sete safras já) com expressiva redução de custos de plantio (em torno de R$ 300/ha) e que jamais registrou qualquer traço de efeito negativo ao meio ambiente ou à fertilidade da terra, tão cara ao agricultor. À falta de outro motivo real a recomendar a destruição da soja clandestina, prevaleceu o interesse econômico. A comercialização da safra de soja transgênica colhida em 2003 foi autorizada pela Medida Provisória nº 113, convertida na Lei nº 10.688/03; seguindo-se a Medida Provisória nº 131, hoje Lei nº 10.814/03, para autorizar o plantio de soja transgênica e a comercialização da colheita até 31/5/2005.

Em meio à repercussão causada pela autorização do plantio de soja transgênica promovido pela Medida Provisória 131, Comissão formada pelo Governo elaborou projeto de uma nova Lei de Biossegurança, que embora formalmente tenha resultado de uma composição entre pensamentos antagônicos do próprio Governo, espelhou muito mais a corrente de pensamento favorável à continuidade da moratória imposta à biotecnologia no Brasil.

No entanto, um substitutivo preparado pelo Deputado Aldo Rebelo aperfeiçoou o projeto original, preconizando sistemática que poderia assim ser resumida:

(i) a CTNBio avalia, de forma conclusiva e em instância única, as atividades de pesquisa;

(ii) para liberação comercial de OGMs, quando a CTNBio concluir que não há potencial de degradação ambiental, a análise técnica da CTNBio é vinculativa em relação a qualquer outro órgão e entidade, incluindo os órgãos que compõem o Ministério do Meio Ambiente. Mas, a liberação comercial fica ainda sob a dependência de análise política (conveniência e oportunidade sócio-econômicas e interesse nacional) do Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS;

(iii) para liberação comercial de OGM, quando a CTNBio concluir que há potencial de degradação ambiental, a análise técnica é então delegada aos órgãos do Ministério do Meio Ambiente.

Lamentavelmente, novo substitutivo, desta feita do Deputado Renildo Calheiros, voltou a privilegiar a idéia de limitar a competência exclusiva da CTNBio à fase de pesquisa com OGMs, subordinando a liberação comercial não só à análise da CTNBio mas também ao licenciamento pelo órgão competente do Ministério do Meio Ambiente. O substitutivo do Deputado Renildo Calheiros, em síntese, reforça o entendimento de que o caráter vinculativo do parecer técnico prévio conclusivo da CTNBio se restringe ao âmbito da pesquisa.

O substitutivo do Deputado Calheiros foi aprovado na Câmara e encontra-se em tramitação no Senado, onde também aguarda a desobstrução da pauta do Plenário, trancada pelas várias Medidas Provisórias já com prazos vencidos a serem votadas.

Considerações Finais

É improvável que por Medidas Provisórias para cada plantio e colheita, ou por leis inspiradas pela idéia de moratória à Biotecnologia, o Governo de fato consiga erradicar dos campos a soja transgênica. É mais realista antever que mais ou menos dia ninguém levará a sério um risco de dano que o Governo decide nos expor este ano, mas não no ano que vem. A todos acabará ocorrendo que se essa soja modificada pode ser consumida este ano e no próximo, é de se supor que seja segura em termos ambientais e alimentares, devendo então o seu plantio ser liberado de vez para as próximas safras. Até porque o Governo atestou expressamente à China a segurança alimentar e ambiental da soja que exportamos àquele país, ao admitir que pode conter traços de soja transgênica.

É difícil em última análise entender por que uma planta transgênica cultivada desde 1996 em milhões de hectares2 em vários países e consumida por milhões de pessoas, monopoliza todas as preocupações, mesmo sem um único registro de danos ao meio ambiente ou à saúde de quem quer que seja.

Não é natural que o CONAMA só regule a grosso modo plantas transgênicas, transmitindo a falsa impressão de que organismos geneticamente modificados para uso humano, farmacológico, domissanitário e etc., sejam de interesse exclusivo do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Ao leigo parece inconcebível que uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz de controle de doenças em animais silvestres, por exemplo, não desperte no Ministério do Meio Ambiente o mesmo interesse que o risco de disseminação da soja transgênica.

Também não é razoável a falta de interesse, dos que alardeiam os riscos ambientais da soja transgênica, em avaliar os impactos ambientais que supostamente estariam sendo causados nas áreas em que ocorreu o plantio arraigado que justificou a edição das Medidas Provisórias. O plantio da soja transgênica em tão larga escala que forçou o Governo à edição das Medidas Provisórias, poderia servir também para finalmente empreender-se uma avaliação ambiental, tendo por amostragem privilegiada a enorme área plantada com soja modificada, que por certo traz grau de diversificação suficiente para um estudo de impacto ambiental.3

Ainda uma outra opção talvez fosse considerar as Medidas Provisórias como direito superveniente a alterar a relação jurídica sub-judice4, acarretando a perda do objeto da ação. Ou seja, como a ação judicial se estabeleceu em torno de uma determinada legislação, a alteração dessa legislação tornou sem sentido a ação judicial. Extinta a ação judicial, voltariam a prevalecer a Lei de Biossegurança, a competência da CTNBio e a justa perspectiva de que o país que já foi líder na pesquisa agropecuária finalmente disporá dessa moderna ferramenta de produção, a Biotecnologia.

A quem interessar possa: enquanto perdura a moratória, o plantio da soja ilegal vinda da Argentina, sem o controle sanitário do Governo, literalmente quebrou a indústria de sementes fiscalizadas no Rio Grande do Sul. A Medida Provisória 131 (Lei nº 10.814/03) aprovou o plantio das sementes salvas Nn pelos agricultores nas lavouras formadas por sementes contrabandeadas do país vizinho; mas continua proibido o plantio de sementes de soja transgênica da Embrapa, Codetec, Pioneer e outras já registradas no Ministério da Agricultura e adaptadas às condições brasileiras.
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1 Art. 255. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

IV. exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.

2 Na Argentina 90% da soja plantada é transgênica; nos EUA a soja transgência ocupa mais de 70% da área plantada. Esses dois países, e mais o Brasil, exportam em torno de 15 milhões de toneladas de soja transgênica por ano somente para a Europa.

3 É possível sustentar ter ocorrido caso típico de EIA negativo, ou seja, evidências de não ter ocorrido impacto ambiental. A contrario sensu, tivesse ocorrido o impacto tão temido pelos que inspiram a moratória à biotecnologia, está claro que o IBAMA e os demais órgãos de fiscalização ambiental já teriam tomado as devidas providências.

4 Art. 462 do Código de Processo Civil.
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*Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2004. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS









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