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Defesa do domicílio: exercício de um direito ou inexigibilidade de conduta diversa?

O STF, no RE n°. 460.880-RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 25.9.07, acertadamente, restabeleceu sentença de primeiro grau que havia absolvido agente que, ao defender a inviolabilidade noturna do domicílio, acabou não atendendo oficial de justiça num sábado à noite, que pretendia proceder à intimação do seu cônjuge

22/11/2007


Defesa do domicílio: exercício de um direito ou inexigibilidade de conduta diversa?

Luiz Flávio Gomes*

O STF, no RE n°. 460.880-RS (clique aqui), rel. Min. Marco Aurélio, j. 25.9.07, acertadamente, restabeleceu sentença de primeiro grau que havia absolvido agente que, ao defender a inviolabilidade noturna do domicílio, acabou não atendendo oficial de justiça num sábado à noite, que pretendia proceder à intimação do seu cônjuge. A ementa do julgado diz o seguinte:

"Por entender caracterizada a ofensa ao art. 5°, XI, da CF - clique aqui - ("a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;"), a Turma deu provimento a recurso extraordinário para, reformando acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, restabelecer a sentença que absolvera o recorrente por inexigibilidade de conduta diversa. No caso, a Corte a quo reputara configurado o crime de resistência, uma vez que o recorrente, desprezando a existência de mandado judicial expedido nos moldes do § 2º do art. n°. 172 do CPC (clique aqui) — que permite, em situações excepcionais e mediante autorização expressa do juiz, a citação, em domingos e feriados, ou nos dias úteis, em horário diverso daquele estabelecido no caput —, desacatara, mediante violência, oficial de justiça que pretendia, num sábado à noite, ingressar no domicílio daquele para intimar o seu cônjuge. Aduziu-se que o acórdão impugnado colocara em plano secundário a defesa do próprio domicílio e, portanto, o esforço a evidenciar, conforme registrado na sentença, a inexigibilidade de conduta diversa. Ademais, asseverou-se que a Constituição preconiza a inviolabilidade noturna do domicílio, pouco importando a existência de ordem judicial (...)".

A absolvição de primeira instância, como se vê, fundou-se na inexigibilidade de conduta diversa, que é causa de exclusão da culpabilidade. A culpabilidade, que nasceu puramente psicológica (teoria causalista), converteu-se em psicológico-normativa (neokantismo) e, depois, com Welzel (finalismo), em puramente normativa, dela fazendo parte a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude assim como a exigibilidade de conduta diversa. Há muita polêmica sobre se ela é predicado do crime ou só juízo de reprovação (fora do crime). Pensamos que a segunda corrente é mais acertada. De qualquer maneira, qualquer que seja a posição adotada, a questão em apreço (defesa da inviolabilidade noturna do domicílio) jamais deveria encontrar amparo técnico na categoria da culpabilidade.

Quem defende a inviolabilidade do domicílio, no período noturno (período que vai das 18 às 6h), exerce um direito proclamado na CF (art. 5º, inc. XI). O exercício regular de um direito, na modelação antiga do Direito penal, constituía causa de exclusão da antijuridicidade. Na atualidade, depois do funcionalismo teleológico de Roxin, que foi complementado por Zaffaroni e ligeiramente ajustado por Frisch, o exercício de um direito configura causa de exclusão da tipicidade (cf. GOMES, L.F. e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, A., Direito penal, São Paulo: RT, 2007, p. 2228 e ss.), não da antijuridicidade.

Explica-se: a tipicidade penal, que agora passou a ser enfocada em uma dupla dimensão (formal e material), foi enriquecida pela teoria da imputação objetiva de Roxin, que se funda em dois critérios: criação ou incremento de riscos proibidos relevantes e imputação objetiva do resultado. Quem cria ou incrementa risco proibido (ou seja: risco juridicamente desaprovado) começa a praticar um fato materialmente típico. O critério da criação de riscos proibidos é muito relevante no atual Direito penal. Dele já não podemos abrir mão. Resta saber se ele constitui uma questão de imputação objetiva (Roxin) ou constituiria fundamento de um juízo autônomo dentro da tipicidade material (Frisch). Nós acompanhamos a segunda corrente.

Daí se infere o seguinte: quem cria ou incrementa risco proibido relevante dá início à tipicidade material. Ao contrário, quem cria risco permitido ou autorizado ou fomentado ou tolerado pratica conduta juridicamente não desaprovada, ou seja, não dá início à tipicidade material. Em outras palavras: não pratica uma conduta materialmente típica. A defesa da inviolabilidade noturna do domicílio constitui exercício de um direito, isto é, há norma permissiva nesse caso. Note-se que o próprio § 2º do art. n°. 172 do CPC, embora autorizando atos em horários excepcionais, ressalva o art. 5º, inc. XI, da CF. E quem pratica uma conduta permitida (aliás, no caso, permitida pela própria Constituição) não cria risco proibido, ao contrário, o risco nessa situação é autorizado. Não há que se falar, então, em desaprovação da conduta (não há desvalor da conduta). Esse é o novo fundamento para a absolvição do agente que exerce um direito: não há tipicidade material (o fato é atípico).

A essa mesma conclusão chega o Professor Zaffaroni, mas valendo-se de um outro caminho, que é o da tipicidade conglobante. A regra básica da sua teoria é a seguinte: se existe uma norma no ordenamento jurídico que aprova uma conduta, o que está aprovado por uma norma não pode estar proibido por outra. Zaffaroni, destarte, absolveria o agente (que defendeu o domicílio) por falta de tipicidade conglobante. Nós o absolveríamos por falta de tipicidade material (falta do desvalor da conduta). Por um ou outro caminho se chega, entretanto, à ausência da tipicidade (não da antijuridicidade ou da culpabilidade).

O exercício de um direito (ou seja: a realização de uma conduta permitida por uma norma) não pode ser levado para o âmbito da reprovabilidade (da culpabilidade). É uma questão relacionada com o injusto penal, ou seja, ela encontra melhor adequação já mesmo no âmbito da tipicidade.

Como se vê, as técnicas da ciência penal alteraram-se profundamente depois do advento do funcionalismo teleológico de Roxin (1970), que foi complementado pelo funcionalismo reducionista de Zaffaroni (década de 80), assim como criticado pela teoria da desvaloração de Frisch (década de 90). O desconhecimento de todas essas novidades dogmáticas ainda é muito grande. Todas essas discussões estão apenas começando no Brasil. Mas precisamos conhecê-las. São mais lógicas e mais adequadas e contam com aptidão para solucionar (de modo mais razoável) muitos problemas dentro do Direito penal. Não se trata de caminho fácil, de qualquer modo, não é tão complicado quanto parece e vale muito a pena ser percorrido.

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Fundador e Coordenador Geral da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes







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