O novo papel jurídico e institucional do Município
Floriano de Azevedo Marques Neto*
É sabido por todos que a Constituição de 1988 inovou na estrutura federativa brasileira, colocando o Município a ombrear com a União e Estados como ente federado autônomo (Cf. art. 18 da CF). Desde o advento da nova ordem constitucional, o papel e a autonomia dos Municípios restaram entre nós um tanto combalidos, indefinidos. De um lado, a indefinição de suas competências legislativas e materiais (englobadas, na maioria, sobre a locução "interesse local", conforme respectivamente os incisos I e V do art. 30 da CF). De outro, a incapacidade de auferir recursos para realizar seus objetivos, amesquinhando a autonomia constitucional pela dependência de transferências obrigatórias e voluntárias dos demais entes federados. A conjugação destes fatores levou a maioria dos Municípios, ressalvadas algumas capitais e cidades de pujança e relevância regional, a ser simulacro de entes autônomos, serventes apenas para acomodar interesses políticos locais. Situação que só se agravou pela multiplicação da criação de Municípios até o advento da Emenda Constitucional nº 25.
Esse quadro fez com que o "direito municipal" bastante propalado no final de década de 80 se esgotasse com a elaboração das Leis Orgânicas (Cf. art. 29, caput, da CF) e numa ou noutra experiência de leis específicas: os estatutos dos servidores, as leis de diretrizes educacionais para o ensino básico, e outras poucas. O advento da Lei federal de Licitações, absolutamente ampla, centralizadora e compreensiva, reduziu ainda mais esse campo de formulação jurídica desconcentrada.
Esse quadro tende, agora, a se alterar. Algumas leis recentemente editadas ou por vir, mesmo sem ter isso como objetivo principal, tendem a dar, finalmente, os contornos jurídicos e institucionais do Município dentro da federação.
A primeira é a Lei de Responsabilidade Fiscal que, ao impor um regime de adequação entre receitas e despesas para todos os entes federados, praticamente obrigou que os Municípios adequassem sua estrutura e controles de custos e estabelecessem uma política tributária municipal de modo a ter fontes próprias de receitas. Neste sentido, surge a necessidade de estabelecimento ou revisão dos critérios de cobrança do imposto predial e territorial urbano (tributo municipal por excelência) e das taxas municipais. Ainda daí decorre a necessidade de revisão dos critérios de remuneração do uso de bens municipais por particulares, sendo a cobrança pelo uso do subsolo apenas uma face mais aparente deste processo.
O debate em torno do uso das águas, consagrado pela Lei Federal nº 9.984/2000 e pela exploração dos serviços de saneamento básico, afora colocarem em debate a titularidade municipal sobre bens (recursos hídricos) e serviços públicos, obriga a que os Municípios repensem a questão urbana, quanto à dimensão ambiental e ao uso dos recursos escassos. Menos que disputar com a União e os Estados quem seja "dono" dessas utilidades públicas, é necessário o desenvolvimento pelos Municípios de programas integrados que façam frente ao problema ambiental do destino de resíduos e do uso múltiplo da água.
O mais importante marco na redefinição deste papel, porém, é o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01). Nele vemos, finalmente, definido um marco legal do urbanismo no país. E nesse marco o Município é central. Se pudéssemos definir uma função primordial para o Município, certamente esta seria a de ordenação urbanística, como aliás já preceitua a Constituição (Cf. art. 182 da CF). O advento do Estatuto da Cidade torna indesviáveis ao Município funções que deveriam estar já de há muito na sua pauta de prioridades. E, para fazer frente a elas, será necessário o desenvolvimento de inúmeros instrumentos jurídicos.
Outro setor que está prestes a sofrer transformações no âmbito das quais o Município deverá atuar é o transporte. A criação recente de órgãos regulatórios do setor de transporte (principalmente nos transportes terrestres, mas também no aquaviário) deve servir como um impulso para que os entes municipais, principalmente os mais populosos, revejam suas políticas de transportes de passageiros e reorganizem sua estrutura viária. Afinal, mesmo a mais longa das viagens se presta a levar alguém de um Município para outro. E não é possível se pensar os transportes sem articular as redes e serviços inter e intra municipais.
Por fim, fruto de todas estas transformações, há um forte vetor que obriga que os Municípios repensem os regimes de uso dos bens públicos de sua titularidade, desenvolvendo um novo tipo de relação com os particulares, especialmente aqueles que, direta ou indiretamente, se servem desse acervo patrimonial para explorar atividades econômicas.
O direito municipal que se imaginava nos idos de 1998 faleceu. Na verdade nem bem nasceu. O que agora se mostra é o desafio, especialmente para os juristas, de construir toda uma gama de instrumentos jurídicos que dêem contornos ao novo papel que os entes municipais assumem no quadro federativo brasileiro.
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Sócio da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques, Advocacia - Professor de Direito Administrativo da USP - Professor de Direito Público da PUC / SP