No caso ZF Automotive U.S., Inc. v. Luxshare, Ltd., 596 U.S. 619 (2022), a Suprema Corte dos Estados Unidos resolveu uma divergência entre tribunais quanto à disponibilidade de discovery em apoio a arbitragens internacionais com base na seção 1.782 do título 28 do Código dos Estados Unidos (“seção 1782”), ao decidir que apenas um órgão adjudicatório governamental ou intergovernamental constitui um "tribunal estrangeiro ou internacional" à luz da seção 1782, e os órgãos adjudicatórios naquele caso não atendiam a tal requisito. Neste artigo, analisamos um caso recente do Distrito Norte da Califórnia, que distinguiu o caso ZF Automotive U.S., Inc. e autorizou o uso da seção 1.782 em apoio a uma arbitragem internacional. 1
A título de contexto, diga-se que a seção 1.782 acima referenciada dispõe sobre mecanismos de “[a]apoio a tribunais estrangeiros e internacionais e às partes litigantes perante esses tribunais”. Mas o que seria um “tribunal estrangeiro ou internacional” 2? Essa definição inclui ou não órgãos adjudicatórios privados? A resposta objetiva a essas duas perguntas é negativa.3 Até 2022, as Cortes de apelação dos Estados Unidos não tinham um entendimento sedimentado sobre a questão de serem ou não os órgãos adjudicatórios privados (tribunais arbitrais em arbitragens privadas, por exemplo) “tribunais estrangeiros ou internacionais” para efeitos da Seção 1782.4 Os “Segundo, Quinto e Sétimo Circuitos entendiam que a discovery com fundamento na seção 1782 não era autorizada para uso em arbitragens comerciais privadas”5. Os quarto e sexto circuitos decidiram o contrário6. A Suprema Corte dos Estados Unidos dirimiu essa divergência, como dito, no caso ZF Automotive v. Luxshare (2022).7
Em ZF Automotive, a Suprema Corte concedeu certiorari e consolidou dois processos8 envolvendo “arbitragem no exterior para nos quais uma das partes buscava a discovery nos Estados Unidos de acordo com [a Seção 1782].” 9 A Suprema Corte decidiu que órgãos adjudicatórios privados não se enquadram na seção 1.782.10 Consignou que “[s]omente um órgão adjudicatório governamental ou intergovernamental constitui um ‘tribunal estrangeiro ou internacional’” 11 nos termos da seção 1.782.12 Consequentemente, “[e]sses órgãos são aqueles que exercem autoridade governamental conferida por uma nação ou por várias nações.”13 Embora a Suprema Corte tenha restringido a definição de “tribunal estrangeiro ou internacional”, algumas partes argumentaram que isso não impediria o uso da seção 1.782 em apoio à arbitragem em todas as circunstâncias. 14
No dia 9/5/24, o juiz distrital dos EUA, Douglas L. Ray, tornou-se um dos primeiros juízes a autorizar discovery com fundamento na Seção 1782 para uso em uma arbitragem não vinculada ao ICSID - Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos15. Os fatos que circundam a ação em questão são bem objetivos.
David Edgar16 iniciou uma arbitragem obrigatória, conforme exigido pela seção 1.482 (1) da regulamentação 447/83 da British Columbia (“seção 148”), alegando ter sido ferido por um veículo não identificado em Scottsdale, Arizona17. Todos os motoristas em British Columbia devem ter uma cobertura mínima de seguro, que inclui a UMP - Underinsured Motorist Protection, fornecida pela peticionária, a ICBC - Insurance Company of British Columbia18.
Edgar buscou a obtenção de discovery na forma da seção 1782, alegando que “o tribunal arbitral na ação subjacente deveria ser considerado um ‘órgão adjudicatório governamental ou intergovernamental’ à luz da [seção] 1.782”, considerando “a natureza da lei de Arbitragem de British Columbia.” 19
A análise do Tribunal foi segregada em três partes. Em primeiro lugar, entendeu-se que “a solicitação da ICBC satisfaz [eu] os três requisitos básicos para alívio sob a [seção] 1.782.” 20 Em segundo lugar, o Tribunal considerou quatro fatores discricionários ao autorizar a discovery prevista na seção 1.782.21 Em terceiro lugar, o Tribunal concluiu que o BCICAC, a entidade sem fins lucrativos por meio da qual a ação foi ajuizada, deveria ser coberto pelos auspícios da seção 1.782 porque exerce autoridade similar à governamental.22 O Tribunal enfatizou, ademais, que “a arbitragem aqui [não era] uma arbitragem privada por consentimento; era uma arbitragem regida pela Lei de Arbitragem através do BCICAC. Nessas circunstâncias... [a] arbitragem regida pela Lei de Arbitragem através do BICAC é mais semelhante a uma autoridade governamental do que a um órgão puramente privado e comercial.” 23
Considerando-se a decisão da Corte, as partes devem ficar atentas para uma arbitragem obrigatória imposta pelo governo, semelhante à Seção 148, como uma exceção à proibição de discovery da seção 1.782 em processos arbitrais que se amoldem ao precedente oriundo do caso ZF Automotive.
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1 Os autores agradecem à associada de verão da Cozen O'Connor, Micki Coleman-Palansky, por sua assistência na preparação da primeira versão deste artigo, em inglês, e à estagiária de Cesar Asfor Rocha Advogados, Valentina Marinho, pela ajuda com a tradução. Este texto é a versão em português do artigo A Pathway to Obtaining Discovery in the United States in Mandatory Arbitrations, publicado em 1º de outubro de 2024, acesso em https://aria.law.columbia.edu/a-pathway-to-obtaining-discovery-in-the-united-states-in-mandatory-arbitrations/.
2 A Seção 1782(a) dispõe, em parte, que o “tribunal distrital do distrito em que uma pessoa reside ou se encontra pode ordenar que ela dê seu depoimento ou declaração ou que produza um documento ou outra coisa para uso em um processo em um tribunal estrangeiro ou internacional, incluindo investigações criminais conduzidas antes de uma acusação formal.”
3 ZF Auto., 596 U.S. p. 623.
4 Madina Lokova, ZF Automotive v. Luxshare: The Supreme Court's New Gloss on 8 U.S. Code § 1782 e What it Means for International Commercial Arbitration, 2024 J. Disp. Resol. 42, 44-5.
5 Id.; veja também National Broadcasting Co. v. Bear Stearns & Co., 165 F.3d 184 (2d Cir. 1999); República do Kazakhstan v. Biedermann Internacional, 168 F.3d 880 (5th Cir. 1999).
6 Veja Servotronics, Inc. v. Boeing Co., 954 F.3d 209 (4th Cir. 2020); Abdul Latif Jameel Transp. Co. v. FedEx Corp., 939 F.3d 710 (6th Cir. 2019).
7 Veja ZF Auto., 596 U.S. 619.
8 Veja In re Fund for Protection of Investor Rights in Foreign States v. AlixPartners, LLP e Luxshare, Ltd. v. ZF Auto. U.S., Inc.
9 ZF Auto., 596 U.S. p. 619-20; veja também In re Fund for Protection of Investor Rights in Foreign States v. AlixPartners, LLP, 5 F.4th 216 (2d Cir. 2021); Luxshare, Ltd. v. ZF Auto. U.S., Inc., 15 F.4th 780 (6th Cir. 2021).
10 Id.
11 A Seção 1782 estabelece que “um ‘tribunal estrangeiro’ é um tribunal dotado de autoridade governamental por uma nação, e um ‘tribunal internacional’ é um tribunal dotado de autoridade governamental por várias nações,” Id. P. 620-1.
12 Id. (“O objetivo fundamental da Seção 1782 é a cortesia: permitir que os tribunais federais auxiliem órgãos governamentais estrangeiros e internacionais promove o respeito pelos governos estrangeiros e incentiva a assistência recíproca.” Esse objetivo seria prejudicado ao “recrutar os tribunais distritais para ajudar órgãos privados a adjudicar disputas puramente privadas no exterior”).
13 Id.
14 Caroline Simson, Ariz. Judge Allows Insurer to Target DOT for Canadian Arb., Law360.com, 10 de maio de 2024, https://www.law360.com/insurance-authority/articles/1836005.
15 Id.; Memo. of Points and Authorities, 2:8-14, In re Application: For an Order to Appear and Provide Documents and/or Testimony in a Foreign Arbitration Proceeding, No. 2:24-mc-00015-DLR.
16 David Edgar, um cidadão canadense, foi o requerente da arbitragem em questão (David Edgar v. ICBC). Caroline Simson, supra nota 14; Ordem, 3:1-2, In Re: Ex Parte Application Pursuant to Section 204 of the Federal Arbitration Act and A.R.S. § 12-1507 for an Order to Provide Documents and/or Appear Remotely and Testify in a Foreign Arbitration Hearing, No. 2:24-mc-00015-DLR (“Ordem”).
17 Nos termos da Seção 148.2(1) da Regulamentação n. 447/83 da British Columbia, as disputas devem “ser resolvidas por arbitragem privada mediante consentimento ou, na ausência de consentimento, por arbitragem conforme a Lei de Arbitragem da British Columbia através do Centro Internacional de Arbitragem Comercial da British Columbia (‘BCICAC’).” Id. em 3:1-10; Caroline Simson, supra nota 14.
18 Ordem, 3:2-7. UMP (Underinsured Motorist Protection) fornece cobertura parcial para “os danos sofridos por um cidadão canadense ferido quando o motorista culpado não possui cobertura de seguro suficiente, mas o valor da recuperação deve ser compensado por qualquer outro seguro que estaria disponível ao reclamante ferido.” Id.
19 Memorando Suplementar, 6:7-22, In re Application: For an Order to Appear and Provide Documents and/or Testimony in a Foreign Arbitration Proceeding Directed To: (i) Quick Silver Transportation, LLC, uma companhia de responsabilidade limitada do Arizona; e (ii) Arizona Department of Transportation, n. 2:24-mc-00015-DLR.
20 Ordem, 2:18-9. Os três requisitos fundamentais para se valer da Seção 1782 são: (1) a pessoa de quem se busca a discovery deve ‘residir’ ou ser ‘encontrada’ no distrito; (2) a discovery deve ser usada em um processo que tramita perante um tribunal estrangeiro; e (3) o requerente deve ser uma ‘pessoa interessada’... Quick Silver e ADOT residem neste Distrito, e a ICBC é uma pessoa interessada porque é parte no processo de arbitragem. A ICBC busca discovery para uso em um processo de arbitragem na Colúmbia Britânica, Canadá.
21 Os fatores incluíam: (1) se a ‘pessoa de quem se busca a discovery é parte no processo estrangeiro’; (2) a natureza do processo estrangeiro, e se o tribunal estrangeiro é receptivo à assistência judicial dos Estados Unidos; (3) se o pedido é uma tentativa de contornar as restrições de obtenção de provas no exterior; e (4) se o pedido de discovery é ‘indevidamente intrusivo ou oneroso’... Quick Silver e ADOT não são partes no processo estrangeiro; não há razão para acreditar que o painel arbitral do BCICAC não seria receptivo à assistência judicial dos Estados Unidos... não há provas de que a ICBC esteja tentando contornar as restrições estrangeiras de obtenção de provas; e, à primeira vista, as intimações propostas não parecem indevidamente intrusivas ou onerosas. Id. em 2:7-3:21 (citação de Intel Corp. v. Advanced Micro Devices, Inc., 542 U.S. 241, 264-6 (2004)).
22 Id. em 2:21-3:14 (“Embora tribunais de arbitragem comercial puramente privados não se enquadrem nessa definição, a Suprema Corte deixou aberta a possibilidade de que outros tipos de painéis de arbitragem poderiam ser abrangidos pelo estatuto se exercerem autoridade governamental de forma suficiente”) (citando ZF Auto., 596 U.S. p. 633).
23 Ordem, 3:10-14