1. Introdução
No dia 12/11/24, o TJ/PE, em decisão proferida pelo desembargador Fausto de Castro Campos, no âmbito do processo 0010995-09.2018.8.17.2810, determinou o sobrestamento de todos os processos que tratam do custeio de terapias multidisciplinares para TEA - Transtorno do Espectro Autista. Essa decisão, fundamentada no Incidente de Assunção de competência (IAC 0018952-81.2019.8.17.9000), é um marco importante no direito da saúde, pois busca consolidar entendimentos sobre temas controversos que têm impactado diretamente o Judiciário.
Essa medida visa à uniformização de entendimentos sobre um tema que impacta diretamente pacientes, familiares e operadoras de saúde suplementar, além de promover maior segurança jurídica.
O IAC do autismo, como ficou conhecido, foi estabelecido para tratar da multiplicidade de processos que envolvem a relação entre beneficiários de planos de saúde e as operadoras no que se refere ao acesso a tratamentos especializados. Entre os pontos centrais da controvérsia estão:
- A obrigatoriedade do custeio de terapias indicadas pelo médico assistente para pacientes com TEA.
- A cobertura de terapias realizadas fora da rede credenciada, em ambientes como escolas e residências, quando a rede do plano não tiver profissionais aptos.
- O reembolso integral das despesas com tratamentos realizados em instituições não credenciadas, em casos de ausência ou inaptidão da rede da operadora.
Essa decisão é especialmente relevante porque suspende temporariamente processos semelhantes em todo o TJ/PE e encaminha o recurso ao STJ como representativo de controvérsia. Isso significa que o STJ será responsável por estabelecer um precedente que deverá ser aplicado obrigatoriamente em todo o país.
O TJ/PE destacou que o sobrestamento é necessário para evitar a proliferação de decisões conflitantes e promover uma solução uniforme. De acordo com o desembargador Fausto de Castro Campos, a multiplicidade de processos e a relevância social da questão tornam essencial a definição de parâmetros claros pelo STJ. A decisão foi tomada com base no art. 1.036 do CPC, que regula o julgamento de recursos repetitivos, e busca assegurar segurança jurídica para todas as partes envolvidas.
Além disso, o Tribunal enfatizou que as teses firmadas no IAC 0018952-81.2019.8.17.9000 já são aplicáveis no âmbito do TJ/PE. Entre elas, destacam-se:
- A obrigatoriedade de cobertura de métodos específicos, como ABA, equoterapia e musicoterapia, indicados para o tratamento do TEA.
- A garantia de reembolso integral em casos de descumprimento por parte da operadora, como a ausência de profissionais capacitados em sua rede.
- A possibilidade de reparação por danos morais quando houver negativa ou atraso na cobertura contratual obrigatória.
A decisão do dia 12/11/24 demonstra o esforço do TJ/PE em organizar o fluxo processual e evitar decisões conflitantes, especialmente em um tema que envolve direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde.
Essa medida reafirma o compromisso do Poder Judiciário em tratar com a devida atenção os direitos das pessoas com deficiência, como os pacientes com TEA, enquanto aguarda-se uma definição nacional pelo STJ.
2. O que é o IAC do autismo?
O IAC - Incidente de Assunção de Competência é um instrumento processual previsto no art. 947 do CPC, que permite a análise de questões jurídicas relevantes com grande repercussão social e com repetição em múltiplos processos. Ele tem como objetivo uniformizar entendimentos e evitar divergências na aplicação da lei, garantindo segurança jurídica e previsibilidade para os jurisdicionados.
No caso do IAC do autismo, instituído no processo 0018952-81.2019.8.17.9000 pelo TJ/PE, o foco foi consolidar entendimentos sobre a obrigatoriedade de cobertura de terapias multidisciplinares para pacientes com TEA. Esse incidente foi provocado pela grande quantidade de ações judiciais que discutiam temas semelhantes, como a extensão das obrigações das operadoras de planos de saúde e a cobertura de tratamentos indicados para o manejo do TEA.
3. Por que o IAC do autismo é importante para os pacientes com TEA em Pernambuco?
O IAC do autismo foi criado para resolver uma questão central: até onde vai a responsabilidade dos planos de saúde em relação às terapias para pacientes com TEA, considerando as peculiaridades desse transtorno e a legislação vigente? Diante das inúmeras demandas judiciais e da falta de uniformidade nas decisões, o TJ/PE viu a necessidade de consolidar entendimentos que garantissem maior proteção aos direitos dos beneficiários.
No julgamento do IAC, foram firmadas teses jurídicas vinculantes, que devem ser aplicadas a todos os casos similares no âmbito do TJ/PE, enquanto aguardam possível confirmação ou modificação pelo STJ. Entre as principais teses estão:
- A obrigatoriedade de os planos de saúde oferecerem terapias indicadas pelo médico assistente, como as baseadas nos métodos ABA, TEACCH e equoterapia, mesmo quando realizadas fora da rede credenciada.
- A possibilidade de reembolso integral quando a operadora não conseguir oferecer o tratamento na rede credenciada.
- A inclusão de terapias em ambientes domiciliares e escolares, desde que prescritas e justificadas clinicamente.
- A reparação por danos morais em caso de negativa ou atraso no custeio de tratamentos obrigatórios.
4. O papel da lei Berenice Piana no IAC do autismo
Um dos fundamentos principais do IAC é a lei 12.764/12, conhecida como lei Berenice Piana, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Essa legislação reconhece o autismo como deficiência, garantindo aos seus portadores direitos fundamentais como o acesso a tratamentos adequados e personalizados.
De acordo com o art. 2º da lei Berenice Piana, é assegurado às pessoas com TEA o acesso a atendimento multiprofissional, que pode incluir:
- Psicologia;
- Fonoaudiologia;
- Terapia ocupacional;
- Psicopedagogia;
- Outras terapias necessárias para o desenvolvimento integral do paciente.
O TJ/PE interpretou que esses direitos não podem ser limitados por contratos de saúde suplementar nem pelo rol de procedimentos da ANS, especialmente quando há recomendação médica e ausência de alternativas adequadas na rede credenciada.
5. O que efetivamente determina a decisão do TJ/PE?
A decisão do TJ/PE destacou a necessidade de envio da controvérsia ao STJ como REsp representativo de controvérsia. Isso significa que o STJ terá a responsabilidade de consolidar um entendimento nacional sobre:
- A limitação ou não do reembolso aos valores previstos na tabela do plano de saúde.
- A obrigatoriedade de cobertura de terapias realizadas em ambientes não convencionais, como escolas e residências.
- Enquanto o STJ não se pronunciar, todos os processos sobre a temática, em fase de Recurso Especial ou Agravo em Recurso Especial, estão suspensos.
6. Como a decisão de sobrestamento dada pelo TJ/PE afetará os processos judiciais de outros pacientes com TEA em trâmite em Pernambuco?
O julgamento do IAC no TJ/PE trouxe parâmetros claros para a análise das demandas judiciais relacionadas ao TEA, reduzindo a insegurança jurídica. Agora, com a decisão que determinou o sobrestamento de processos semelhantes, essa temática será reavaliada pelo STJ, que poderá ampliar (ou restringir) o alcance das teses do IAC.
O IAC do autismo é, portanto, um divisor de águas no direito da saúde, ao dar centralidade à prescrição médica e à individualidade do tratamento do TEA, ao mesmo tempo em que busca equilibrar as obrigações das operadoras de planos de saúde com os direitos dos beneficiários.
6.1. Atraso na solução definitiva das demandas
Para os pacientes com processos em curso no TJ/PE, a suspensão dos feitos significa que o andamento dessas ações ficará temporariamente interrompido até que o STJ julgue o recurso representativo de controvérsia. Isso pode acarretar:
Demora no acesso ao tratamento: Muitos pacientes dependem de decisões judiciais para obter terapias essenciais, como ABA, equoterapia e psicopedagogia, especialmente em casos onde a operadora do plano de saúde nega cobertura.
Prejuízo à saúde e ao desenvolvimento: O TEA é um transtorno em que o tempo é um fator crítico. A interrupção ou ausência de terapias pode causar perda de progresso nas habilidades do paciente e dificultar sua reintegração no tratamento futuro.
6.2. Suspensão de decisões sobre o mérito
Diferentemente do que ocorre em outras situações de sobrestamento, o TJ/PE determinou que apenas os processos que já estejam em fase de REsp ou Agravo em REsp serão suspensos até o julgamento do recurso representativo de controvérsia pelo STJ. Isso significa que:
Processos em fases anteriores podem tramitar normalmente: A decisão deixa claro que processos que ainda estão na fase de conhecimento ou em fase recursal nas instâncias ordinárias poderão continuar sendo analisados, incluindo decisões de mérito e concessão de tutelas provisórias.
Paralisação apenas no âmbito do STJ ou quando aptos ao recurso especial: Essa delimitação busca reduzir o impacto negativo do sobrestamento, permitindo que a maioria dos processos sigam sua tramitação até alcançar a fase em que estejam aptos ao envio ao STJ.
6.3. Benefício da uniformização jurídica
Por outro lado, o sobrestamento também oferece uma perspectiva positiva. Ao consolidar a questão no STJ, será possível garantir:
Segurança jurídica: Uma vez julgado, o recurso representativo de controvérsia estabelecerá parâmetros uniformes e claros sobre os direitos dos pacientes e as obrigações das operadoras.
Celeridade futura: Processos que tratam de temas semelhantes terão maior previsibilidade e poderão ser decididos de forma mais rápida, aplicando-se o entendimento do STJ.
6.4. A urgência e as medidas mitigadoras
Embora a suspensão dos processos seja uma medida processual necessária para evitar decisões conflitantes, ela pode gerar graves impactos para os pacientes que dependem de tratamentos urgentes. No entanto, existem algumas possibilidades que podem mitigar os danos:
Decisões já concedidas permanecem válidas: Caso o paciente já tenha uma liminar ou tutela provisória concedida, ela deve continuar sendo cumprida, a menos que seja suspensa por decisão específica.
Pedidos de urgência: Em casos excepcionais, pode-se pleitear o levantamento da suspensão, argumentando que o paciente sofre risco de dano irreparável ou prejuízo à saúde.
Intervenção em outras esferas: Algumas famílias podem recorrer ao SUS - Sistema Único de Saúde como alternativa temporária para garantir o início ou a continuidade das terapias até a solução judicial.
6.5. Implicações para pacientes
Essa abordagem mais restrita do sobrestamento tem implicações práticas importantes para os pacientes com TEA e suas famílias:
Continuidade na busca por direitos: Os beneficiários ainda podem buscar decisões favoráveis nas instâncias inferiores, incluindo tutelas de urgência para iniciar ou manter terapias. A tramitação dos processos até o final da segunda instância não será prejudicada, garantindo que pacientes que ainda estão em fases anteriores não sofram com atrasos desnecessários.
Suspensão limitada à fase de recursos excepcionais: Apenas os casos que já foram objeto de decisão definitiva nas instâncias ordinárias e que estejam aptos para apreciação pelo STJ serão paralisados. Isso reduz o impacto da suspensão para a maioria dos processos em andamento, já que a fase de Recurso Especial é mais restrita e demora mais para ser atingida.
Possibilidade de decisões provisórias: Em processos que ainda não atingiram a fase de suspensão, juízes podem conceder tutelas de urgência, garantindo o custeio de terapias enquanto o mérito não é julgado. Isso é crucial para evitar prejuízos à saúde dos pacientes com TEA, que frequentemente necessitam de tratamentos contínuos e ininterruptos.
7. Consequências para as operadoras de saúde
A decisão do TJ/PE de sobrestar os processos relacionados ao custeio de terapias multidisciplinares para TEA, com base no IAC do autismo, gera consequências significativas para as operadoras de planos de saúde. Essa medida tem impacto direto na forma como essas empresas gerenciam suas obrigações contratuais, sua relação com os beneficiários e os custos envolvidos.
7.1. Potenciais aumentos de custos operacionais
Caso o STJ confirme as teses firmadas pelo TJ/PE no IAC, as operadoras poderão enfrentar ampliação das obrigações de cobertura. Isso inclui:
Custeio de terapias fora da rede credenciada: Em situações onde a rede própria não oferece serviços adequados, as operadoras poderão ser obrigadas a reembolsar integralmente tratamentos realizados em clínicas não conveniadas.
Cobertura de terapias em ambientes escolares e domiciliares: Terapias como AT - acompanhamento terapêutico, equoterapia e psicopedagogia, que muitas vezes não estão previstas nos contratos, poderão se tornar obrigatórias.
Essa ampliação de responsabilidades gera um impacto financeiro considerável, especialmente porque os valores praticados fora da rede credenciada costumam ser significativamente mais altos.
7.2. Ajustes na gestão da rede credenciada
A decisão evidencia a necessidade de as operadoras investirem em sua rede credenciada, buscando:
- Ampliar a oferta de serviços especializados para atender à crescente demanda por tratamentos relacionados ao TEA.
- Certificar profissionais capacitados em métodos reconhecidos, como ABA e TEACCH, para evitar a necessidade de custear terapias fora da rede.
- Operadoras que não conseguem suprir a demanda de seus beneficiários correm o risco de sofrer ações judiciais que podem resultar em reembolsos integrais ou condenações por danos morais.
7.3. Aumento do risco de litígios
- O sobrestamento de processos significa que muitas demandas aguardam uma decisão uniforme, mas não elimina o risco de novos litígios enquanto o tema não é resolvido. As operadoras continuam sujeitas a:
- Ações judiciais para custeio de terapias urgentes, especialmente quando negam cobertura ou apresentam demora na oferta de serviços.
- Pedidos de reembolso por tratamentos fora da rede, realizados por beneficiários que não encontram suporte adequado na rede credenciada.
- Esse ambiente de incerteza jurídica pode levar a uma judicialização ainda maior do setor, aumentando os custos com processos judiciais e eventuais indenizações.
7.4. Adaptação às novas teses vinculantes
Se o STJ confirmar as teses do IAC, as operadoras precisarão:
- Ajustar seus protocolos internos para incluir tratamentos multidisciplinares como coberturas obrigatórias.
- Prever maior orçamento para reembolsos integrais, especialmente em casos de ausência de rede credenciada apta.
- Investir em treinamento e parcerias com profissionais especializados para evitar litígios e atender às exigências da jurisprudência.
8. Um equilíbrio entre celeridade e segurança jurídica
A decisão do TJ/PE equilibra dois objetivos fundamentais:
Celeridade processual para demandas urgentes: Ao permitir que processos em fases anteriores sigam normalmente, pacientes ainda podem obter decisões que atendam às suas necessidades de forma mais ágil.
Segurança jurídica para a uniformização: Suspender apenas os recursos excepcionais garante que o STJ tenha a oportunidade de consolidar o entendimento jurídico de forma definitiva e vinculante, sem prejudicar o andamento dos casos ainda não conclusos.
9. O futuro do IAC do autismo e a luta pelo direito ao tratamento
O julgamento do IAC do autismo pelo STJ representa um momento decisivo para o direito da saúde e para a proteção dos direitos dos pacientes com TEA - Transtorno do Espectro Autista. O desfecho desse julgamento terá impacto direto no acesso a terapias essenciais, especialmente em relação à obrigatoriedade do custeio de tratamentos multidisciplinares, inclusive fora da rede credenciada, e ao reembolso integral quando a rede própria não oferece suporte adequado. Este é um marco que pode consolidar direitos fundamentais, mas também traz o risco de retrocessos caso não haja uma mobilização adequada.
É fundamental que operadores do direito, famílias de pacientes e a sociedade civil organizada acompanhem de perto o desenrolar desse julgamento, que também será observado de maneira atenta pelas operadoras de planos de saúde. O setor de saúde suplementar tem grande interesse no resultado, uma vez que ele poderá gerar novas responsabilidades financeiras e redefinir os limites de cobertura contratual. Essa vigilância, no entanto, não pode se limitar às operadoras. A pressão da sociedade civil organizada será essencial para garantir que o julgamento pelo STJ reafirme direitos já consolidados no âmbito do TJ/PE, como a possibilidade de custeio integral de terapias fora da rede credenciada em caso de inaptidão da operadora.
O momento exige que famílias de pacientes com TEA, associações de defesa de direitos e profissionais da área da saúde atuem conjuntamente para evitar decisões que possam enfraquecer os direitos dos beneficiários. Apenas com uma mobilização forte será possível impedir que o julgamento do IAC represente um retrocesso em direitos conquistados com tanto esforço. A sociedade civil precisa estar organizada para dialogar, expor as necessidades dos pacientes e demonstrar ao Judiciário que o acesso pleno às terapias multidisciplinares é mais do que um direito contratual: é uma questão de dignidade humana e proteção à saúde.
Por isso, acompanhar cada etapa do julgamento, divulgar informações e pressionar por decisões que fortaleçam o direito à saúde são atitudes imprescindíveis neste momento. O desfecho do IAC do autismo pode definir o futuro do acesso aos tratamentos essenciais para milhares de pessoas com TEA em todo o país. A luta para que este julgamento resulte em avanços e não em retrocessos está, agora, nas mãos de todos aqueles que acreditam na importância de um sistema de saúde justo e acessível.