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O caso do crédito de imposto brasileiro sobre juros pagos a investidores franceses

Muitos brasileiros não sabem, mas uma grande discussão envolvendo o Brasil tem se destacado e dividido opiniões no meio jurídico francês desde 2006. Trata-se da aplicação do crédito de imposto referente a certos juros brasileiros, previsto no tratado internacional para evitar a dupla tributação entre Brasil e França.

5/11/2007


O caso do crédito de imposto brasileiro sobre juros pagos a investidores franceses

Vanessa Arruda Ferreira*

Muitos brasileiros não sabem, mas uma grande discussão envolvendo o Brasil tem se destacado e dividido opiniões no meio jurídico francês desde 2006. Trata-se da aplicação do crédito de imposto referente a certos juros brasileiros, previsto no tratado internacional para evitar a dupla tributação entre Brasil e França1.

Uma decisão proferida pelo Conseil d’État, a mais alta corte francesa em matéria fiscal, provocou uma reviravolta na interpretação de cláusulas daquele tratado internacional, afetando investidores franceses e a política de atração de capital por incentivos fiscais concedidos no Brasil. Por essa decisão, o Conseil d’État confirmou a legalidade de uma instrução normativa francesa de 1997, que regulamenta as modalidades de utilização de créditos de impostos originários de juros brasileiros, e que havia revogado uma primeira instrução normativa, datada de 1972. Mais precisamente, decidiu-se pela legalidade da concessão de crédito de imposto na França tão-somente no caso de imposto efetivamente recolhido no Brasil, contrariamente à regulamentação anterior, que concedia o crédito independentemente de pagamento de imposto à Administração brasileira.

A concessão de crédito em tributação internacional é uma das técnicas utilizadas para se evitar a dupla tributação jurídica da renda, a chamada técnica de imputação de crédito. A regra é simples. Basicamente, o que for pago de imposto em um país sobre uma determinada renda será revertido em crédito a esse mesmo pagador, para compensação com imposto devido em outro país, sobre a mesma renda. No caso dos juros de fonte brasileira remetidos a investidores franceses, o imposto retido no Brasil seria convertido em crédito aos investidores franceses, para compensação com o imposto francês sobre a renda devido sobre aqueles valores quando ingressados na França. Ocorre que as duas instruções normativas traziam, na França, interpretações distintas sobre o assunto. Mas, afinal, o que previa o tratado franco-brasileiro?

O artigo n°. 22, §2, alínea c, do tratado, prevê a imputação do crédito, acima descrita, como método de eliminação da dupla tributação. Logo em seguida, a alínea d prevê, para juros de origem brasileira, que "imposto brasileiro é considerado como tendo sido cobrado à taxa mínima de 20%". Para os mais familiarizados com a matéria, é de se reconhecer aí uma cláusula de crédito ficto, bastante utilizada nos tratados firmados em meados do século passado entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, caso da França e do Brasil. Esse tipo de cláusula representa uma forma de ajuda aos países menos favorecidos, pela qual o país rico concede um crédito ficto referente a um imposto nunca pago no outro país. Seria uma forma de permitir efetividade ao incentivo fiscal concedido no país em desenvolvimento, que decidiu por não tributar aquela renda como forma de atrair investidores. Caso nenhum crédito fosse concedido, o caráter atrativo da isenção não geraria nenhum efeito, porque o investidor acabaria suportando o mesmo peso fiscal e financeiro no seu país de residência, onde recolheria o imposto cheio, sem imputação de crédito2.

A primeira instrução francesa dava exatamente essa interpretação ao tratado firmado com o Brasil, no que tange aos juros enviados a investidores franceses: previa direito a crédito de 20% quando do pagamento de imposto na França, mesmo que nenhum imposto fosse recolhido em solo brasileiro. Porém, uma nova interpretação veio com a segunda instrução: a de concessão de crédito somente na hipótese de imposto efetivamente recolhido no Brasil.

O banco Natexis contestou judicialmente essa nova interpretação, e obteve decisão desfavorável do Conseil d’État. Segundo essa corte, a alínea d é a representação de uma cláusula matching credit, que seria a concessão de crédito num montante previamente estabelecido, normalmente superior ao imposto efetivamente recolhido, e não tax sparing, no seu entender, a concessão de crédito ficto quando nenhum imposto é recolhido. Isso porque essa última forma nunca poderia ser presumida, mas deveria ser expressamente prevista, como teria sido no caso dos tratados firmados pela França com a Argentina e Indonésia, diferentemente do tratado brasileiro. Como a cláusula não foi da mesma forma redigida, a conclusão a que se chegaria, segundo a Corte, seria a de que somente em caso de tributação no Brasil, por qualquer alíquota mínima, a França concederia o crédito de 20%, ou seja, uma cláusula matching credit. Ocorre que o Brasil isenta totalmente essa renda, de modo que nenhum crédito poderia ser concedido pela França.

No entanto, uma parte considerável dos juristas franceses, baseada em estudos e definições da OCDE, entende que a cláusula de matching credit não envolve discussão quanto à exigência de tributação mínima para aplicação do crédito. Ela teria sido criada para melhorar a cláusula de tax sparing (da qual seria espécie), fixando um teto para a concessão de crédito ficto (no caso em tela, 20%), evitando manipulação dos créditos pelos países <_st13a_personname productid="em desenvolvimento. Além" w:st="on">em desenvolvimento3. Além disso, o fato de a primeira instrução revogada, que interpretava a cláusula pela concessão do crédito na ausência de qualquer tributação no Brasil, ter sido elaborada 14 meses após a assinatura do tratado, sob os olhos dos seus negociadores e em meio ao clima de sua celebração, serviria como indicador da verdadeira intenção dos franceses e brasileiros signatários daquele tratado de 1971, o que não seria o caso da segunda instrução, elaborada 25 anos depois.

Conforme for, fica o alerta para as autoridades brasileiras, que imaginam atrair capital francês com a isenção de certos tipos de juros, quando, na verdade, não recebem o retorno que esperam desse sacrifício orçamentário. Cabe ao Brasil ou dançar conforme a música francesa e passar a tributar de forma mínima esses juros, permitindo a utilização do crédito de acordo com a interpretação da corte francesa e preservando o incentivo fiscal, ou desistir de vez do método atrativo e passar a tributar a renda, num intuito meramente fiscal, arrecadatório4. Da forma como está, não está alcançando nem um nem o outro.

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1 Decreto Legislativo nº. 87/1971 (clique aqui) e Decreto nº. 70506/1972 (clique aqui).

2 Em termos práticos, uma empresa francesa que paga 10 de imposto no Brasil teria um crédito de 10 para compensar com o imposto francês. Supondo que este seria na ordem de <_st13a_metricconverter productid="20, a" w:st="on">20, a empresa pagaria efetivamente 10 na França, sendo a carga total de imposto 20 (10 no Brasil e 10 na França). No caso de isenção, a empresa francesa pagaria 0 no Brasil e, com crédito igual a 0, pagaria os 20 cheios na França, suportando, assim, uma carga total também de 20. Portanto, a isenção não reduziria em nada a carga tributária da empresa no caso de não concessão de crédito ficto, sendo uma medida sem efeitos atrativos.

3 As cláusulas de tax sparing no sentido estrito previam a concessão de crédito referente ao imposto que deixaria de ser pago, por motivo de redução ou isenção. Isso permitia aos países em desenvolvimento a criação de mecanismos de manipulação de crédito, na medida em que aumentavam a alíquota de seu imposto e, em seguida, concediam redução ou isenção, aumentando o crédito concedido, que seria igual ao imposto originário, estrategicamente aumentado. Com o matching credit, os países ajustavam, desde o tratado, um teto desse crédito, evitando-se eventual manipulação.

4 As sugestões se referem apenas ao tratamento de certos juros pagos a residentes na França, visto que demais tratados firmados pelo Brasil podem não ser interpretados da mesma forma nos outros Países, de modo que a isenção conferida a determinados juros pelo Brasil produz, sim, os efeitos atrativos para os quais foi instituída.

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*Advogada do escritório Trigueiro Fontes Advogados









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