A banalização do mal no trabalho
Márcia Novaes Guedes*
Durante a era sólida, em plena ditadura militar e sob o terror do AI-5, operários da COSIPA organizaram uma greve inédita, O "Dia da Amnésia". Considerada "zona de segurança nacional", a COSIPA estava sob rigorosa vigilância militar e a entrada e saída dos operários por turnos era controlada por sistema de identificação. Submetidos a um forte esquema de vigilância, sem contar com um espaço apropriado para a troca de idéias e de informações, sem apoio do sindicato (pelego), os operários criaram uma forma singular de comunicação, transformando as portas dos banheiros em páginas de jornal e de boletins informativos, os escritos iam sendo apagados ao final de cada turno pelos últimos operários a usarem o banheiro. O "Dia da Amnésia" foi uma greve espetacular que não pôde ser reprimida, nem os operários punidos, afinal não existiam greves no Brasil, o termo, inclusive, havia sido banido do vocabulário jurídico.
No "Dia da Amnésia", todos os operários da COSIPA esqueceram em casa o "password" de acesso ao portão de entrada. Imagine o leitor o tamanho da fila que foi se formando, os turnos foram sendo interrompidos até atingir a paralisação dos altos-fornos. Segundo o relato de Marilena Chauí, a direção da empresa, alarmada, aceitou negociar com os grevistas, que perante a lei não eram grevistas. Eram outros tempos, nos quais trabalhadores e sindicatos inventavam novas formas de manifestações, a fim de se contraporem à voracidade do capital e melhor vender sua força de trabalho.
De acordo com a OIT, em 1985, a cada três minutos, um trabalhador perdia a vida no trabalho e, a cada segundo, outros quatro sofriam lesões incapacitantes. Em 2003, ocorreram 270 milhões de acidentes, uma média de 740 mil por dia e nove por segundo, o que significa mais de 200 acidentes antes que o leitor termine de ler este parágrafo. Apesar disso, a flexibilização com precarização das relações de trabalho evoluiu no Ocidente através da jurisprudência dos tribunais trabalhistas, sustentada pela crença ideológica do "fim do trabalho", ainda que com o sacrifício do primado do trabalho sobre o capital, aliás, um dos princípios fundantes da República brasileira (Const. Federal, art. 1º, I e II - clique aqui).
Não precisamos ir à China para provar a falácia do fim do trabalho. No Brasil, enquanto o agronegócio do álcool prospera e sozinho responde por um incremento de 48% nas exportações nacionais, crescem as suspeitas de morte por exaustão __ fruto do uso intensivo do trabalho vivo, associado ao perverso modo de pagamento da contraprestação calculada por produção __, ao tempo em que surgem outros modos de vida "Severina". Romarias de homens do interior nordestino se deslocam de "ônibus" (modernos paus-de-arara) para o Sul, arrebanhados pelos "gatos", empreiteiros de mão-de-obra, contratados pelos usineiros. Ao cabo de alguns meses, homens exaustos e prematuramente envelhecidos são devolvidos à sociedade pelas usinas, sem o exame "demissional" recomendado pelo art. 168, II da CLT (clique aqui). Muitos retornam pra casa, porém mancos de braços, dedos e mãos, decepadas pela lâmina afiada do podão, que não se rende ao cansaço, à desnutrição, à insolação de horas intermináveis de trabalho, sem descanso.
A perplexidade decorre da ausência de reação eficaz por parte dos trabalhadores e das organizações sindicais, que, invariavelmente, chegam atrasados. Pesquisas realizadas pela médica do trabalho Margarida Barreto demonstram a desilusão dos trabalhadores que, doentes, são submetidos à humilhação no trabalho e não encontram apoio dos sindicatos. Segundo o psicanalista Christopher Dejours, a crise do sindicalismo dos anos oitenta não decorre propriamente do processo de fragmentação da economia, mas, sobretudo, da opção feita pelos sindicatos, nos anos setenta, de não investir em estudos e pesquisas no campo da subjetividade humana. Isso se deu por força da orientação ideológica predominante no seio da esquerda de desprezar a subjetividade e a conseqüente recusa de encarar o sofrimento no trabalho, sob a justificativa de que a subjetividade, o sofrimento, a afetividade, são esferas antimaterialistas, ligadas ao egocentrismo pequeno-burguês e investir nessa esfera impedia o desabrochar da consciência de classe e redundava no fracasso da mobilização coletiva. Assim, as preocupações com a saúde mental, o sofrimento físico, emocional, psíquico e moral, fruto da alienação do processo produtivo, da falta de sentido do trabalho, não foram apenas desprezadas, como deixaram de ser analisadas, compreendidas e desqualificadas pelas organizações sindicais. E o resultado foi uma avassaladora derrota dos trabalhadores nos últimos vinte anos.
O erro de perspectiva e estratégia por parte das organizações sindicais deixou o campo aberto para inovações gerenciais e econômicas por parte das empresas, centradas num profundo conhecimento da subjetividade, área, aliás, que se tornou decisiva na relação capital / trabalho com a mundialização da economia. Os sindicatos sequer acompanharam o desenvolvimento das pesquisas e investimentos das organizações em estratégias e táticas que resultaram em novos métodos de gerenciamento e novas performances para colocar produtos e idéias à venda. Por outro lado, "as mesmas empresas que geravam a adversidade social, o sofrimento e a injustiça, eram também as únicas a se preocuparem em forjar novas utopias", ressalta com propriedade Dejours. Essas novas utopias inspiradas em modelos compostos nos Estados Unidos e no Japão, que, paulatinamente substituíram a ética do trabalho pela recompensa premial, sustentavam que a felicidade não estava mais na cultura, na educação, nem na política, mas no futuro das empresas! Surge uma "cultura empresarial" com novos métodos de gestão e recrutamento no campo dos recursos humanos. Paradoxalmente, a empresa que banaliza o sofrimento acena com a perspectiva de realização pessoal e construção de uma identidade feliz para aqueles que conseguem se adaptar e colaborar com seu sucesso.
Hoje, além da obstinada perseguição pelo lucro, um outro objetivo fundamental das organizações é a gestão e seu gerenciamento. Assim, a negação do real no trabalho e, por conseguinte, do sofrimento é ocultada por todos os que acreditam no domínio total da razão cartesiana, iluminista e antimetafísica. O mal se banaliza na medida em que se suspende o pensamento, ensina Afina Arendt. Embora chocante, a banalização do mal no trabalho não tem nada de excepcional dado que é subjacente ao próprio sistema e está igualmente implícito nas vertentes totalitárias, inclusive o nazismo, mas durante a era industrial permanecia oculta diante dos níveis de ocupação e dos amortizadores sociais existentes. A tolerância para com o mal é a válvula de escape usada pelos trabalhadores para suportar as condições objetivas e cruéis impostas pelas organizações. Esse processo tem a ver com aquilo que acontecia no campo de extermínio e Primo Levi definiu de Zona Cinzenta (Se Questo È Un Uomo ? Einaudi, 1989). Em Auschwitz, o caso mais extremo de colaboração é a dos "sonderkomandos", grupo composto pelos próprios judeus para executar o trabalho sujo na seleção para o gás e o trabalho nos crematórios.
Em salas luxuosas, paredes decoradas com pinturas de artistas famosos, no ar um fundo musical que se combina com uma suave fragrância de flores do campo, acentuando a sensação de higiene, deixada pela presteza impecável de serviçais "terceirizados", o terror psicológico no trabalho é um aspecto desse moderno método de gestão. O assédio moral, a gestão por stresse ou straining faz do local de trabalho um verdadeiro campo de concentração, onde tudo é possível. Acontece que pessoas normais, como advertia David Rousset, refletindo sobre Auschwitz, não sabem que tudo é possível. Nos fóruns trabalhistas de Norte a Sul do país, já se sente o odor de enxofre exalado de algumas empresas que adotaram a gestão por estresse ou straining como estratégia para aumentar vendas:
"(...) que em 2000, a primeira ré passou a vender PEPSI e GUARANÁ ANTÁRTICA e por isso, foi colocada uma jaula, durante cerca de 6 meses, para incentivar a venda desses produtos; que se a pessoa não vendesse era obrigada a entrar na jaula, abraçar a macaca e assistir à reunião lá dentro; que isto nunca aconteceu com o depoente, mas aconteceu com o autor uma vez; que isto aconteceu com o FERNANDO, que era negro e se sentiu humilhado e pediu demissão; que o supervisor incentivava aqueles que estavam fora da jaula a jogar papel e cutucar dizendo que amanhã a pessoa poderia estar dentro da jaula e ele faria o mesmo com ela; que a macaca era um boneco e fica o dia inteiro na jaula e a empresa passou a pedir que usassem peruca ou um chapéu tipo um cone onde estava escrito 'Eu sou fraquinho”. A íntegra da decisão pode ser obtida consultando o processo 00405-2005-005-17-00-0, cuja relatora é a Juíza Sonia Dionizio, no site do TRT/17ª Região (clique aqui).
Em sentença proferida pela Juíza Simone M. Jalil Anchieta da 21ª Vara de Natal, numa ação civil pública, encontramos os seguintes depoimentos:
"Os vendedores que não cumprissem as suas respectivas metas eram obrigados a assistir as reuniões de pé, enquanto os que as atingissem, ficavam sentados; que eram, ainda, obrigados a dançar a música 'na boquinha da garrafa'; que uma vez os empregados que não atingiram as metas foram obrigados a fazer uma série de flexões de braço; o gerente Alexandre Barros foi quem impôs os castigos e as situações vexatórias; que nas reuniões eram utilizados palavrões com eles vendedores, que isso se dava só internamente nas reuniões; que a empresa não tem vestiário e já saíam de casa com as camisetas escritas com os apelidos de cada um; que chegou a falar com o gerente também sobre o apelido, mas não foi atendido e que o setor de gente e gestão é superior ao gerente e poderia ter barrado o apelido na camiseta; que o único setor destinado à reclamação de seus empregados era o setor de gente e gestão; que o Sr. Alexandre Barros veio transferido de Fortaleza/CE e ele veio para Natal quando da fusão para a formação do grupo AMBEV; que teve a oportunidade de encontrar com os vendedores de outro estado em convenções que aconteceram aqui em Natal e <_st13a_personname productid="em João Pessoa" w:st="on">em João Pessoa, onde os colegas de outros estados comentavam que os castigos por lá também aconteciam".
Na mesma ação, outra testemunha afirma:
"Esse gerente Emerson às vezes" não deixava os vendedores entrarem na empresa, porque não haviam atingido metas, apenas deixando o palm-top para descarregar; que também obrigava vendedores e supervisores a se fantasiarem e saírem caminhando por toda a empresa; que teve inclusive uma vez que obrigou um supervisor a amarrar um bode vivo junto à mesa e lá permaneceu durante todo o dia; que esse gerente inclusive obrigou a equipe Skol, uma vez ir ao Cart para praticar atividades físicas pelo não cumprimento de metas, como flexões, corridas, cabo de guerra, futebol americano, etc., ocasião em que dois funcionários se acidentaram, tendo um quebrado dois dedos e outro a perna; que ele também assim como os demais, era obrigado durante dois dias por semana usar uma camiseta que constava apelido; que o apelido dele depoente era Carroça; que nem ele nem seus colegas tinham apelidos antes; que os apelidos lhe foram impostos pelo gerente; que foi o Sr. Alexandre Barros quem colocou o referido apelido; que a empresa tem um Setor de Gente e Qualidade, que é o setor de recursos humanos, mas em nada os atendia; (...) que o centro de distribuição daqui é conjugado com o da Paraíba e em um encontro que teve, chegaram a conversar onde os vendedores daquele estado disseram que o tema era o mesmo; que isso se dava em todo local que tivesse AMBEV; que todos tinham apelido, normalmente vinculados a sua forma física ou por algum outro motivo que o gerente assim considerava (...); que todos os funcionários participavam de flexões, dança na boquinha da garrafa, independente de sexo; que quando ele comentava com pessoas de fora da empresa acerca de tais fatos, as pessoas ficavam incrédulas, pois não poderiam crer que tal situação existia em uma empresa como a reclamada; (...) que a empresa não tem vestiário e ele já saía de casa com a camisa com o apelido; que as camisetas foram utilizadas em uma campanha de guerra contra a concorrente – Nova Schin – e que iniciou no final de 2003 aproximadamente e quando ele depoente saiu em março de 2004 ainda se utilizava as camisetas". A íntegra da decisão pode ser obtida consultando a ACP 2034/05 no site do TRT/21ª Região (clique aqui).
O psicoterror no trabalho de natureza estratégica se evidencia sob duas modalidades distintas: o assédio moral e a gestão por estresse ou "straining". No assédio moral, a vítima é individualizada e passa a sofrer ataques reiterados e sistemáticos, como o rebaixamento de função, do cargo ou o corte de prerrogativas inerentes ao status profissional, isolamento e, por fim, a imposição do ócio enlouquecedor. Destrói-se a auto-estima pela degradação da honra profissional, e, invariavelmente, a vítima termina com distúrbios psicossomáticos relevantes, o que determina seu afastamento do trabalho. A era em que vivemos se caracteriza pelo corte do elo entre o passado e futuro, a nota típica da mentalidade a breve termo é a descontinuidade, por isso mesmo a experiência se torna um fardo a se desembaraçar. Prova disso é que os trabalhadores com mais de 40 anos se tornaram as vítimas preferenciais do assédio moral: ele ou ela guarda não apenas a memória do modus faciendi passado, mas, sobretudo, da história dos direitos e garantias sociais e não estão dispostos, muito menos disponíveis, a aceitar a desregulamentação dos contratos que se configura numa verdadeira regulamentação perversa. O cancelamento da memória consiste precisamente em afastar as provas e testemunhas de um tempo em que os direitos humanos eram sinais de evolução.
Atendendo ao convite lançado pelo Parlamento Europeu na Resolução A5-0283/2001, a França, em 17 de janeiro de 2002, aprovou a Lei de Modernização Social, a qual dedica um capítulo inteiro ao combate do assédio moral no trabalho. A lei francesa, além de criminalizar o assédio moral, dispõe que sua configuração independe da existência de um dano atual, bastando apenas o pioramento objetivo das condições de trabalho de tal modo a colocar em risco os direitos à intimidade, à dignidade, à saúde e à carreira profissional da vítima. Sob o aspecto processual, a lei francesa também inovou, consentindo à vítima apresentar em Juízo uma prova indiciária, a partir da qual o Juiz possa inferir, segundo as regras da experiência, a existência da conduta vexatória.
O assédio moral se manifesta através de uma ampla variedade de condutas, daí a dificuldade dos juristas em construir uma tutela satisfatória. Ainda que não explicitem, os juízes normalmente se valem da teoria da vinculação dos entes privados aos direitos fundamentais para coibirem o assédio moral, a exemplo da jurisprudência italiana, que definiu a imposição do ócio (dimensionamento) no trabalho como violação do direito fundamental de expressar a personalidade e dano à profissionalidade. Partindo, porém, de uma revisão dos fundamentos do direito constitucional, ensina o constitucionalista espanhol Maestro Buelga que é perfeitamente possível uma compreensão do fenômeno, tomando-o como categoria unitária. Essa proposição considera não a forma de manifestação, mas, sobretudo, o objetivo (destruir a auto-estima da vítima pela degradação das condições de trabalho), o que se prova objetivamente com os próprios fatos e os efeitos produzidos (o sofrimento físico, mental e espiritual). Por isso mesmo, a única resposta eficaz, a nível jurídico, seria transformar a consciência social em norma capaz de tornar o imperativo constitucional de proteção à dignidade uma realidade. Isso se faz tornando o direito ao trabalho como fundamento de uma resposta unitária ao assédio moral.
Na gestão por estresse ou straining, parte-se do pressuposto de que os vestígios da memória já foram apagados e o ambiente de trabalho é um campo aberto onde tudo é possível. A pressão vai subindo à medida que os trabalhadores vão "colaborando". Nessas condições, um grupo de trabalhadores ou todos os trabalhadores de uma determinada organização, indistintamente, são pressionados para produzir, atingir metas e bater recordes, sob intensa ameaça de perder o emprego ou de sofrer um castigo humilhante, como nos depoimentos acima descritos. As ameaças se realizam e os castigos são praticados, diante de uma platéia estimulada a vaiar os "perdedores". A natureza dos castigos varia de acordo com o grau de liberdade do ND (narcisista destrutivo), e vão desde a imitação do trotear da "egüinha potocó", a simulação de uma relação homossexual coletiva no estilo da pirâmide humana de "Abu Ghraib", ante o alarido dos sujeitos ativos que gritam: "fuma", "fuma", "fuma". Do ponto de vista jurídico processual, a principal importância na distinção dessas espécies de psicoterror no trabalho é quanto à natureza da tutela. Na hipótese de straining, ocorre tanto o dano de natureza individual quanto o de natureza coletiva.
O assédio moral e o straining não são apenas as duas mais modernas formas de violação dos direitos humanos no ambiente de trabalho, mas o resultado da ruptura nos moldes do totalitarismo com a tradição filosófico/religiosa que tinha no ser humano o paradigma histórico axiológico, centro de todos os valores. O psicoterror no trabalho viola a intimidade, a mais elementar manifestação da espontaneidade. Interessante recordar o motivo pelo qual Hannah Arendt, no início do século XX, lutava para fazer com que a intimidade integrasse o catálogo dos direitos humanos. Segundo ela, uma das características da ruptura totalitária é a promoção da desolação, que impede a vida privada, exacerba o desenraizamento e torna difícil o pensamento.
É possível que estejamos no umbral de Auschwitz. Quando se retira do homem cada uma das camadas sociais da superestrutura civil que o protege e ele se vê nu de frente do abismo e da angústia de não ter um lugar no mundo, surgem somente duas categorias bem distintas e que são inteiramente invisíveis no cotidiano da vida normal, onde impera o respeito aos direitos civis: a dos condenados e a dos salvos. Esta divisão, conforme lembra Primo Levi (I Sommersi e i Salvati, Einaudi, 1986), é ocultada da vida cotidiana, porque, normalmente, o homem não está só, mas amparado por um véu de garantias oriundas da norma jurídica e da norma moral. De fato, uma sociedade é considerada menos injusta quanto maior e mais sábias forem as leis que impedem ao pobre de ser miserável e ao poderoso prepotente. Em Auschwitz, a luta pela sobrevivência não conhece remissão, ressalta Primo Levi com a experiência de quem lá viveu, porque cada um é, desesperadamente, ferozmente, só. Se um prisioneiro vacila, não encontra quem lhe dê uma mão, mas certamente alguém que o abaterá, porque ninguém tem interesse em que um muçulmano [assim se chamavam os extenuados pela desnutrição] a mais se arrastasse ao trabalho. Quem não sabe se tornar um "organizador", um "arranjador", um "promoter" termina em breve "muçulmano". Uma terceira via existe na vida normal, o que, aliás, é a norma, não existe no campo de concentração: ali quem é temido é, ipso facto, um candidato a sobreviver.
O fenômeno da tolerância social para com o mal é mundial, do karoshi, que mata por overdose de trabalho no Japão, à birôla, que mata os sertanejos do Brasil por excesso de trabalho nas Usinas de açúcar e álcool do Sul. Sindicalistas denunciam que, numa fábrica da Renault na França, três trabalhadores teriam se matado devido às pressões decorrentes do modelo de gestão adotado pelo brasileiro Carlos Ghosn, conhecido como "Le Cost Killer" (Carta Capital, 11/7/07). Não é improvável que, se Adolf Eichmann estivesse vivo, estaria sendo disputado como executivo por muitas organizações. Ocorre que o medo, nem mesmo o terror são suficientemente eficazes para impedir por longo tempo uma reação à injustiça social, e a greve da COSIPA é uma prova. O que é indispensável para a sobrevivência do sistema que adota o mal por estratégia é a colaboração das próprias vítimas.
É a noção de injustiça que desencadeia uma reação ao sofrimento. O neoliberalismo, contudo, conseguiu operar uma clivagem entre sofrimento e injustiça, e isso se deu de modo relativamente fácil, diante da incapacidade dos sindicatos de reagir à brutalidade dos ataques endereçados à subjetividade dos trabalhadores, dada a total ignorância das lideranças dessa dimensão da vida. A banalização da malvadeza é a destruição da racionalidade ética e moral da relação de trabalho, todavia o capital, para sobreviver, depende daquelas condições de moralidade, sem as quais não é possível a cooperação, a colaboração, a vinculação, a confiança, o cuidado, a comunicação, em uma palavra, zelo. O zelo, porém, somente pode ser encontrado no trabalho vivo! Paradoxalmente, portanto, levar até o fim o projeto totalitário significa inviabilizar o processo produtivo. É, portanto, sob a tensão dessas duas distintas racionalidades que se desenvolvem os conflitos trabalhistas.
A compreensão da exigência de zelo, requerido tanto para o trabalho produtivo, quanto para o trabalho sujo, nos permite afirmar que o sistema não elimina as pessoas e sua subjetividade. Ao contrário, delas depende. Por isso, é perfeitamente factível reverter o processo de banalização da malvadeza no trabalho. A força do sistema reside na crença de sua inexorabilidade. Desenvolver uma crítica consistente ao sistema permite revelar como este se vale dos sujeitos, conduzindo-os à resignação e colaboração, assim resgatando a consciência da capacidade individual e coletiva de sujeito histórico, único capaz de fazer saltar o continuum da história. Como sugere Dejours, a construção da noção localizada de justiça está profundamente entrelaçada com a capacidade de lidar com a injustiça. Uma vez que os trabalhadores tomem coragem de manifestar publicamente o sofrimento e de se recusar a colaborar com o mal, vai permitir o reconhecimento público da vulnerabilidade da pessoa humana e a construção de uma barreira contra a banalização do mal.
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*Juíza do Trabalho integrante da Associação Juízes para Democracia e Doutora em Direito Trabalhista pela Universidade de Roma
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