A explosão midiática acerca da proposta de alteração da jornada de trabalho (o que se convencionou chamar de “fim da 6x1”) ensejou preocupações até mesmo no mais desinformado dos cidadãos brasileiros.
O “lançamento” da proposta foi precedido de reportagens diversas acerca da importância da redução da jornada para o trabalhador, possibilitando a qualidade de vida tão desejada por todos, com mais proximidade com a família e aumento das horas de lazer, “tal como acontece na Europa e por tendência mundial”.
Logo em seguida, tornada ostensivamente pública a proposta e a necessidade de colheita das assinaturas dos parlamentares para a tramitação da mesma, o quadro se acentuou, ensejando inúmeras manifestações por especialistas e políticos.
A estes, certamente, não é dado fugir do debate e o primeiro ponto a considerar é a tonalidade populista do contexto em que a proposta emerge. Não é a finalidade deste texto interpretar intenções, mas o modus operandi da própria divulgação e colheita das assinaturas revela o jogo denso com a opinião pública e a formação de dois times políticos - típica dos tempos de polarização.
A preocupação justa é de que as coisas aconteçam de forma açodada e que o tom populista faça aprovar uma proposta que é, no mínimo, sistematicamente delicada.
A alteração é substancial pois, como ocorre com diversos direitos trabalhistas, afeta a vida das pessoas e empresas de modo direto, podendo criar efeitos colaterais que precisam ser muito bem estudados e debatidos.
A começar pelo argumento principal dos apoiadores da proposta, que destaca a melhora da “qualidade de vida” do trabalhador, por supostamente conceder mais tempo de disponibilidade para outras coisas tão importantes quanto o trabalho (ou até mais importantes). Este argumento parece integrar a curiosa série brasileira na qual perdemos direitos e nada ganhamos em troca ou mesmo aquela do ganha, mas não leva: “vamos cobrar a bagagem excedente para baratear a passagem de avião”. Até hoje esperamos baratear.
Em verdade, na realidade brasileira (e não Europeia, Canadense ou Chilena), não há qualquer garantia da melhoria da qualidade de vida, pois, sistematicamente, outros efeitos podem sobrevir que forcem o trabalhador a duplicar sua jornada, fazer “bicos” para complementar a renda, uberizar, pejotizar, informalizar.
Neste sentido, a proposta não encontrará respaldo econômico, social e humano de fato até que sejam fracamente avaliados certos impactos – sendo que alguns deles já foram levantados no debate público:
- possível aumento da informalidade e utilização de outros meios de contratação que podem não garantir efetivamente direitos do trabalhador e gerar insegurança jurídica para os empregadores;
- possível duplicação da jornada para incremento da renda por perda do poder de compra vinculado à inflação, soterrando o argumento da qualidade de vida pelo uso do tempo disponível para outras finalidades;
- o impacto na produtividade e o possível aumento da inflação, já que, hipoteticamente e na condição atual das coisas, o empresário será compelido a contratar mais para produzir igualmente, de modo a afetar a precificação;
- impacto na previdência social a médio e longo prazo, como consequência da informalidade e outros aspectos;
- a necessidade de tratamento diferenciado entre empresas de naturezas distintas (Ex. sociedades pessoais x sociedade de capital), especialmente em relação aos micro e pequenos empresários;
- análise setorial, verificando a viabilidade para segmentos econômicos específicos e com consequente proteção dos empregadores mais economicamente vulneráveis, repetindo-se o imperativo de atenção aos micro e pequenos empresários;
- possíveis incentivos em relação à folha salarial, valendo lembrar que apenas o aumento da oferta de crédito pode não atender a esta finalidade – até porque a situação dos juros, ante a inflação, gera um novo elemento a considerar;
- impactos das tecnologias em relação aos postos de trabalho disponíveis, sendo este, aliás, tema que merece atenção mais imediata e que possui relação direta com as horas trabalhadas e bem-estar no trabalho (e fora dele).
- aprofundamento dos estudos relacionados à alocação de tempo pelos brasileiros, considerando, dentre outros fatores: o trabalho, deslocamento/transporte e lazer, destrinchando como este tempo é efetivamente utilizado.
É possível ainda se pensar na redução gradual da jornada, estudando-se os efeitos reais dentro de um prazo razoável.
Note-se que os aspectos de saúde, família, aprimoramento profissional e os fatores de mercado não se excluem. Assim, a redução da jornada não deve ser vista como uma solução mágica, enquanto diversos outros problemas sociais e econômicos afetam trabalhadores e empresas cotidianamente.
Neste contexto, vale destacar as evidencias de deterioração da cultura de trabalho, antes marcada pela clara compreensão do seu valor para o desenvolvimento pessoal e coletivo, contribuindo para superação dos desafios existenciais e dignificação. Assim, o fundamento de bem-estar constante da proposta gera um desnecessário antagonismo, ainda que impensado, a este relevante fator social – solapando algo que já está sob crescente ataque.
Vejam-se ainda os sinais alarmantes de como o brasileiro está usando seus recursos, mesmo aqueles advindos de auxílios governamentais, como no caso das bets. Dentre muitas outras coisas, isto serve como um indicativo de alocação de tempo disponível e ainda demonstra a desconexão com o consumo consciente e o déficit na educação financeira – elementos estes que, somados ao endividamento das famílias, já estão estressados e precisam de atenção prioritária.
Se quisermos sinceridade sobre bem-estar das famílias e trabalhadores, esta teia de fatores não pode ser desconsiderada. Não é coerente falar em redução da jornada para proteção ao trabalhador se, no “tempo livre”, ele é obrigado a trabalhar mais para compensar uma série de outros problemas sociais e econômicos que pesam sobre os seus ombros e dos milhões de empresários do país.