Cumpre aos operadores do Direito, em sua função de defesa da lei e dos direitos, o dever de suscitar discussões acerca de assuntos que envolvam a garantia da justiça e da eficácia do ordenamento jurídico.
De tal modo, cumpre-nos invocar a importância do respeito ao devido processo legal, princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro, previsto no artigo 5º, LIV, CRFB, que no processo penal assume especial relevância, ao vislumbrarmos possíveis ameaças, ainda que, no atual contexto político, jurídico e social, se possam atribuir contornos indesejáveis aos debates referentes ao tema.
Por sua vez, para instrumentalização do devido processo legal no âmbito do processo penal, utiliza-se no Brasil o sistema acusatório, que se caracteriza, notadamente, por uma clara separação entre as funções de acusar, defender e julgar.
Assim, o Ministério Público, ou o autor da ação penal, exerce a função de acusador, cabendo ao réu o exercício de seu direito de defesa, por meio de seu representante legal, enquanto um juiz imparcial é responsável por conduzir o processo e decidir sobre o caso, respeitando a observância da garantia constitucional do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV).
Nesse sentido, o respeitado professor, Aury Lopes Jr, nos diz:
"O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que sentenciará, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal. Também conduz a uma maior tranquilidade social, pois se evitam eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do juiz 'apaixonado' pelo resultado de seu labor investigador e que, ao sentenciar, olvida-se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o início da investigação"1
Esse modelo, por seu turno, prioriza a equidade, a publicidade, o contraditório e a ampla defesa, visando assegurar que todas as partes tenham a oportunidade de apresentar suas provas e argumentos a um juízo imparcial.
Por outro lado, o sistema inquisitorial, que tem raízes na Idade Média com a Santa Inquisição, concentra na figura do juiz um papel ativo na investigação e na determinação da verdade dos fatos, de maneira que o juiz atua não apenas como um árbitro, mas também como investigador.
Inevitável, portanto, será o comprometimento da isenção do julgador, de acordo com esse modelo, por ocasionar um desequilíbrio entre as partes, diante da potencial desvantagem ocasionada ao réu, que terá no juiz um possível acusador.
Tais implicações inoportunas repercutiram na preocupação com a aplicação do princípio da inércia judicial no processo penal democrático, exigindo que o juiz tenha uma atividade probatória complementar, sem jamais se colocar na posição de parte, principalmente, no papel da acusação, com vistas a garantir a justa condução do processo.
Do contrário, ter-se-ia um sistema inquisitivo, no qual o juiz acusa junto com o Ministério Público, oposto ao sistema acusatório, que se apoia no princípio do juiz natural, buscando o não comprometimento da função jurisdicional.
Outrossim, imperioso ressaltar certas características do sistema inquisitorial em sua contraposição ao sistema acusatório, além de discutir eventuais reflexos do modelo no contexto jurídico brasileiro. Vejamos, então, as principais características do Sistema Inquisitorial:
- Concentração de poder:
No sistema inquisitorial, o juiz assume um papel central e ativo tanto na investigação quanto no julgamento. Isto significa que ele pode conduzir a coleta de provas e interrogar testemunhas, criando uma dinâmica de poder desigual entre as partes.
- Menos garantias ao réu:
O réu pode não ter o mesmo nível de proteção e garantias que o sistema acusatório oferece. A defesa pode ser limitada, e a presunção de inocência é frequentemente desconsiderada, especialmente em contextos em que a pressão social ou política está presente.
- Foco na verdade material:
O objetivo primário do sistema inquisitorial é a busca da verdade material, muitas vezes em detrimento dos direitos de defesa, conduzindo a práticas que favorecem a condenação em detrimento do julgamento justo.
- Sigilo e falta de publicidade:
Os procedimentos inquisitoriais tendem a ser mais sigilosos, o que pode dificultar a transparência e a supervisão pública sobre o processo judicial.
No Brasil, a transição para o sistema acusatório foi formalizada pelo Código de Processo Penal e pela Constituição de 1988, com a proposta de estabelecimento de um modelo mais democrático e garantista.
Contudo, o que atualmente se observa é que, muito embora tenha ocorrido um claro avanço em direção ao sistema acusatório, ainda existem práticas e mecanismos que refletem o modelo inquisitorial.
Essa realidade, onde se manifestam situações claramente contrárias ao princípio da presunção de inocência e do devido processo legal, implicando na violação de direitos e garantias processuais, demonstra a necessidade de uma contínua evolução e aprimoramento no sistema de justiça penal brasileiro para a implementação definitiva do sistema acusatório.
Dentre as práticas que ainda revelam traços do sistema inquisitorial, podemos, por exemplo, citar as seguintes situações:
a) Prisões preventivas – O uso e seus prazos excessivos:
A prisão preventiva, por ser uma espécie de prisão cautelar, não pode, sob hipótese alguma, ser uma antecipação da pena privativa de liberdade, devendo ser aplicada apenas quando se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, conforme preceitua o art. 319 do CPP.
Nesse sentido, o uso excessivo da prisão preventiva e sua delongada perpetuação no tempo é um exemplo de como práticas inquisitoriais podem ainda prevalecer.
Muitas vezes, essa medida é aplicada sem que haja provas contundentes, por prazos excessivos, apenas com base em indícios ou na gravidade do crime, o que pode ocasionar abusos.
b) Dificuldades na defesa:
Em muitos casos, especialmente em comunidades marginalizadas, os réus enfrentam dificuldades significativas para acessar uma defesa adequada, resultando em processos desiguais e injustos.
c) Impacto da mídia e da opinião pública:
A pressão da mídia e da opinião pública podem influenciar a percepção de culpabilidade antes mesmo de um julgamento formal, criando um ambiente em que o réu é visto como culpado, contrariando o princípio da presunção de inocência
d) Ativismo judicial
A atuação de juízes que assumem papéis ativos na investigação, muitas vezes conduzindo diligências e tomando decisões que deveriam ser restritas às partes, reflete uma lógica inquisitorial, uma vez que a sobreposição de funções prejudica a imparcialidade
No sistema acusatório, o juiz deve ser imparcial e atuar como garantidor dos direitos, devendo agir com sabedoria para que o anseio de "fazer justiça" não o faça extrapolar os limites delimitados pela ordem constitucional.
Certo é que, embora se verifique clara evolução para o modelo do sistema acusatório nas últimas décadas, condizente com a ordem democrática, nosso processo penal ainda apresenta práticas que marcadamente remetem ao sistema inquisitorial, de maneira que, principalmente aos advogados e sua entidade representativa, compete a denúncia e o enfrentamento aos atos atentatórios às garantias constitucionais, em especial, sob a égide de uma constituição marcadamente garantista.
Nesse sentido, há um reconhecimento crescente da necessidade de reformas que fortaleçam o sistema acusatório e garantam a efetividade da defesa, com a melhor estruturação das defensorias públicas, o fortalecimento do Ministério Público em sua função de acusação, e a promoção de práticas que garantam a igualdade de condições entre as partes no processo.
Para avançar na efetiva implementação dos princípios do sistema acusatório, fundamental é, sobretudo, a conscientização contínua acerca das garantias processuais, essa evolução é crucial para a construção de uma sociedade mais democrática, justa e equânime.
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1 LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.