Médicos sem fronteiras
Juliana Guimarães Cruz*
Aos 28/5/2007, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) determinou a implantação de um novo sistema que permitirá aos planos de saúde o acesso a dados sigilosos dos pacientes que sejam a estes credenciados. Trata-se do novo modelo de guias de consultas e exames, denominado TISS (Troca de Informações de Saúde Suplementar).
Com efeito, de acordo com a Resolução nº 153/07 (clique aqui), desde 1º junho de 2007, os médicos deverão inserir, na nova guia, além dos rotineiros e usuais dados do paciente e dos exames necessários ao diagnóstico (ou ao seu aperfeiçoamento) – imprescindível para a determinação do tratamento e busca da cura –, nada mais, nada menos, do que o tipo mesmo de doença acometida, que, burocraticamente, vem traduzido pelo código CID (Classificação Internacional de Doenças).
Consoante a ANS, o objetivo desta nova metodologia seria nortear o intercâmbio de dados entre os planos de saúde e os prestadores de serviços, ensejando a melhora na qualidade de gestão, além de propiciar a coleta de dados epidemiológicos, importantes para a definição e planejamento de políticas de saúde.
Mas a questão não é e não deve ser tratada de modo tão simplista assim! Existem outros fatores e conseqüências absolutamente cruciais, que restam escondidas nesta aparente justificativa.
O ponto mais pungente da polêmica e que vem sendo discutido na mídia, é o reflexo desta decisão: a violação do sigilo médico-paciente; dever deste e direito daquele.
Com efeito, pelo Código de Ética Médica (clique aqui), aprovado e instituído pela Resolução nº 1.246, de 08/01/88 (DOU 26/01/88 - clique aqui), do Conselho Federal de Medicina, o sigilo é considerado um princípio fundamental da profissão, sendo que o médico, na letra do art. 11, verbis "deve manter sigilo quanto às informações confidenciais de que tiver conhecimento no desempenho de suas funções". Além disso, é reservado o Capítulo IX, dos arts. <_st13a_metricconverter productid="102 a" w:st="on">102 a 109, para o dito segredo médico, de onde se extrai, com especial apreço, as disposições dos arts. 106 e 108 que, respectivamente, proíbem que o médico preste, às empresas seguradoras, "qualquer informação sobre as circunstâncias da morte de paciente seu, além daquelas contidas no próprio atestado de óbito”, e que facilite “manuseio e conhecimento dos prontuários, papeletas e demais folhas de observações médicas sujeitas ao segredo profissional, por pessoas não obrigadas ao mesmo compromisso".
A preocupação do CFM (Conselho Federal de Medicina) possui respaldo constitucional, ainda que anterior à Constituição Federal de 1988 (clique aqui), promulgada em 05 de outubro. É que a Resolução supra foi recepcionada pela Carta Magna, assim como as normativas legais que garantiram as atribuições daquele órgão, quais sejam, Lei nº. 3.268, de 30/09/1957 (clique aqui), e o seu Decreto regulamentador, sob o nº. 44.045, de 19/07/1958 (clique aqui).
Nesse sentido, insta anotar que a Constituição Federal de 1988 foi resposta lógico-formal aos assaques dos tempos de ditadura militar. Não por razão diversa, o seu bojo instrumental e, principalmente, material é norteado por princípios democráticos e legitimadores da soberania popular. A outra face da mesma moeda é o repúdio à ingerência estatal – ainda que velada –, não apenas em termos políticos, mas, outrossim, sob a óptica humanística. Ou seja, o seu paradigma é a dignidade da pessoa humana, elevado a fundamento da República pelo art. 1º, III, seguindo a gramática e plataforma integrativa dos Direitos Humanos, já consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (clique aqui) e pelos Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, dos quais é signatária.
É nessa toada que se apresentam os direitos e garantias fundamentais, dispostos nos arts. 5º a 17 (Título II) do Texto Constitucional, dentre os quais destacamos – para a relevância do presente tema discutido –, o inserto no inciso X, que garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem de todas as pessoas, bem como assegura, por isto mesmo, o direito à indenização pelo dano material e/ou moral decorrentes de tais violações. Atente-se ao fato de que, na lógica do Estado Democrático de Direito, também este é responsável (verdade esta que não prospera nos Estados absolutos ou nos ditatoriais), e não apenas os particulares, de modo que eventual compensação indenizatória pode ser requerida também do ente público.
Pois bem. De modo objetivo, a berlinda a que os médicos foram jogados pode ser resumida no seguinte questionamento: se não fornecerem os dados do diagnóstico do paciente na nova TISS, correm o risco de terem as suas despesas glosadas (prática bastante comum) ou até de serem descredenciados dos planos de saúde para os quais prestam serviços, além de sofrerem um eventual processo administrativo e de incorrerem em multas por descumprimento de ordem da ANS. Mas, por outro lado, fornecendo-os, sujeitam-se a processos judiciais por danos morais, fundados na quebra do sigilo médico-paciente, além de processos disciplinares, no bojo do conselho médico regional a que estejam inscritos, por violação de preceitos insertos no Código de Ética Médica.
Aliás, a este respeito, já se manifestou expressamente o CFM, pela Resolução CFM nº 1.819, de 17/05/07 (DOU 22/05/07) (clique aqui), que vedou aos médicos o preenchimento, nas guias de consulta e de solicitação de exames das operadoras de planos de saúde (TISS), dos campos referentes à CID e ao tempo de doença, concomitantemente a qualquer identificação do paciente ou informação sobre o diagnóstico, "haja vista que o sigilo na relação médico-paciente é um direito inalienável do paciente, cabendo ao médico a sua proteção e salvaguarda" (art. 1º).
No que tange ao processo disciplinar, insta ressaltar que as penas previstas pela legislação (art. 22, da Lei nº 3.268/1957, e art. 17 do Decreto nº 44.045/1958) são severas, senão vejamos: advertência confidencial em aviso reservado, censura confidencial em aviso reservado, censura pública em publicação oficial, suspensção do exercício profissional até trinta dias, e cassação do exercício profissional, as referendum do Conselho Federal. É de se lembrar que, frente ao art. 142, do mencionado Código de Ética Médica, o médico é obrigado a acatar e respeitar os acórdãos e resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina. Ou seja, no caso concreto, caso descumpra a Resolução nº 1.819/07 (clique aqui), estará sujeito ao processo disciplinar e às penas supras colacionadas.
Quer-se dizer: de um dia para outro, o Estado Democrático de Direito, neste particular, está de pernas para o ar. Ora, não há se admitir que as mãos daqueles profissionais de que todos precisamos sejam atadas por atitudes estadistas flagrantemente inconstitucionais.
Não nos esqueçamos de que o médico, pessoa natural e cidadão que é, também é sujeito de todos os direitos e garantias insertos no Texto Constitucional. E dentre estas, uma em particular acaba por ser ferida, qual seja, o livre exercício profissional (art. 5º, XIII). Qualquer limitação a esse exercício deve advir de lei e da devida autoridade competente, e tal qual a Ordem dos Advogados Brasil recebeu competência, por lei, para determinar as limitações profissionais, em termos de qualificação, aos advogados, não é menos verdade que o Conselho Federal de Medicina goza da mesma competência frente aos profissionais da área médica. No nosso sentir, o mero risco dos médicos terem as suas despesas glosadas e, ainda pior, das sérias chances de descredenciamento dos planos de saúde, no caso de não preencherem a burocrática formalidade do dueto TISS-CID, e, ainda, este todos somados aos riscos de processos administrativos por descumprimento de determinação estatal, ensejam, sim, o repúdio a mais essa admoestação estatal, ferindo, mais uma vez, uma série de garantias constitucionais
Outro ponto importante, agora com vistas aos pacientes, é o risco de clivagem social e de criação de uma série de repudiados e rejeitados. Infelizmente, a gramática dos Direitos Humanos ainda é muito etéria e foi pouco absorvida, de modo que a consideração tem sentido. É que, se pensarmos na idéia estapafúrdia de quebra de sigilo médico-paciente, caracterizada pela divulgação da identificação do paciente com o seu diagnóstico, corre-se o risco de os planos de saúde criarem listas de pacientes mais dispendiosos – especialmente os crônicos –, não autorizando determinados exames e procedimentos e, quem sabe, vetando a renovação do contrato. E quem garante que tais listas não poderiam ser vendidas, intercambiadas entre os diversos planos ? Tal qual imaginado no filme GATTACA, ainda que guardadas as devidas proporções, corre-se o risco de uma segregação biológica.
O que nos deixa irresignados é que isto ocorra num país como a nossa pátria amada tupiniquim (não tão gentil assim), em que as autoridades públicas não compreendem ou se cegam às necessidades básicas de saúde da população, e que se apegam ao frágil subterfúgio da característica teórico-programática da saúde – mais uma desculpa para não distribuirem bem o orçamento, ou mesmo deixarem-no alimentando os seus anões viajantes, gordos e admiradores de grandes cuecões. Que a saúde como direito social e humano, inclusive garantido constitucionalmente como fundamental, não é respeitada, as filas de hospitais públicos já respondem. Mas, além disso, fato é que cerca de 40 milhões de brasileiros foram jogados ao sistema privado (de saúde), sufocados pelos planos de saúde, suas carências, suas limitações, seus preços exorbitantes.
O que simplesmente não dá para engolir é mais uma ação ingerente e hipócrita do governo, aqui representado pela ANS, no sentido, desta vez, de agredir os bens jurídicos mais preciosos: a vida e a liberdade. A matemática é simples: para os médicos fugirem da berlinda a que foram colocados, cercados de todos os lados por punições – disciplinares (CFM/CRM), descredenciamento dos (planos de saúde) e ações de danos morais (pelos pacientes) –, restar-lhes-á, apenas, obrigarem-se a restringirem os atendimentos (pelos menos os casos mais graves e/ou crônicos) às famosas consultas particulares.
Quem perde? Médico e paciente: aqueles, porque, em verdade, não estarão exercendo sua pela liberdade, podendo-se, até mesmo, afirmar que estarão sofrendo constrangimento ilegal por cerceamento da liberdade profissional; este, porque, na impossibilidade de pagarem as consultas particulares, ou aprenderão a conviver com a doença, ou morrerão, ou então procurarão outro médico que aceite atender pelo convênio, mas, neste caso, terão a sua intimidade violada caso o médico quebre o sigilo. É um ciclo absolutamente vicioso, desconfortante, inconstitucional e chancelado pelo Estado.
Insta ressaltar que louvamos, sim, uma ação estatal que vise ao recrudescimento (prático e real) de políticas de saúde Temos absoluta consciência de que tais ações dependem de dados fáticos, tais como estudo estatísticos de doenças, mas, todavia, não conseguimos vislumbrar a lógica da correlação entre tais dados e a identificação do paciente. Se é verdade que esse o único interesse da ANS, especialmente no que tange ao controle de epidemias, então qual seria a diferença da criação de dados estatísticos com a omissão da identificação dos pacientes, preservando-se o sigilo médico ?
Nesse sentido, entendemos que uma remodelação do novo sistema se faz imperativa, utilizando como "entreposto" o órgão competente legalemente para tanto: o Conselho Federal de Medicina. Desta forma, acreditamos que seria mais viável – juridicamente! –que a determinação aos médicos se desse no sentido do controle dos diagnósticos, independente da identificação dos pacientes, com seu posterior encaminhamento, com alguma periodicidade – independente se advindos de consultas particulares ou por meio de plano de saúde –, para o Conselho Regional de Medicina a que inscritos, os quais os repassariam, em determinado prazo, para o Conselho Federal; este, sim, poderia compilá-los e prestar as informações à ANS.
Somente desta maneira todos os direitos seriam preservados e idéia de cumprimento de função social e de solidariedade na conjugação de esforços (entre sociedade civil e governo), para a realização e implementação de políticas públicas de saúde de interesse público, seria plenamente realizada. Reiteramos: não há razão lógica ou prática para que a intermediação recaia nos planos de saúde, a não ser por lobbies e interesses particulares, que em nada atendem aos desejos, anseios e direitos da população... em nenhum grau! Aliás, acreditamos que essa nossa proposta atenderia bem mais aos supostos interesses alegados pela ANS, já que, no atual sistema, os dados estatísticos seriam falhos, porque somente considerariam os usuários dos planos de saúde, mas olvidariam de parcela relativa que não os utiliza. É, portanto, falho e falacioso.
Fica a sugestão e convite ao debate, na esperança de que o Conselho Federal de Medicina use e abuse de sua competência legal para auxiliar na resolução das questões de interesse da classe médica, bem como da própria população, já que absolutamente consoante aos seus objetivos sociais. Para tanto, medidas jurídicas podem e devem ser ensaiadas, como, por exemplo, um mandado de segurança coletivo, ou outro instrumento garantidor, sem se perder de vista a gramática constitucional dos direitos e garantias fundamentais e a agenda dos Direitos Humanos.
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*Mestranda em Filosofia do Direito na PUC/SP, Bacharel em Direito pela PUC/SP (2004), instituição na qual é professora assistente de Ciência Política e Teoria Geral do Estado.