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O Protesto das Togas

No último dia 05 os Juízes do Trabalho de todo o país se mobilizaram pela efetivação dos direitos trabalhistas. Em Salvador, os Juízes foram para a Praça Tomé de Souza, em frente ao Elevador Lacerda, cartão postal da cidade, para distribuir uma cartilha que detalha os direitos básicos dos trabalhadores, isto é, o contrato mínimo: Carteira do Trabalho e Previdência Social, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, jornada de trabalho de 44 horas semanais, segurança e saúde, repouso e alimentação entre as jornadas, férias e gratificação de natal E quando dispensado, aviso prévio e seguro desemprego.

22/10/2007


O Protesto das Togas

Márcia Novaes Guedes*

No último dia 5 os Juízes do Trabalho de todo o país se mobilizaram pela efetivação dos direitos trabalhistas. Em Salvador, os Juízes foram para a Praça Tomé de Souza, em frente ao Elevador Lacerda, cartão postal da cidade, para distribuir uma cartilha que detalha os direitos básicos dos trabalhadores, isto é, o contrato mínimo: Carteira do Trabalho e Previdência Social, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, jornada de trabalho de 44 horas semanais, segurança e saúde, repouso e alimentação entre as jornadas, férias e gratificação de natal; e quando dispensado, aviso prévio e seguro desemprego.

As mobilizações fazem parte da Campanha Nacional lançada pela Anamatra [Associação dos Magistrados do Trabalho] que escolheu o dia 5 de outubro [Dia da Cidadania] para marcar a luta contra a flexibilização dos direitos dos trabalhadores brasileiros e denunciar diversas outras violações das relações de trabalho como a terceirização e o cooperativismo fraudulentos, a contravenção penal pelo descumprimento das normas de segurança, higiene e saúde do trabalhador e o assédio moral. A Campanha tem como objetivo, também, reforçar e acelerar as discussões em favor das mudanças na legislação tendo como móvel a efetividade dos direitos trabalhistas considerados essência dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. Para maiores informações, a Anamatra disponibilizou um site exclusivo para a Campanha: (clique aqui) .

Apesar de afogados em leis, a maioria dos trabalhadores brasileiros vive precariamente na informalidade. Um dos pontos altos da Campanha é, precisamente, o respeito à CLT _ Consolidação das Leis do Trabalho (clique aqui), uma senhora lei de quase 70 anos, cujo art. n°. 29 manda o empregador anotar a data de admissão, a remuneração e as condições especiais de trabalho, se houver, registrar, carimbar e assinar o documento no prazo de 48 horas. Sem CTPS assinada o trabalhador é menos cidadão. Não pode comprar a crédito, abrir conta nem fazer empréstimo bancário, nem sequer pode sonhar com a aquisição da casa própria, pois sem registro na CTPS não tem recolhimento de FGTS. Se adoecer, ou se for mulher e engravidar, vai depender da caridade pública, pois o sistema previdenciário é tripartite, quer dizer, funciona com a contribuição do Governo, dos patrões e dos trabalhadores, que, o empregador está obrigado a descontar e recolher mensalmente ao INSS.

O desrespeito a essa norma básica das relações de trabalho no Brasil é incentivado pela indiferença da sociedade que dá de ombros para a banalização do mal no trabalho. A falta de registro em CTPS, com a finalidade de fraudar os direitos do empregado é e a Previdência Social é considerada crime, previsto no art. n°. 297, § 4º do Código Penal (clique aqui). O resultado dessa medida, porém, é pífio, pois os patrões continuam contratando ao arrepio da lei, sob a desculpa de que não podem arcar com os encargos sociais. E entre Juízes e Promotores de Justiça grassa acirrada discussão acerca da competência da Justiça do Trabalho para impor tal condenação. Afora a atuação corajosa de uns poucos juízes fundamentalistas, que, tomando os direitos fundamentais como fundamentos de suas decisões, condenam empregadores em danos morais e não admitem instruir alegação de justa causa, levantada pelo empregador, quando este não cumpriu as obrigações do contrato [CLT, art. n°. 483, d], a ilicitude não encontra cobro diante da insuficiente fiscalização do Ministério do Trabalho.

O brasileiro é cordial, e, muitas vezes, indiferente à injustiça social. Participamos das festividades, aniversários e casamentos sem nos preocupar se os "serviçais" tem seus direitos básicos respeitados. Entramos e saímos de lojas, mercados e shoppings sem reparar que o comércio contrata salário mínimo e comissões, mas na prática, continua valendo a regra "se produzir come, se não produzir, não come". Nosso desprezo pelos pobres vai além, temos medo deles. Numa festa de aniversário ouvi de uma médica a seguinte explicação: "os pobres são confundidos com bandidos, porque nessa classe o número deles é maior". Sonegar salários e outros direitos sociais não é considerado furto. E apesar da redação da Lei n°. 9.983, de 14.7.2000 (clique aqui), que introduziu o § 4º ao art. n°. 297 do Código Penal, para o jurista Damásio de Jesus, "não constitui delito a singela conduta de o empregador deixar de registrar o empregado".

Domésticas e babás trabalham 12 horas seguidas, muitas vezes, sem receber o salário mínimo, cuidando da casa e dos filhos da classe média, enquanto que os filhos delas crescem sem a companhia dos pais e do Estado. O desprezo que as classes abastadas e remediadas nutrem pelos trabalhadores sugere temas ao teatro do absurdo. Minha fisioterapeuta contou-me que ao ser apresentada a uma distinta dama da sociedade local, dentre as lições de boas maneiras e etiquetas, ouviu a seguinte pérola: "não deveria permitir que a babá de seu filho se vestisse de modo a causar confusão nas pessoas, a babá não poderia ser confundida com sua irmã". Afinal, ela [a babá] deveria saber qual é o seu lugar na escala social!

Esse inominável preconceito social encontra reforço na imprensa dominante. Recentemente, a colunista de um dos mais lidos jornais do país, cuja circulação média, de segunda a sexta-feira, é de exatos 299.473 exemplares, orgulhosamente revelado no frontispício da primeira página [!], ao ensaiar uma explicação para o apoio popular, revelado por uma pesquisa de opinião, ao Presidente da República, afirmou que o apoio vem dos "seres simples" beneficiados pelos programas sociais. O sentido discriminatório da opinião veiculada pelo jornal, felizmente, não passou despercebido de um jornalista, famoso por sua independência de opinião, que concluiu: a colunista, certamente, se considera um "ser complexo"

A República e a economia de mercado foram forjadas com a exclusão dos ex-escravos, considerados sub-raça destinada ao desaparecimento. A nação desejada por nossa elite não poderia ser formada pelo "rebotalho", mas pelo branco europeu, cuja imigração foi incentivada. Somos o único povo que conseguiu se "modernizar" sem romper com a senzala. De modo inédito, a transportamos para os modernos e arrojados prédios de apartamentos, onde uma linha divisória, aparentemente invisível, separa a "área de serviço" da "área social". Do velho engenho de cana-de-açúcar ao agro-negócio do álcool e do etanol, nosso processo civilizatório segue linear, combinando exclusão social e cinismo que se revelam no emprego da fraude nas relações de trabalho, incluindo, em pleno século XXI, o trabalho escravo nos setores de ponta da economia.

A resistência da elite brasileira em se tornar cidadã é notória. Segundo Raymundo Faoro, nossa elite é marginal, isto é, enquanto classe dirigente não realizou o projeto racional que inclui a previsibilidade, o cálculo e a inclusão social. A elite manda, mas não aceita ser cidadã. Essa elite marginal imagina que pode modernizar o país excluindo o povo e os que pensam em defesa da inclusão social, como na sátira de Machado de Assis, descrita no conto O Alienista, onde um sábio, a pretexto de estudar a loucura, interna num hospício três quartos da população.

Assim, o projeto de "modernização" dessa "elite marginal" inclui a redução de pessoas à condição análoga à de escravo. Na verdade, o trabalho escravo contemporâneo é um elo na cadeia produtiva que vem sendo denunciado pelo Bispo da prelazia de São Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga desde 1971. O crescente aumento do número de denúncias obrigou o governo a criar o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, que, em parceria com organismos não governamentais e com a Procuradoria do Trabalho, já libertou, desde o início do programa, mais de 25 mil trabalhadores escravos, sendo que a maioria está concentrada nas atividades de criação, pastagem e de insumos agrícolas, seguidos daqueles encontrados nas plantações de soja e de algodão e nas atividades de plantio e corte de cana-de-açúcar. A Justiça do Trabalho, porém, se apercebeu do problema muito mais tarde e somente em 2005 instalou a Vara do Trabalho de São Felix, onde hoje, a corajosa atuação do Juiz João Humberto Cesário no combate e erradicação do trabalho escravo tornou famosa a região, antes conhecida como o "Vale dos Esquecidos".

Na segunda-feira, 24 de setembro, a Justiça do Trabalho aceitou a Ação Civil Pública movida pela Procuradoria do Trabalho que, com base no resultado de uma fiscalização realizada pelo Grupo Móvel de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo que denuncia a existência de trabalho escravo na PAGRISA. Na fazenda dessa empresa em Uianópolis, a <_st13a_metricconverter productid="417 quilômetros" w:st="on">417 quilômetros de Belém, foram encontrados 1.060 trabalhadores reduzidos à condição análoga á de escravos. Essa foi a maior libertação já feita desde a criação do Grupo. "Eles nos tratavam como porcos", assim um dos trabalhadores libertados resumiu as condições de trabalho na PAGRISA. E não exagerou.

Segundo os relatórios dos fiscais, a PAGRISA violava as normas de proteção ao salário praticando o velho e abominável truck system [vendendo alimentos e remédios aos trabalhadores por preços bem superiores aos praticados no mercado livre], Praticava Contravenção Penal descumprindo as normas de higiene, saúde e segurança do trabalho, obrigando os empregados a trabalhar sem descanso, e até os alimentos fornecidos estavam deteriorados, com a presença de bactérias, vermes e fungos. Acontece que os donos dessa empresa são poderosos e tem aliados de peso no Senado Federal. Os senadores Flexa Ribeiro [PSDB - PA] e Kátia Abreu [DEM-TO], acusaram os fiscais de praticar "abuso de poder" e conseguiram suspender temporariamente o trabalho de fiscalização do Grupo.

A construção da nossa racionalidade passa pela destruição dessa elite marginal, isto é, vai acontecer na medida em que ela [a elite] se tornar cidadã. E nisso os Juízes podem dar uma grande colaboração: primeiro, fazendo tesouro da lição de Hannah Arendt, segundo a qual, a Justiça não admite a teatralidade dos gestos, das condutas estudadas, mas requer o isolamento, admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores. Segundo, é preciso cuidar para que o protesto na praça pública não se transforme num palanque feito sob medida para os ávidos de ascensão profissional, mas que em nome da disciplina judiciária seguem indiferentes, remando a favor da corrente e dando as costas á desestabilizadora banalização do mal.

Por fim, é preciso não esquecer que o povo, cansado da injustiça social, deseja ver coerência entre o discurso e a prática judiciária. O trabalho dos Juízes não termina na Agora, mas no fórum, no recesso do gabinete e a efetividade da justiça vai acontecer na medida em que os juízes se empenharem em reverter com decisões corajosas o resultado de uma pesquisa científica recentemente divulgada e que revela que o Judiciário brasileiro, inclusive o trabalhista, não realiza justiça social.

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*Juíza Federal do Trabalho. Doutora em DT pela Universidade de Roma - Tor Vergata. Membro da AJD - Associação Juízes para a Democracia.





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