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Dissolução de sociedades digitais: Empresas fantasmas e sócios virtuais

O artigo analisa a dissolução de sociedades digitais, abordando desafios jurídicos, smart contracts, responsabilidade dos sócios e a necessidade de regulamentação para negócios descentralizados.

25/3/2025

O que acontece quando uma sociedade é formada por sócios que nunca se viram pessoalmente? E quando uma empresa é dissolvida sem que seus fundadores tenham assinado um único documento físico?

O avanço da tecnologia permitiu a criação de startups remotas, negócios descentralizados e sociedades empresariais formadas integralmente por meio digital. Hoje, é possível que uma empresa opere com sócios espalhados pelo mundo, sem que nunca tenham se reunido presencialmente ou sequer mantido contato direto. Se por um lado isso impulsiona a economia digital, por outro, traz desafios inéditos ao Direito Societário.

A legislação brasileira – especialmente o CC e a lei das sociedades anônimas – foi elaborada em um contexto de interações presenciais e contratos físicos. Mas como aplicar essas normas a sociedades puramente digitais? Como dissolver uma empresa em que os sócios estão em países diferentes e nunca se encontraram? Quais são os limites da autonomia privada na era digital?

Diante desse cenário, este artigo busca responder: como o Direito Societário deve evoluir para lidar com essas novas realidades empresariais?

Empresas digitais e o surgimento dos sócios virtuais

Se antes a constituição de uma empresa dependia de reuniões presenciais, escrituras físicas e registros tradicionais, hoje esse modelo já não é a única realidade. A ascensão das startups digitais, fintechs e negócios descentralizados trouxe um novo paradigma: empresas cujos sócios nunca se encontraram pessoalmente e que operam exclusivamente no ambiente digital.

A nova realidade societária

Com a digitalização dos negócios, surgiram estruturas empresariais em que não há uma sede física nem reuniões presenciais entre os fundadores e investidores. Alguns modelos que exemplificam essa nova configuração societária incluem:

Essa nova forma de sociedade empresarial é impulsionada por tecnologias como blockchain, criptomoedas e contratos digitais, que permitem a formalização de parcerias sem a necessidade de um contato físico. Mas como essas empresas funcionam na prática?

Exemplos práticos

O mercado já conta com diversos exemplos de sócios virtuais, cujas relações empresariais existem apenas no ambiente digital:

Com essa nova realidade, surge uma questão essencial: o que acontece quando há um conflito entre esses sócios virtuais? Como o Direito pode regular sociedades que nunca existiram no mundo físico?

O próximo tópico abordará os desafios jurídicos da dissolução dessas empresas digitais e a aplicação do Direito Societário às novas realidades empresariais.

Como o CC enxerga as startups remotas?

A legislação brasileira foi criada para regular sociedades empresariais tradicionais, mas a ascensão das startups remotas e negócios descentralizados desafia essa estrutura. O CC prevê requisitos específicos para a constituição de sociedades, mas será que essas regras são compatíveis com empresas que existem apenas no ambiente digital?

Requisitos legais para a constituição de sociedades no Brasil

O CC estabelece que a criação de uma empresa exige um contrato social ou estatuto registrado na Junta Comercial. Esse documento define a estrutura societária, a divisão de cotas e as responsabilidades dos sócios. No entanto, a forma desse contrato evoluiu:

O contrato social pode ser 100% digital?

Sim. Com a lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) e a digitalização dos registros mercantis, empresas podem ser abertas e administradas digitalmente, utilizando assinaturas eletrônicas.

Precisa haver registro físico?

Não necessariamente. A Junta Comercial aceita documentos assinados eletronicamente, dispensando a presença física dos sócios. No entanto, algumas exigências burocráticas, como a necessidade de um domicílio fiscal, ainda impõem desafios para startups sem sede física.

Essas mudanças permitiram a criação de empresas com sócios que nunca se encontraram pessoalmente, mas isso levanta outro ponto: como garantir que esses sócios realmente compartilham o interesse na sociedade?

Affectio societatis em startups remotas

O princípio da affectio societatis — ou seja, a vontade mútua dos sócios de se manterem associados — é fundamental para a validade de uma sociedade. Nos modelos tradicionais, essa vontade fica evidente nas interações presenciais e nas decisões coletivas. Mas como se comprova essa intenção em startups remotas?

Empresas que operam exclusivamente por meio de contratos digitais e plataformas de gestão remota criam um novo desafio para o conceito clássico de affectio societatis.

Alguns negócios utilizam smart contracts e mecanismos automatizados de governança, o que pode levar a conflitos sobre a participação efetiva dos sócios.

Em uma dissolução societária, um sócio pode alegar que não tinha ciência da gestão e das decisões, buscando invalidar sua responsabilidade.

Esse cenário cria um novo problema jurídico: até que ponto um sócio pode ser responsabilizado por atos da empresa se nunca participou diretamente da gestão?

Responsabilidade dos sócios em negócios descentralizados

A responsabilidade dos sócios em startups remotas pode se tornar um campo fértil para disputas judiciais. O CC prevê que os sócios respondem na medida da sua participação na sociedade, mas o que acontece quando uma empresa opera sem interação direta entre os membros?

Sócios podem alegar desconhecimento da gestão para fugir de responsabilidades?

Sim, e essa estratégia pode ser usada para contestar dívidas da empresa, obrigações trabalhistas ou contratos firmados sem o consentimento direto do sócio.

Como a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC) se aplica nesses casos?

Se houver indícios de abuso da personalidade jurídica, como desvio de finalidade ou confusão patrimonial, a Justiça pode ignorar a separação entre a empresa e os sócios, responsabilizando diretamente aqueles que se beneficiaram da estrutura societária.

O desafio jurídico aqui é evidente:

Essas questões mostram que o Direito Societário ainda precisa evoluir para lidar com a nova realidade das empresas digitais. O próximo tópico explorará como os tribunais têm lidado com essas disputas e quais precedentes já existem sobre dissolução de sociedades remotas.

Dissolução de sociedades digitais: Problemas e soluções

A dissolução de sociedades empresariais já é um processo desafiador no contexto tradicional, envolvendo a citação dos sócios, a partilha de ativos e a resolução de pendências contratuais e tributárias. No entanto, quando se trata de startups remotas e negócios digitais, a situação se torna ainda mais complexa. Empresas cujos sócios nunca se encontraram fisicamente e cujos ativos são majoritariamente digitais desafiam o Direito Societário e exigem novas soluções.

Desafios na dissolução de startups e sociedades remotas

A dissolução de empresas digitais traz obstáculos inéditos para o sistema jurídico. Entre os principais desafios, destacam-se:

1. Como citar um sócio que mora em outro país e nunca forneceu um endereço físico?

2. Como garantir a divisão correta dos ativos quando tudo está em formato digital?

Diferente das empresas tradicionais, startups remotas podem não ter bens físicos para dividir. Seus ativos podem incluir:

A partilha desses ativos levanta questionamentos como:

3. Como lidar com smart contracts que podem continuar operando autonomamente mesmo após a dissolução da empresa?

Casos concretos na jurisprudência brasileira e internacional

A dissolução de startups digitais e sociedades remotas já começou a aparecer nos tribunais. Embora o Direito Societário ainda esteja se adaptando, alguns casos ilustram os desafios dessa nova realidade:

Uma empresa de tecnologia criada remotamente por três sócios enfrentou problemas na dissolução quando um dos fundadores, residente na Ásia, não foi encontrado para assinar os documentos. O Tribunal autorizou a dissolução unilateral, mas a divisão dos ativos digitais foi objeto de disputa, pois os criptoativos estavam sob controle do sócio ausente.

Nos Estados Unidos, uma startup de SaaS - Software as a Service foi dissolvida judicialmente sem que os sócios precisassem comparecer fisicamente. A dissolução foi baseada em contratos digitais previamente estabelecidos, e a partilha dos ativos digitais foi feita via blockchain, sem intervenção estatal.

Uma DAO - Organização Autônoma Descentralizada que operava um marketplace de NFTs foi processada por um ex-sócio que alegava não ter recebido sua parte nos lucros. O tribunal determinou que a DAO deveria ser dissolvida, mas a execução da decisão foi desafiadora, pois os contratos inteligentes da DAO continuaram a operar normalmente na blockchain.

A dissolução de empresas digitais ainda carece de regulamentação específica no Brasil, e os tribunais têm enfrentado dificuldades em aplicar regras tradicionais a esses novos modelos de negócio. A citação de sócios virtuais, a divisão de ativos digitais e a interrupção de contratos automatizados são desafios urgentes que precisarão ser solucionados para garantir segurança jurídica às startups e sociedades remotas.

O futuro do Direito Societário na era digital

O avanço das tecnologias digitais trouxe desafios inéditos para o Direito Societário, especialmente no que se refere à constituição e dissolução de sociedades empresariais formadas exclusivamente online. O modelo tradicional, baseado na presença física dos sócios e no registro documental em órgãos competentes, não se adapta completamente à realidade das startups remotas, sociedades descentralizadas e empresas que operam via blockchain. Diante disso, é fundamental discutir possíveis soluções regulatórias para garantir segurança jurídica, transparência e previsibilidade nessas novas formas de organização empresarial.

Possíveis soluções regulatórias

Os ordenamentos jurídicos ao redor do mundo ainda estão se ajustando a essa nova realidade. No Brasil, algumas iniciativas já surgiram, mas ainda há lacunas significativas. Algumas possíveis soluções incluem:

1. A necessidade de marcos legais específicos para startups e sociedades digitais

O CC e a lei das sociedades anônimas (lei 6.404/76) não preveem expressamente modelos de negócios 100% digitais, nos quais os sócios podem nunca ter se encontrado pessoalmente.

A criação de marcos regulatórios específicos poderia estabelecer regras claras sobre:

Alguns países já avançaram nesse sentido. Estônia e Suíça possuem regulamentações específicas para empresas digitais e DAOs - Organizações Autônomas Descentralizadas.

2. O impacto do marco legal das startups (LC 182/21) e da digitalização dos contratos societários

O marco legal das startups, aprovado pela LC 182/21, trouxe avanços significativos ao permitir:

No entanto, a lei não aborda questões como:

Com a evolução das startups e das sociedades empresariais descentralizadas, uma ampliação do marco legal das startups pode ser necessária para incluir diretrizes mais específicas para esse modelo de negócio.

3. O uso de blockchain e contratos inteligentes para facilitar processos de dissolução

Contratos inteligentes (smart contracts) poderiam ser uma solução eficiente para reduzir disputas em startups digitais, pois:

A integração do blockchain ao Direito Societário permitiria maior segurança jurídica, pois:

Conclusão

O Direito Societário precisa evoluir rapidamente para acompanhar as novas realidades empresariais. Startups digitais, sociedades formadas por sócios virtuais e modelos descentralizados de negócios não podem permanecer à margem da legislação, sob o risco de gerar insegurança jurídica, fraudes e conflitos societários sem solução eficaz.

Os desafios são claros:

A regulamentação dessas questões é urgente. Empresas fantasmas, criadas por sócios que nunca se conhecem pessoalmente, podem se tornar um problema para credores, investidores e para o próprio Estado, dificultando a responsabilização jurídica.

O futuro do Direito Societário dependerá da capacidade do legislador em equilibrar inovação e segurança jurídica, criando mecanismos ágeis e eficazes para que empresas digitais possam operar com transparência, responsabilidade e previsibilidade legal. Sem isso, corremos o risco de assistir a uma explosão de disputas societárias e colapsos empresariais, sem um arcabouço normativo capaz de resolvê-los.

_________

BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm.

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ESTÔNIA. e-Residency Program. Disponível em: https://e-resident.gov.ee.

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SOUZA, Fábio. Contratos Inteligentes e Blockchain: O impacto no Direito Societário. Revista de Direito Empresarial, v. 12, p. 30-45, 2022.

GOMES, Orlando. Transformações do Direito Societário na Era Digital. São Paulo: Editora Jurídica, 2021.

CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Digitalização e Regulação de Startups. Disponível em: https://www.cnj.jus.br.

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COASE, Ronald. The Nature of the Firm. Economica, v. 4, n. 16, p. 386-405, 1937.

SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

Gabriel de Sousa Pires
Advogado, ex-Conselheiro Seccional e atual membro da Comissão de Seleção da OAB-DF. Especialista em Direito Contratual, Imobiliário e Empresarial. Sócio da J Pires Advocacia & Consultoria

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