Breves considerações sobre o projeto de lei n° 2.546/03 e a tentativa de instituição das Parcerias Público-privadas
Gabriela Duque Poggi*
A associação entre o setor público e o privado para a execução de projetos na área de infra-estrutura é hoje bastante difundida através dos regimes de concessão de obra pública, de prestação de serviços públicos, ou ainda por meio das permissões. Não obstante, tais formas de organização entre a administração pública e a iniciativa privada apenas mostram-se hábeis quando têm como objeto atividades ligadas à setores que se mostram, por si só, rentáveis ao investidor privado como, por exemplo, o energético e o de transportes.
É nesse contexto que surge a tentativa de implantação das parcerias público-privadas, expressão advinda do inglês “públic private partnership”. O Sistema prevê a junção entre o Estado e a iniciativa privada, mediante a garantia de rentabilidade mínima oferecida pelo governo, através de mecanismos previstos em contrato.
Algumas das inovações trazidas pelo projeto de lei em análise são: a remuneração assegurada pelo Estado como contraprestação à execução da obrigação assumida pelo ente privado, as formas de garantia ofertadas pela administração pública e a existência de metas e obrigações de resultado eventualmente assumidas pelo parceiro privado. Observa-se, desse modo, que a proposta tem como base a garantia assegurada pelo governo de um mínimo de rentabilidade em investimentos de retorno baixo ou incerto, e elaboração de mecanismos que atestem o cumprimento das obrigações assumidas pela administração pública.
Foram esses os principais pontos amplamente divulgados pelo governo a despeito do que pretendem ser as parcerias público-privadas. Todavia, ultrapassada a análise superficial, faz-se mister a busca da verdadeira essência o projeto de lei em referência e a tentativa de compreensão do exato significado e da natureza dos contratos de parceria público-privada, por meio de uma reflexão essencialmente jurídica.
O sempre festejado jurista Hely Lopes Meirelles conceitua os contratos administrativos como: “o ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com o particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração”1. Diante de tal concepção, é fácil compreender que as parcerias público-privadas enquadram-se no referido conceito, o que denota sua natureza jurídica de contrato administrativo e, em conseqüência, de direito público.
Como resultado, os contratos de parceria público-privada estão subordinados a todos os imperativos princípios que regem os contratos administrativos e trazem em sua essência a presença implícita das cláusulas exorbitantes. Importante ainda mencionar que todos os contratos administrativos estão sujeitos a regras que estabelecem a possibilidade de alteração unilateral por parte da administração pública justificada no interesse público ou ainda no surgimento de fato do príncipe ou fato da administração.
Diante dessa perspectiva, verifica-se grande óbice na proposta oferecida pelo Estado, pois, conforme mencionado, o projeto trás como fundamento a possibilidade de oferta pelo governo de diversas formas de garantia para o cumprimento das obrigações por ele assumidas, o que significaria uma maior segurança ao parceiro privado na alocação de seus investimentos. Todavia, tais mecanismos não prosperam no momento em que o contrato firmado obedece aos privilégios acima referidos, instituídos em favor da administração publica.
Podem os contratos de parceria público-privada ter como objeto: I - a delegação de prestação ou exploração de serviço público precedido ou não de execução de obra pública; II - a realização de atividade de competência da administração pública, precedida ou não de execução de obra pública; III - a execução de obra para a administração; e IV - a execução de obra de obra para sua alienação, locação ou arrendamento à administração pública.
Ao examinar as atividades supramencionadas, percebe-se que a maioria poderia ser exercida por meio dos sistemas já existentes na legislação pátria, como o de concessão e o de permissão. Diante de todos os possíveis objetos expressos no projeto de lei, vislumbra-se apenas um que talvez encontre entrave em sua realização mediante os mencionados sistemas: a execução de obra para sua alienação, locação ou arrendamento à administração pública. Em verdade, tais atividades mais se assemelham a uma forma de financiamento de obras a favor do governo realizada por meio de contrato.
Seria impossível não observar a similitude existente entre o contrato de concessão pública e o contrato de parceria público-privada, mais especificamente quando este tem como objeto a prestação de serviço público ou a realização de atividade de competência da administração pública, antecedida ou não de obra pública. Busca-se, por conseguinte, a diferenciação das duas sistemáticas.
A lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, define concessão de serviço público como a “delegação da prestação de serviço público, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado”. Resta clara a grande proximidade entre os dois institutos e a possibilidade de utilização de qualquer um para a execução determinado serviço, empreendimento ou atividade que possa ser atribuída ao investidor privado.
A eventual divisão dos riscos entre o governo e a iniciativa privada existente nos contratos de parceria público-privada, talvez expresse a maior diferença entre essas duas modalidades de contrato administrativo, visto que, nas concessões públicas a execução do serviço público corre por conta e risco daquele que se propõe a realizá-lo. Todavia, tal divisão, malgrado estar expressa no projeto de lei, perde sua eficácia e sentido quando são observados os privilégios atribuídos à administração pública enquanto parte de um contrato regido por regras de direito público, conforme antes explanado.
Inserem-se os contratos de concessão, de permissão e de parceria público-privada como modalidades de contratos administrativos, situados em um mesmo patamar. Entretanto, a aceitação de tal premissa faz surgir verdadeira barreira, na medida em que o projeto de lei nº 2.546/03, em seu art.17, determina que sejam aplicadas às parcerias público-privadas o disposto na Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e na Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, no caso de concessões e permissões de serviços públicos. Não se poderia conceber espécies de um mesmo gênero integradas em um mesmo patamar sobrepondo-se. Tal idéia não trás a melhor expressão da lógica jurídica perseguida por todos aqueles que se debruçam sobre o tema.
Outra problemática trazida pelo projeto de lei em referência está na eleição dos critérios eventualmente adotados para o julgamento das propostas. Entre eles encontra-se a melhor técnica, o que pode significar um raciocínio subjetivo não desejável no julgamento da proposta mais vantajosa para a administração pública.
Grande inovação trazida pelo projeto de lei n 2.546/03 está em seu art. 10, III, alínea e que institui a faculdade da adoção da arbitragem para solução dos conflitos decorrentes da execução dos contratos. É difícil acreditar na verdadeira eficácia de tal norma quando integrada a um cenário jurídico-político onde discussões jurídicas cingem-se a orientações políticas. Não seria realista conceber que o Poder Legislativo subtrairia do Poder Judiciário a atribuição de dirimir qualquer conflito que envolva interesses da administração pública.
Frente à iminência de aprovação do projeto de lei n° 2.546/03 que promete ser a solução para a falta de investimentos na área de infra-estrutura nacional, faz-se necessária a compreensão da exata essência dos contratos de parceria público-privada inserida no contexto pátrio contemporâneo, bem como a distinção entre verdadeiras iniciativas governamentais de solução de problemas estruturais e medidas meramente populistas.
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1Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2002.
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* Membro da Assessoria de Desenvolvimento de Produtos Especiais de Martorelli Advogados
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