Ao longo dos anos, diversas mudanças jurisprudenciais e em textos normativos alteraram as obrigações dos planos de saúde e trouxeram controvérsias acerca do dever (ou não) de fornecimento de determinados tratamentos pelos planos e operadoras de saúde. Entre essas discussões, uma frequente é sobre a obrigatoriedade ou não de custeio de tratamento fora do rol da ANS, bem como em ambiente domiciliar.
Pois bem.
Em relação ao rol da ANS – após diversas alterações recentes e muitas reviravoltas jurídicas – prevaleceu que este não é taxativo. Logo, a lei 9.656/98 passou a dispor que a obrigatoriedade dos planos de saúde de custearem tratamentos e procedimentos fora do rol da ANS, desde que atendidos alguns requisitos, constantes no art. 10 da lei 9.656/98. Entre estes requisitos, em caso de não estar previsto em rol da ANS, deve: a) existir comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutic ou b) existam recomendações pela Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, ou exista recomendação de, no mínimo, 1 órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
Assim, superou-se, com a alteração legislativa ocorrida em 2022, a taxatividade do rol da ANS – ficando claro que, ainda que não haja previsão expressa do tratamento ou medicamento em rol da ANS, este deverá ser custeado ou fornecido pelo plano de saúde, atendido aos requisitos.
Discussão mais complexa, neste cenário de fornecimento de tratamentos e medicamentos, foi tomando forma ao longo dos anos – e restava, ainda, sem solução: a necessidade do plano de saúde em custear e fornecer tratamento domiciliar.
A lei 9.656/98, ainda em seu art. 10, inc. VI, trazia a não obrigatoriedade, como regra geral, de custeio de tratamentos domiciliares pelas operadoras de saúde. Em suma: sendo domiciliar, a regra seria o não custeio ou fornecimento pelo plano de saúde.
Isso trouxe complexa discussão: em caso de tratamentos que podem ser realizados em ambiente domiciliar E em ambiente hospitalar (a enorme maioria dos casos, portanto), deveria haver a admissão do segurado em hospital para realização do tratamento – o que é um contrassenso jurídico.
É evidente que, nestes casos de tratamento domiciliar, esta opção é a menos onerosa para o segurado e para o plano de saúde. Para o segurado, por não precisar se locomover ao hospital, a depender do tratamento diariamente, visando a administração e correta realização de tratamento médico prescrito por médico assistente. Fora os riscos envolvidos, para o paciente/segurado, no próprio ambiente domiciliar – como sujeição à infecções. Para o plano de saúde, de igual modo, é muito menos oneroso realizar o fornecimento em ambiente domiciliar do que custear, além do tratamento, o leito hospitalar e demais despesas associadas ao próprio hospital.
Em resumo: o custeio em ambiente domiciliar barateia o tratamento para os planos de saúde e evita maiores riscos e desgastes para o segurado.
Esse entendimento, contudo, ficou controverso por parte do tempo – sendo as exceções comuns (ou seja, os casos que se entendia como obrigatório o custeio domiciliar de tratamento) os casos de homecare e de medicamentos quimioterápicos.
Ocorre que, neste ano de 2024, o STJ trouxe importante julgado determinando o custeio e fornecimento de tratamento, pelo plano de saúde, em ambiente domiciliar. Em julgado de maio de 2024, decidiu o STJ:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. RECONSIDERAÇÃO. NOVO EXAME DO RECURSO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. ESCLEROSE MÚLTIPLA. MEDICAMENTO DE USO DOMICILIAR. PECULIARIDADES DO CASO QUE AUTORIZAM O RECONHECIMENTO DO EXCEPCIONAL DEVER DE COBERTURA. AGRAVO INTERNO PROVIDO PARA CONHECER DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Não subsiste a incidência da súmula 182/STJ na espécie, utilizada pela presidência desta corte para não conhecer do reclamo, na medida em que a parte agravante impugnou todos os fundamentos da decisão de inadmissibilidade do recurso especial. Decisão proferida pela Presidência desta corte reconsiderada, para se conhecer do agravo. 2. Em relação à alegada negativa de prestação jurisdicional, embora se constatem omissões no acórdão recorrido, é cabível, na hipótese, o reconhecimento do prequestionamento ficto (art. 1.025 do CPC), tendo em vista que foi alegada violação do art. 1.022 do CPC nas razões do recurso especial e o enfrentamento da matéria omissa independe do revolvimento de questões fáticas. 3. No mérito, a controvérsia diz respeito à legitimidade da recusa da operadora de plano de saúde em fornecer à recorrente o medicamento fingolimode, na forma oral, para tratamento de esclerose múltipla, por se tratar de fármaco de uso domiciliar, para o qual não há previsão legal ou contratual de cobertura obrigatória. 3.1. Consoante entendimento desta Corte Superior, é lícita a exclusão, na Saúde Suplementar, do fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar, isto é, aqueles prescritos pelo médico assistente para administração em ambiente externo ao de unidade de saúde, salvo os antineoplásicos orais (e correlacionados), a medicação assistida (home care) e os incluídos no rol da ANS para esse fim. 3.2. Todavia, o caso concreto apresenta peculiaridades que justificam a aplicação de entendimento diverso, quais sejam: (i) o medicamento solicitado é registrado pela Anvisa e expressamente indicado para o tratamento de esclerose múltipla; (ii) embora o fingolimode não esteja previsto como de cobertura obrigatória no anexo II da RN 465/21, as diretrizes técnicas da ANS orientam o seu uso como segunda ou terceira linha de tratamento, que, inclusive, deve ser necessariamente utilizada pelo paciente como requisito para a cobertura obrigatória do medicamento previsto para a linha de tratamento subsequente; (iii) demonstrou-se a imprescindibilidade do fingolimode para evitar que a recorrente tenha surtos da doença, com degeneração neurológica progressiva e desenvolvimento de sequelas incapacitantes irreversíveis; (iv) a insurgente já utilizou, sem sucesso, os outros medicamentos injetáveis previstos como primeira linha de tratamento, sendo necessário, segundo a orientação da médica assistente, condizente com as diretrizes técnicas da ANS e o PCDT do ministério da saúde, seguir o escalonamento do tratamento; (v) o custo do fingolimode é inferior ao de outras opções de tratamento injetáveis.
4. Nesse cenário, não é razoável exigir que a recorrente passe, de plano, para a etapa subsequente de tratamento, na contramão das recomendações dos órgãos técnicos e da médica assistente, e que seja submetida a tratamento injetável, realizado em ambiente hospitalar, quando pode fazer uso de tratamento via oral, mais prático, indolor e sem gastos com deslocamento e dispêndio de tempo, além de representar custo inferior para a operadora do plano de saúde, não afetando o equilíbrio contratual. 4.1. Conclui-se, assim, que a negativa de cobertura do medicamento, na hipótese, revela-se abusiva. 5. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão e, em novo exame, conhecer do agravo para conhecer e dar provimento ao recurso especial. (STJ, 4ª turma. AgInt no AREsp 2.251.773 / DF. rel. min. Antonio Carlos Ferreira. DJ 21/05/24). (grifos meus)
Assim, evolui-se no sentido de determinar que os planos de saúde devem custear medicamentos e tratamentos domiciliares aos segurados, por ser esta opção a mais segura e benéfica para os pacientes e, também, menos onerosa aos planos de saúde – atendendo, portanto, à ambos os interesses.