Adorno e o casamento
Sérgio Roxo da Fonseca*
Sobre a mesa dos convidados, são aplicados grandes arranjos de flores que me impedem ver as pessoas que estão sentadas a minha frente. Sobre isso, uma luz oscilante e escalafobética roda no teto transformando o salão num sonho de Salvador Dali.
O barulho me deixa calado para enorme aflição daqueles que suportam a minha silenciosa e inútil companhia. Faço esforço para falar, mas o som dela é mortiço a minha visão se desloca para zero.
Calado, fico lembrando as palavras de Adorno sobre o significado da indústria cultural que transforma em objeto o seu consumidor. Adorno foi filósofo da Escola de Frankfurt, afastando-se dali para fugir do nazismo. Lecionou na Inglaterra e depois nos Estados Unidos, antes de voltar para a Alemanha, onde morreu em 1969. Estudou música com Alban Berger e deixou interessantes reflexões sobre a arte.
A indústria cultural transformou o consumidor no seu objeto e não no seu consumidor, disse ele. Os compositores levaram para a música o barulho da fábrica. O homem trabalha enquanto supõe descansar, ainda diz ele. A atividade física dos novos bailarinos parece demonstrar a verdade contida na afirmação. Festejar um casamento importa em ouvir o som eletrizante das máquinas, pulando no seu ritmo até o limite da exaustão como se os presentes estivessem submetidos às pesadas cargas de um trabalho árduo. E quase sempre noturno. Os dançantes rebolam seus corpos em desenhos geométricos, esticando ou contraindo braços e dedos, como se buscassem alguma coisa inexistente que no ar não flutua.
O mestre alemão acrescentou que quem ouve a tal música não ouve. Ou seja, a capacidade intelectiva não acompanha a composição sonora. A música está ali como qualquer música pode estar ali. A música não faz diferença basta que atinja os pavilhões auriculares como torpedos megatônicos. A música não é a música, mas, sim, um barulho eletrônico. A música que se ouve não é para ser ouvida.
A frase tem sentido figurado pois quem está ali ouve e ouve muito bem a enorme barulheira produzida pela música industrializada. Ouve tanto que não consegue ouvir a voz do vizinho que, aos berros, tenta lhe dizer qualquer coisa. Não tem importância ouvir qualquer música e nem ouvir qualquer coisa. O convidado não ouve e, por conseguinte, não fala. O tambor parece bumbar no interior de seu peito ou no vazio da sua barriga.
Não ouve, não fala e também não vê, pois o enorme vaso de flores do meio da mesa o impede de enxergar a pessoa sentada na cadeira da frente. A única saída é ir trabalhar, ou melhor dizendo, aderir aos frenéticos movimentos desenvolvidos pelos dançarinos, passando a saracotear pelo salão. A música que ouve, ele não ouve. A palavra que fala não fala. O olhar que olha não vê. De consumidor passa a objeto da relação artística, submetido a uma experiência mística, próxima do nirvana, prelibando o ingresso no paraíso perdido. Não ouve, não fala e não vê.
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*Advogado, Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo, professor das Faculdades de Direito da UNESP e do COC.
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