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A nova política nacional de qualidade do ar: Breves comentários

Lei 14.850/24 cria a política nacional de qualidade do ar, inspirada no "Clean Air Act", e busca reduzir poluentes, monitorar o ar e incentivar tecnologias limpas.

20/12/2024

Uma interessante análise a ser feita é que o avanço da sociedade atual ocorre de forma diretamente proporcional ao da geração de resíduos. A poluição atmosférica em especial é uma das formas de contaminação que gera maior impacto em nosso planeta. Nesse contexto, é pertinente mencionar a promulgação da lei 14.850, em 2/5/24. Conhecida como Política Nacional de Qualidade do Ar, a norma tem por objetivo regular o meio ambiente atmosférico, fixando princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes relativas à gestão da qualidade do ar em todo o território nacional.

Inspirada pelo “Clean Air Act” americano (em tradução livre, “Lei do Ar Limpo”), a recente política consagra conceitos relevantes e há muito discutidos sobre o tema, na expectativa de oferecer mecanismos modernos e capazes de amenizar a crescente contaminação atmosférica observada desde a revolução industrial. A exploração predatória de matérias-primas e a industrialização desmedida influenciam inúmeras dinâmicas globais com impacto direto sobre a saúde humana. Entre os efeitos da poluição do ar destacam-se as mudanças climáticas, o derretimento das calotas polares, a diminuição do pH dos oceanos e as alterações no ciclo do carbono.

Ao longo do tempo, pode-se notar alguns marcos internacionais, como a Conferência de Estocolmo de 1972, o Protocolo de Montreal de 1987, a RIO-92, o Protocolo Quioto de 1997 e o Acordo de Paris de 2015, que trataram do uso do espaço atmosférico e das formas de reduzir sua contaminação. No contexto nacional, vemos um espírito de vanguarda, com a elaboração de normas jurídicas preocupadas com o devido manejo e proteção do meio ambiente atmosférico e que serviram de referência para o Direito Ambiental. A própria CF/88 reservou um artigo todo para dispor sobre esse tema, consagrando-o como um direito fundamental. O art. 225 da CF estabelece que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”1

Além disso, a Política Nacional de Meio Ambiente (lei 6.938 de 1981) inovou ao traçar objetivos para a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental, e ao inserir a “atmosfera” como verdadeiro recurso ambiental2. A lei de crimes ambientais (lei 9.605 de 1998) e inúmeras resoluções CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente que tratam do assunto prepararam o terreno para a elaboração da robusta lei 14.850 de 2024. Vale destacar duas normas infralegais de referência: a resolução CONAMA 005, de 1989, que instituiu o PRONAR - Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar, como um dos instrumentos básicos da gestão ambiental, com foco na melhora da qualidade do ar e no atendimento aos padrões de qualidade; e a resolução CONAMA 491, de 2018, que atualizou os parâmetros atmosféricos e fixou novas metas de qualidade do ar a serem cumpridas.

Convém mencionar também o papel de protagonismo da Cetesb - Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, que é uma referência no controle, fiscalização, monitoramento e licenciamento de atividades geradoras de poluição, com a preocupação principal de preservar e recuperar a qualidade das águas, do ar e do solo. A empresa pública paulista inovou ao instalar estações de medição diária no Estado, fazendo o controle contínuo do ar e vigilando o respeito aos limites atmosféricos dentro de São Paulo, promovendo estudos específicos sobre o tema que auxiliam na edição de muitas políticas públicas.

Agora, a lei da Política Nacional de Qualidade do Ar estabeleceu um novo marco normativo para a área, atualizando, adaptando e aperfeiçoando os instrumentos legais previamente estabelecidos, além de preparar o país para os desafios que se apresentam no contexto atual de mudanças climáticas e seus eventos extremos, como as chuvas que abalaram o Rio Grande do Sul e a seca histórica que se estendeu sobre o Amazonas. Das propostas de maior impacto, destacam-se as metas de redução das emissões de poluentes (art. 4º, inciso IV), o advento legal de um sistema integrado de monitoramento contínuo da qualidade do ar (art. 4º, inciso VIII e art. 5º, inciso VIII), a cooperação de diferentes entidades no controle atmosférico (art. 7º), o incentivo ao uso de tecnologias limpas e de baixo impacto (art. 4º, inciso V e art. 19, inciso II) e a adoção de práticas sustentáveis nos âmbitos público e privado (art. 3º, inciso III). Além disso, o marco normativo prevê a realização de auditorias e fiscalizações como forma de proporcionar um panorama concreto de qualquer situação atmosférica que venha a ocorrer, possibilitando uma análise comparativa do momento com o histórico climático da região.

A peça legislativa, apesar de relativamente curta, com 23 artigos, apresenta de forma prática e precisa o conjunto de medidas que a Administração Pública irá adotar na defesa do meio ambiente atmosférico. Seu art. 3º estabelece princípios3 a serem seguidos na defesa da qualidade do ar, servindo de parâmetro e norma objetiva de submissão obrigatória, além de fornecer uma fonte legal interpretativa que dialoga com todo o complexo jurídico presente e futuro.

Ato contínuo, a política reafirma o importante papel de entidades já existentes, atribuindo, por exemplo, ao CONAMA o papel de estabelecer padrões e diretrizes nacionais de qualidade do ar (art. 6º da lei 14.850/244). Ainda inclui disposições já estabelecidas em leis ambientais, atualizando conceitos defasados e munindo a Administração Pública de meios capazes de enfrentar os desafios climáticos modernos. Considerando a crescente disseminação de contaminantes no ar, a política espera dar força aos protocolos já definidos pelo CONAMA, via atos infralegais, na defesa do ambiente atmosférico. Ademais, o marco traz grande respaldo às balizas impostas e lhes confere status legal, exercendo pressão sobre os setores poluidores para a promoção de ações sustentáveis e mantenham suas emissões dentro dos limites da legalidade.5

A lei se alinha com a grande preocupação que trazem os cada vez mais comuns e alarmantes eventos climáticos extremos, a preocupação com a saúde pública, o bem-estar e a qualidade ambiental para as presentes e futuras gerações (aludindo ao caput do art. 225 da CF), buscando estimular o devido cuidado com a poluição atmosférica, além de assegurar o monitoramento do ar e fomentar a inovação científica com a adoção de tecnologias limpas. Nessa direção, o art. 5º da Política Nacional de Qualidade do Ar elenca os mecanismos que serão utilizados para se realizar o controle da poluição atmosférica, quais sejam:

Art. 5º

São instrumentos da Política Nacional de Qualidade do Ar:

I - os limites máximos de emissão atmosférica;

II - os padrões de qualidade do ar;

III - o monitoramento da qualidade do ar;

IV - o inventário de emissões atmosféricas;

V - os planos, os programas e os projetos setoriais de gestão da qualidade do ar e de controle da poluição por fontes de emissão;

VI - os modelos de qualidade do ar, os estudos de custo-efetividade e a proposição de cenários;

VII - os conselhos de meio ambiente e, no que couber, os de saúde, bem como os órgãos colegiados estaduais e municipais destinados ao controle social;

VIII - o Sistema Nacional de Gestão da Qualidade do Ar (MonitorAr);

IX - os incentivos fiscais, financeiros e creditícios; e

X - o Fundo Nacional do Meio Ambiente, o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 

Esta importante disposição positiva um rol exemplificativo de instrumentos com que o Estado poderá contar para coibir eventuais emissões desmedidas. Nota-se, também, clara referência às resoluções do CONAMA que já previam, por exemplo, o estabelecimento de limites máximos de emissão atmosférica, padrões de qualidade do ar e a elaboração de estudos técnicos realizados pelo Órgão. Destaca-se também a responsabilidade do órgão pelo controle da qualidade do ar. 

Outro importante aspecto levantado pela lei gira em torno dos planos de gestão da qualidade do ar (art. 13)6. Esse complexo prevê uma atuação conjunta de diferentes entidades na formulação de planos e no acompanhamento da qualidade do ar, verificando o respeito aos limites legais e planejando ações de remediação, abrangendo: (I) o Plano Nacional de Gestão da Qualidade do Ar; (II) os Planos Estaduais e Distrital de Gestão da Qualidade do Ar; e (III) o Plano para Episódios Críticos de Poluição do Ar. Os planos serão integrados por órgãos espalhados por todo o país, estudando as mais diversas situações atmosféricas e traçando estudos regionalizados que contribuirão para a elaboração de políticas públicas integradas.

Apesar da demora de nosso país em conseguir editar uma política para a qualidade do ar, a nova lei representa um importante avanço na busca da preservação ambiental, tornando-se um verdadeiro marco normativo para o país e, quiçá, para o mundo. Suas disposições esperam oferecer à Administração Pública meios para o devido controle e melhoria da qualidade do ar no Brasil, consolidando instrumentos jurídicos já consagrados na defesa do meio ambiente e dando advento a novas formas de combate a irregularidades, estimulando o esforço conjunto de diferentes setores na proteção do meio ambiente e na adoção de práticas sustentáveis. Assim, em conjunto com o art. 225 da CF e demais normas, a nova lei forma um microcosmo normativo voltado para a proteção e tutela do meio ambiente atmosférico, apto a enfrentar os desafios atuais.

________

1 Artigo 225, caput, Constituição da República Federativa do Brasil.

2 Art. 3º - Para os fins previstos nesta lei, entende-se por:

V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. (grifo nosso).

3 Art. 3º São princípios da Política Nacional de Qualidade do Ar:

I - a prevenção e a precaução;

II - o poluidor-pagador e o protetor-recebedor;

III - o desenvolvimento sustentável;

IV - o respeito às diversidades locais e regionais;

V - o direito da sociedade à informação e ao controle social;

VI - a razoabilidade e a proporcionalidade;

VII - o cuidado com as populações mais vulneráveis, especialmente os grupos sensíveis; e

VIII - a visão sistêmica, na gestão da qualidade do ar, que considere as diferentes fontes de emissões e as variáveis ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública.

4 Art. 6º A União, por meio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), estabelecerá padrões nacionais de qualidade do ar que integrarão o Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar).

5 Art. 1º Esta lei institui a Política Nacional de Qualidade do Ar e dispõe sobre seus princípios, objetivos e instrumentos, bem como sobre as diretrizes relativas à gestão da qualidade do ar no território nacional.

Parágrafo único. Estão sujeitas à observância desta lei as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis pela emissão de poluentes atmosféricos, pela gestão da qualidade do ar e pelo controle da poluição. (grifo nosso).

6 Art. 13. São planos de gestão da qualidade do ar:

I - o Plano Nacional de Gestão da Qualidade do Ar;

II - os Planos Estaduais e Distrital de Gestão da Qualidade do Ar; e

III - o Plano para Episódios Críticos de Poluição do Ar.

§ 1º Os Planos Estaduais e Distrital de Gestão da Qualidade do Ar deverão ser elaborados pelo órgão ambiental estadual ou distrital e aprovados pelo conselho de meio ambiente correspondente.

§ 2º É assegurada ampla publicidade ao conteúdo dos planos de gestão da qualidade do ar previstos no caput deste artigo, observado o disposto na Lei nº 10.650, de 16 de abril de 2003. 

Édis Milaré
Advogado fundador de Milaré Advogados. Professor e consultor em Direito Ambiental; Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Criador e 1° Coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1992/1994).

Francisco Almeida
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Colaborador de Milaré Advogados

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