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A epidemia da litigiosidade no Brasil - Interesse (mesmo) de agir? Em busca da cura

A condição de procurar um médico é a pré-existência de alguma doença. A doença do litígio pode estar dentro de nós. Essa é a cura que devemos buscar.

19/11/2024

A Epidemia da Litigiosidade no Brasil - Interesse (mesmo) de agir?

O Brasil, segundo os últimos dados analíticos do CNJ, datados de 2023, recebeu 35,3 milhões de novos casos. São dados extraídos do “Justiça em Números”. A grande maioria dos novos processos (77% deles) está na Justiça Estadual. Na sequência estão a Justiça Federal (15%); do Trabalho (6,4%); Eleitoral (0,09%); e, Militar 0,0005%. Os Tribunais Superiores, juntos, receberam 1,5% das novas ações.

O estoque está na casa dos quase 84 milhões de processos, todos pendentes. Estamos caminhando, ao que tudo indica, para os inacreditáveis, embora não inéditos, 100 milhões de casos judicializados. Falamos de quase um processo por cada cidadão adulto brasileiro.

Os números do CNJ denunciam uma doença em larga escala? Uma epidemia, para sermos mais exatos. Níveis tão alarmantes que resultaram na aprovação, por unanimidade, de um ato normativo com recomendações contra a litigância abusiva, indicando parâmetros para a identificação, tratamento e prevenção desse fenômeno dentro do Poder Judiciário.

A litigância abusiva, em linhas gerais, caracteriza-se através de uma estratégia perversa adotada por uma das partes do processo judicial com o intuito de sequelar a outra.

As doses medicamentosas ministradas pela enfermagem judiciária, na vã tentativa de aplacar o vírus da litigiosidade, movimentam mais de 132,8 bilhões de reais ao ano, um aumento de 9% na comparação com o ano anterior.

Cada processo tem um custo médio elevadíssimo para a sociedade se levarmos em consideração o custo do Judiciário. A terapêutica de justiça adotada se revelou insustentável. Entrou em colapso. O surto epidêmico vivido no país atinge as raias da insanidade e seus índices lideram o amargo ranking dos maiores números de ações no mundo.

No tempo em que morei em Londres, aperfeiçoando-me em direito contratual, tive imensa dificuldade para explicar as incontáveis ações judiciais que povoam nosso adoecido organismo judiciário. Não entrava na cabeça do inglês que, por aqui no Brasil, tudo fosse judicializado. Lá, como na maior parte dos países europeus, o conflito judicial é o último e derradeiro estágio do litígio, após esgotadas todas as possibilidades de cura, seja pelo bom funcionamento do sistema imunológico de resolver as desavenças de forma amigável, seja pela ação interventiva de órgãos administrativos. Somente chega ao judiciário o conflito administrativamente insolúvel.

No Brasil a ideia não é diferente, em tese, porque o art. 2º do código de ética da OAB atesta que uma das obrigações de um advogado é de incentivar a conciliação entre as partes envolvidas, sempre aconselhando o cliente a evitar a judicialização, nos casos onde pode ser evitado.

A judicialização, em si, necessário deixar muito claro aqui, não é um problema, já que faz parte dos direitos básicos da nossa CF/88, quando, repito, impossível a resolução amigável, fora dos Tribunais Judiciais. O problema, gravíssimo, está nessa saturação da máquina judiciária.

Já na atmosfera em que os brasileiros respiram, que parece ser a mesma que serve aos pulmões dos americanos – sempre repito isso -, surgiu a peste do ajuizamento fácil. Altamente contagiosa, essa chaga se hospedou na cultura nacional. Os anais médicos a chamam de hiperlitigiosidade, agora também ainda mais potencializada pela chamada “litigância predatória”, tema que poderemos tratar em outro artigo, tamanha a nocividade para o sistema judiciário brasileiro.

A comichão que fomenta a judicialização dos conflitos foi inoculada à cidadania no mesmo período da redemocratização do Brasil. A consciência dos direitos se deturpou quando o acesso à Justiça foi franqueado, quando defensorias públicas se proliferaram, quando alguns advogados acreditaram que a indenização obtida por seus clientes se converteria em fonte de riqueza.

Conforme Newton, em sua terceira lei, "toda ação tem uma reação". No caso brasileiro, há uma cadeia de ações na mesma direção, pois toda condenação pecuniária estapafúrdia alimenta a falsa esperança de lucratividade. Embora haja uma tendência a estancar a volúpia indenizatória, os litígios judiciais somente foram encorajados pela descomunal hemorragia de mandados de pagamento expedidos em favor dos autores muitas vezes distribuindo altas quantias.

É preciso conter a judicialidade. Como? Deem aos litigantes o que precisam, e não o que querem. Resolvam as pendengas judiciais com mais lições morais e menos recursos monetários. Apliquem medidas coercitivas que não encham os bolsos, mas implantem uma nova cultura.

Revertam o ciclo da onipotência do vulnerável e estabeleçam a primazia do equilíbrio como preceito do julgamento. A desgraça de um povo está em receber salário como correção de um equívoco. Se crimes não são punidos bonificando a vítima com salários, por que meros ilícitos civis implicam em responsabilidade que se converte em vários salários? A recompensa do litígio foi subvertida em remuneração. A consequência é a generalização da preguiça e da doença a epidemia esquizofrênica da litigiosidade, para sermos mais exatos.

Hoje, segundo estatísticas, uma nova ação é proposta a cada cinco segundos. O Estado é o maior paciente do Judiciário, despejando milhares e milhares de ações pela própria inoperância do sistema.

Enquanto não buscarmos uma reeducação preventiva e direcionada para evitar essas doenças, nossos hospitais judiciários continuarão crescendo, mas asfixiados e respirando por aparelhos.

Muitos, para justificar a insanidade da litigiosidade, colocam essa epidemia na conta das grandes empresas, quando a doença é produzida em escritórios laboratoriais e na inconsciência oportunista de uma parcela da própria sociedade que insiste em buscar a cura de leves dores musculares com elevados dos generosos planos de saúde do Estado Judiciário.

Bem melhor se o inaplicável remédio do interesse de agir previsto no código processual medicamentoso do direito brasileiro ganhasse o protagonismo que o interesse conceitual deve ou deveria exercer.

O próprio conceito de "interesse" tem uma conotação que nos remete para o que é importante, útil, vantajoso, sob o ponto de vista moral, social ou material.

É a confusão entre a real necessidade-utilidade na relação médico versus paciente. Se não existe doença, não pode existir o paciente.

No judiciário não é diferente. Se o conflito não existe, dentro daquela ideia mais primária do direito, em que duas partes resistem, não há motivos para que os leitos do Judiciário sejam ocupados. Vamos continuar aumentando nossos balcões de atendimentos estatais para tratar transtorno compulsivos do litígio social desenfreado.

A condição de procurar um médico é a pré-existência de alguma doença.

A doença do litígio pode estar dentro de nós. Essa é a cura que devemos buscar.

Márcio Aguiar
Sócio Fundador da Banca Corbo, Aguiar e Waise Advogados. Especialista em Direito Empresarial. Ex-Diretor Jurídico da Câmara de Comércio Luso Brasilera. Co-Autor da Enciclopédia de Direito do Desporto.

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