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O princípio da obrigatoriedade e o Ministério Público

É comum dizer-se que, quanto ao Ministério Público, não se pode falar em direito de ação, mas sim em dever de agir. Assim, p. ex., quando o art. 81 do CPC lada em “direito de ação” do Ministério Público, estaria, na verdade, querendo referir-se ao seu “dever de agir”.

14/9/2007


O princípio da obrigatoriedade e o Ministério Público

Hugo Nigro Mazzilli*

É comum dizer-se que, quanto ao Ministério Público, não se pode falar em direito de ação, mas sim em dever de agir. Assim, p. ex., quando o art. 81 do CPC (clique aqui) fada em "direito de ação" do Ministério Público, estaria, na verdade, querendo referir-se ao seu "dever de agir".

A idéia de que o Ministério Público é obrigado a agir funda-se em última análise no princípio da legalidade, que, entre nós, alcançou seu mais alto grau na esfera penal.

Ao dissertar sobre o princípio da legalidade no processo penal, amparado em lição de Siracusa, José Frederico Marques comenta as diversas soluções existentes no Direito comparado, e anota que "dois são os princípios políticos que informam, nesse assunto, a atividade persecutória do Ministério Público: o princípio da legalidade (Legalitätsprinzip) e o princípio da oportunidade (Opportunitätsprinzip). Pelo princípio da legalidade, obrigatória é a propositura da ação penal pelo Ministério Público, tão-só ele tenha notícia do crime e não existam obstáculos que o impeçam de atuar. De acordo com o princípio da oportunidade, o citado órgão estatal tem a faculdade, e não o dever ou a obrigação jurídica de propor a ação penal, quando cometido um fato delituoso. Essa faculdade se exerce com base em estimativa discricionária da utilidade, sob o ponto de vista do interesse público, da promoção da ação penal".1

Vejamos o que ocorre na legislação processual penal brasileira. Se, embora presentes os pressupostos que autorizariam ou até exigiriam a propositura de uma ação penal pública, o membro do Ministério Público assim mesmo violar o dever de agir, o CPP (clique aqui) admite a intervenção do juiz, que pode recusar o pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação e propor ao chefe do parquet que reveja a proposta de arquivamento formulada pelo promotor de Justiça (art. 28). A lei mais uma vez consagra de maneira expressa o princípio da obrigatoriedade quando veda que o Ministério Público desista da ação (CPP, art. 42) e, mais uma outra vez, quando lhe proíbe a desistência do recurso (CPP, art. 572). E, também em razão do mesmo princípio da indisponibilidade, no processo dos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público entenda ser caso de absolvição (CPP, art. 385).

Daí, foi um pequeno passo apenas para que muitos buscassem transmudar esses princípios do processo penal para o processo civil, em busca de uma aparente, embora incorreta, analogia. Se mergulharmos mais a fundo, deveremos questionar se no processo civil o princípio que deve reger a atuação do Ministério Público seria mesmo o da legalidade ou obrigatoriedade. Esse questionamento poderia ser lançado ainda mais longe, para nos indagarmos se, mesmo na esfera penal, a atuação do Ministério Público deveria ser sempre indeclinável e obrigatória – o que não é verdade, haja vista, p. ex., a transação penal.

Examinemos em que consiste o dever de agir do Ministério Público.

Segundo Calamandrei, não se admite que o Ministério Público, identificando uma hipótese na qual a lei exija sua atuação, se recuse a agir.2

Não se veja aí, porém, um dever cego e automático de agir: o Ministério Público tem liberdade para identificar ou não a hipótese de agir, desde que o faça fundamentadamente.

Como já o temos demonstrado,3 se o Ministério Público identifica a existência da lesão em caso no qual a lei exija sua atuação, ele não pode alegar conveniência em não propor a ação ou não prosseguir na promoção da causa, o que lhe é um dever, salvo quando a própria lei lhe permita, às expressas, esse juízo de conveniência e oportunidade. Entretanto, se, ao investigar supostos fatos que poderiam servir de base para uma ação pública, o Ministério Público se convence de que esses fatos não ocorreram, ou que o investigado não é responsável por eles, ou que esses fatos ocorreram, mas não são ilícitos – em todos esses casos, o Ministério Público poderá deixar de agir, sem violar dever funcional algum.

Na área penal, não cabe desistência apenas porque a lei expressamente lhe veda. Mas, na área civil, depois de proposta a ação civil pública, se no curso desta surgirem fatos que, no entender do Ministério Público, devam comprometer seu êxito (como quando creia que a ação está insuficiente, inadequada ou erroneamente proposta), o exame do cabimento de desistir ou não da ação em nada viola o dever de agir. Com efeito, com Carnelutti, sabemos que "a valoração da conveniência do processo para a tutela do interesse público, à base da qual o Ministério Público resolve acionar, não está vinculada".4

É verdade que a ação do Ministério Público é hoje, em regra geral, vinculada e não discricionária. Assim, viola seus deveres funcionais o órgão do Ministério Público que, identificando a hipótese em que a lei exija sua ação, se recuse de maneira arbitrária a agir. Entretanto, nos casos em que a própria lei lhe concede discricionariedade para agir, ele poderá legitimamente agir de acordo com critérios de oportunidade e conveniência. Esse caráter discricionário está presente em várias situações, como quando o Ministério Público intervém em razão da existência de um interesse público, cuja existência a ele incumbe reconhecer, pois que, se não o reconhecer, não haverá como defendê-lo;5 quando ele faz a transação penal;6 quando colhe o compromisso de ajustamento de conduta;7 quando opina sobre a conveniência da venda de bens de incapazes.8

Em suma, isso é mera conseqüência da livre valoração do interesse público pelo parquet: o dever de agir do Ministério Público pressupõe essa valoração da existência ou da persistência do interesse público, seja para propor a ação, seja para nela prosseguir, seja para nela intervir. Com efeito, a instituição deve apreciar a justa causa não só para propor, como para prosseguir na ação, ou para nela ser órgão interveniente. Essa valoração da desistência só não pode ser feita no processo penal, porque a lei expressamente a vedou.

Entretanto, se os arts. 42 e 576 do CPP vedam a desistência pelo Ministério Público, não é porque a desistência do pedido ou a desistência do recurso sejam, a priori, incompatíveis com a atuação do Ministério Público. Ao contrário. A lei processual penal só vedou esses atos porque, se não o fizesse, princípio algum estaria a impedir a desistência ministerial. Em outras palavras, o Ministério Público não pode desistir no processo penal não porque o direito material ou processual que está em jogo em tese não o permita, mas sim porque, embora em tese se pudesse admitir a desistência, o legislador penal optou voluntariamente por vedá-la, tanto que, se não a vedasse, seria possível de ser exercitada.

E por que a vedou ? No processo penal, o legislador vedou a desistência da ação ou dos recursos pelo Ministério Público porque, como é ele o titular privativo da ação penal pública, se desistisse da ação ou do recurso, estaria aberta a porta para pressões e impunidade, até mesmo ou principalmente nos crimes mais graves, praticados pelas mais altas autoridades ou pelos mais ricos empresários. E como hoje, na ação penal pública, a legitimação ativa do Ministério Público exclui a de outros, ninguém poderia sucedê-lo ou substituí-lo diante da desistência efetuada.

Não é dogma, porém, a indesistibilidade na área penal, tanto que se admitem atos dispositivos nos crimes de ação privada, nos crimes de ação pública condicionada (como a decadência do direito de queixa ou representação) e até nos crimes de ação pública, se de menor potencial ofensivo.

E no processo civil ? Por que não cabe a tão propalada analogia com o processo penal ?

Primeiro porque, ao contrário do que ocorre na ação penal pública, na esfera civil, o Ministério Público não é legitimado exclusivo para a ação civil pública (na ação civil pública ou coletiva, a legitimação ativa é concorrente e disjuntiva). Assim, havendo diversos co-legitimados para a ação civil pública ou coletiva, se o Ministério Público não age ou não recorre, outros co-legitimados podem agir ou recorrer. Em segundo lugar, a própria Lei da Ação Civil Pública admite que possa haver desistências fundadas da ação civil pública (art. 5º, § 3º, da Lei n. 7.347/85 (clique aqui), a contrario sensu).

Em suma, o princípio da indesistibilidade da ação pública não recebe o mesmo tratamento no processo penal e no processo civil.9

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1Tratado de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1980. v. 2, p. 88.

2Istituzioni di diritto processuale civile, secondo il nuovo códice. 2. ed. Pádua: CEDAM, 1943. § 126.

<_st13a_personname productid="Em nosso A" w:st="on">3Em nosso A defesa dos interesses difusos em juízo. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Cap. 4.

4Istituzioni del processo civile italiano. Roma, 1956, n. 98.

5CPC, art. 82, III.

6CF, art. 98, I. Ainda que os pressupostos para a transação penal não sejam arbitrários, a proposta de transação penal supõe a valoração do órgão ministerial, no caso concreto.

7LACP, art. 5º, § 5º.

8CC, arts. 1.691 e 1.750.

9Para exame em maior profundidade da promoção da ação penal pública pelo Ministério Público, v. nosso Regime jurídico do Ministério Público. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

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*Procurador de Justiça aposentado, advogado e professor no CJDJ - Complexo Jurídico Damásio de Jesus.








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