Direito dos direitos humanos e a regra interpretativa "pro homine" (segunda parte)
Luiz Flávio Gomes*
As normas de direitos humanos, como se vê, se retroalimentam1, se complementam (não são excludentes, sim, complementares). Vale para elas a hermenêutica da compatibilização ou da otimização dos direitos. O DIDH (Direito internacional dos Direitos Humanos), a partir do momento em que é assumido por um Estado, infiltra-se no direito interno para contribuir para a mais completa otimização dos direitos. Nos termos do art. 29 da CADH, "nenhuma disposição sua pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo ou o exercício de qualquer direito ou liberdade previsto no direito interno (...) suas normas não podem limitar outros direitos previstos em outros tratados ou convenções".
Conclusão: os tratados de direitos humanos, precisamente porque são celebrados não somente para estabelecer um equilíbrio de interesses entre os Estados, senão, sobretudo, para garantir o pleno gozo dos direitos e liberdades do ser humano, devem ser interpretados restritivamente quando limitam os direitos do ser humano e, ao contrário, ampliativamente quando possibilita o seu desfrute ou gozo. Nisso reside o conhecido princípio pro homine. Uma norma do direito interno, ainda que seja infraconstitucional, se contempla um determinado direito com maior amplitude que os THD, é ela que vai reger o caso concreto. Sempre deve ser aplicada a norma mais ampliativa, a que mais otimiza o exercício do direito.
Em outras palavras: diante do concurso simultâneo de normas (concorrência de normas ou conflito aparente de normas), sejam elas internacionais, sejam elas internacionais e internas (domésticas), observando-se que estas últimas podem ser constitucionais ou não, deve (sempre) ser eleita e aplicada a norma (internacional ou doméstica) (a) que garante mais amplamente o gozo do direito ou (b) que admita menos restrições ao seu exercício ou (c) que sujeite as restrições a um maior número de condições2. Muitas vezes é a norma doméstica que prepondera sobre a internacional. Outras, ao contrário.
Tudo o que acaba de ser exposto tem por fundamento, como dissemos, as normas de reenvio citadas (art. 5º, § 2º, da CF; art. 29 da CADH; art. 5º do PIDCP), que estabelecem "vasos comunicantes" entre todas as normas sobre direitos humanos, devendo sempre preponderar a que mais amplia o exercício do direito, por força do princípio pro homine.
Na esteira do que acaba de ser afirmado, impõe-se ao STF rever sua clássica posição no sentido de que não cabe recurso contra a sentença condenatória proferida em sede de competência originária (STF, RHC 79.785-RJ).
"Em processo criminal da competência originária do Tribunal de Justiça, não é possível a interposição de recurso para o STJ objetivando o reexame da matéria de fato. Com base nesse entendimento, o Tribunal, por maioria, negou provimento a recurso em habeas corpus em que se pretendia o seguimento de "recurso inominado" com força de apelação junto ao STJ - em favor de condenada por suposta prática de crime contra o INSS, julgada originariamente pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ante a prerrogativa de um dos co-réus, juiz de direito - com base no princípio da isonomia e no duplo grau de jurisdição, conforme dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, 2: "Toda pessoa acusada de delito tem ... " h: "direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior."). O Tribunal considerou que a CF enumera taxativamente os recursos cabíveis para o STF e o STJ e que a Convenção possui natureza de lei ordinária, não estando a CF, portanto, obrigada a observar as disposições nela contidas, além do que o duplo grau de jurisdição não é uma garantia constitucional. Vencido o Min. Marco Aurélio, que entendia ser possível, na espécie, o seguimento do recurso, por aplicação analógica do art. 105, II, a, da CF, o qual atribui ao STJ o julgamento, em recurso ordinário, de habeas corpus decididos em única instância pelos tribunais dos Estados, e, por fundamento diverso, o Min. Carlos Velloso, por entender que a CF consagra como direitos fundamentais aqueles reconhecidos em tratados de que o Brasil seja signatário, por expressa disposição do art. 5º, § 2º da CF ("Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".). Precedentes citados: ADInMC 1.480-DF (julgada em 4.9.97, acórdão pendente de publicação; v. Informativo 82) e HC 72.131-RJ (julgado em 22.11.95, acórdão pendente de publicação; v. Informativo 14). RHC 79.785-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 29.3.2000."
O entendimento do STF destoa completamente do que ficou asseverado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no informe 50/2000, que invoca em seu apoio uma comunicação do Comitê de Direitos Humanos da ONU de número 69/1979. Não se pode ignorar que a jurisprudência firmada pela Comissão e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (no sentido de que o duplo grau de jurisdição no âmbito criminal é direito impostergável do condenado) serve de guia interpretativo para as decisões internas (cf. arts. 62 e 64 da CADH)3.
Diante de tudo quanto ficou exposto, não se pode deixar de esclarecer que o princípio pro homine possui um duplo significado: (a) diante de uma norma singular, ele orienta a uma interpretação extensiva dos direitos humanos e limitativa das suas restrições (cf. CIDH, Opinião Consultiva 05/1985; (b) diante de um concurso de normas (conflito aparente de normas), incide a que mais amplia o exercício do direito4. Mesmo que se trate de duas normas internacionais, aplica-se a mais ampla (Opinião Consultiva da CIDH 05/1985). Se um direito está contemplado na CADH e se essa situação jurídica também está prevista em outro tratado, deve sempre preponderar a norma mais favorável à pessoa humana.
<_st13a_personname w:st="on" productid="Em um Estado">Em um Estado constitucional e humanista de Direito, que conta com boa inserção nas relações da comunidade internacional, não pode deixar de ser observada a regra interpretativa pro homine, ainda que, formalmente, o DIDH seja reconhecido com status apenas supralegal, mas inferior à Constituição. É que é a própria Constituição (e, portanto, a vontade do legislador constituinte) que manda observar "outros" direitos contemplados nos tratados internacionais (CF, art. 5º, § 2º). O que vale, então, não é a posição formal dos tratados, sim, o sentido material das normas sobre direitos humanos.
A Constituição, destarte, não pode ser vista como um conjunto estático de normas. Tampouco esse raciocínio apresenta-se como correto para os tratados de direitos humanos. Ao contrário: todas as normas sobre direitos humanos se complementam (e se retroalimentam). E vale para o caso concreto a que assegura o exercício mais amplo do direito, ainda que seja uma norma do direito ordinário.
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1Cf. BIDART CAMPOS, Germán J., La interpretación del sistema de derechos humanos, Buenos Aires: Ediar, 1994, p. 80.
2Cf. GARCÍA, Luis M., “El derecho internacional de los derechos humanos”, em Los derechos humanos em el proceso penal, Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2002, p. 78.
3Cf. GARCÍA, Luis M., “El derecho internacional de los derechos humanos”, em Los derechos humanos em el proceso penal, Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2002, p. 87.
4Cf. GARCÍA, Luis M., “El derecho internacional de los derechos humanos”, em Los derechos humanos em el proceso penal, Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2002, p. 105 e ss.
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*Fundador e Coordenador Geral da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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