A vara Federal de Ponte Nova/MG1 proferiu sentença absolutória em favor de todos os réus na ação penal relativa ao rompimento da barragem de fundão, ocorrido em Mariana/MG no ano de 2015. O desastre resultou na morte de 19 pessoas, comprometeu a bacia do Rio Doce com rejeitos de minério e causou danos em mais de 40 municípios.
A acusação, formalizada pelo Ministério Público Federal, alegou que as empresas Samarco, Vale e BHP, juntamente com seus executivos e técnicos, foram responsáveis pelo rompimento da barragem ocorrido em novembro de 2015, resultando em mortes, lesões corporais, e danos ambientais massivos. A denúncia se baseou em dois conjuntos principais de fatos:
- Conjunto de fatos 1: Atribuiu-se a responsabilidade direta pela tragédia à samarco (proprietária da barragem) e às suas acionistas Vale e BHP, além de diversos executivos. Segundo o MPF, a escolha de métodos construtivos inseguros e a localização inadequada da barragem, apontados em estudos ambientais prévios, configuram uma situação de risco que foi negligenciada pelos acusados. A acusação sustenta que os réus, ao ocuparem posições de comando e gerência, tinham o dever de evitar o evento catastrófico e se omitiram, permitindo a ocorrência de poluição, destruição ambiental e perda de vidas.
- Conjunto de fatos 2: Neste eixo, a acusação concentrou-se na falsificação e omissão de informações sobre a estabilidade da barragem e sobre o lançamento de rejeitos provenientes da Usina Alegria. A empresa VOGBR, responsável pela avaliação de estabilidade, teria, segundo a acusação, emitido um laudo falso garantindo a segurança da estrutura, mesmo ciente das falhas graves na barragem. Além disso, a Samarco e suas acionistas teriam omitido dados sobre o depósito de rejeitos, o que configura infrações contra a administração ambiental.
As imputações incluíram homicídios qualificados, lesões corporais graves, crimes contra o meio ambiente e falsidade ideológica, com o MPF pedindo a condenação dos réus e o pagamento de indenizações para reparação dos danos ambientais e humanos.
Contudo, a sentença proferida em 14 de novembro de 2024 julgou improcedente o pedido, com a absolvição de todos os Réus. O fundamento baseou-se na ausência de elementos necessários para a atribuição de responsabilidade penal, focando na análise detalhada do nexo causal, essencial para a configuração do delito. A decisão possui os seguintes pilares:
- Nexo causal e a teoria da imputação objetiva: A sentença discorreu sobre o nexo causal, destacando a importância da teoria da imputação objetiva. Segundo essa teoria, apenas haverá crime quando a conduta do agente cria um risco proibido que se materializa no resultado típico e, ainda, quando esse resultado está dentro do alcance do tipo penal. O juízo rejeitou a aplicação simplista da teoria da equivalência dos antecedentes causais, a qual considera toda ação ou omissão indispensável como causa, por entender que essa teoria seria insuficiente para casos de causalidade complexa e múltipla, como no desastre de Fundão?.
- Impossibilidade de identificação da conduta direta dos réus: A decisão destacou a ausência de provas suficientes para imputar, com certeza jurídica, condutas específicas e determinantes aos réus que resultassem diretamente no rompimento da barragem. A análise revelou que, embora os réus estivessem em posição de garantidores, isto é, possuíam dever jurídico de prevenir o evento, não se provou que omissões ou atos específicos desses indivíduos fossem, por si só, decisivos para o colapso da estrutura?.
- Subsidiariedade e fragmentariedade do direito penal: A sentença fundamentou-se no princípio da subsidiariedade, reafirmando que o Direito Penal deve ser reservado como ultima ratio, ou seja, ser utilizado apenas quando outros mecanismos de controle social e reparação se mostram ineficazes. No contexto de um evento ambiental de grande magnitude e complexidade técnica, a imposição de responsabilidade penal seria inadequada diante da dificuldade em comprovar um vínculo direto e objetivo entre as ações dos réus e o resultado trágico. O juízo considerou que, diante de um evento de causalidade difusa, o Direito Penal fragmentário não deve estender sua incidência indiscriminadamente sobre agentes cujo vínculo com o dano não se demonstre cabalmente comprovado?.
- Responsabilidade penal das pessoas jurídicas e “defeito de organização”: No que concerne à responsabilização das pessoas jurídicas, o juízo abordou a noção de "defeito de organização," que se refere à ausência ou insuficiência de mecanismos internos de controle que poderiam mitigar riscos. No entanto, em conformidade com o princípio da legalidade, a sentença afastou essa abordagem, argumentando que a legislação penal brasileira ainda adota um modelo de heterorresponsabilidade, onde a responsabilização da empresa depende da conduta de uma pessoa natural. Assim, a sentença limita a responsabilidade penal das acionistas (Vale e BHP) pelo princípio da separação jurídica e administrativa entre estas e a Samarco, rejeitando a atribuição de responsabilidade criminal direta às acionistas com base apenas em falhas organizacionais.
- Acordo cível e reparação de danos como forma de justiça reparatória: O juízo reconhece que, embora as ações individuais dos réus não possam ser diretamente vinculadas ao evento danoso no âmbito penal, a compensação pelos danos já está parcialmente endereçada na esfera cível. O acordo firmado entre Samarco, Vale e BHP, com grande aporte financeiro para a reparação ambiental e indenização às vítimas, foi enfatizado como medida mais adequada para mitigar os danos do evento, dada a ausência de provas suficientes de dolo ou culpa direta dos réus na ocorrência do rompimento?.
Tais fundamentos reafirmam a necessidade de provas robustas e claras do nexo causal para responsabilização penal, refletindo a posição de que o Direito Penal deve agir de forma restritiva e apenas quando demonstrado, de maneira inequívoca, o envolvimento direto e culpável dos acusados no resultado danoso.
Sobre o nexo de causalidade, em recente tese de doutorado defendida2, foi apresentada a proposta de um modelo de imputação para entes empresariais em resposta às dificuldades de delimitação das condições causais. Partiu-se da premissa de que o nexo causal entre o exercício da atividade empresarial e o resultado lesivo pode ser apurado dentro dos estreitos limites da atuação corporativa, pois certos eventos e condutas ocorrem exclusivamente no âmbito da pessoa jurídica. Esse nexo causal corporativo, referido como "causalidade corporativa," possibilitou a orientação dos resultados no contexto do exercício da atividade pela pessoa jurídica, sendo verificável na práxis. As condutas e processos internos da pessoa jurídica explicam o resultado como fruto de uma sequência regular e previsível de eventos, observáveis no desenvolvimento contínuo de sua atividade.
Esse nexo causal corporativo está intimamente relacionado às normas que regulamentam a atividade empresarial, complementando as normas de proibição e de obrigação. Por estar embutida na estrutura normativa da atividade, a causalidade corporativa estaria apta a esclarecer os acontecimentos e trajetórias que ocorrem dentro dos entes empresariais, quando esses se refletem em lesões a bens jurídicos tutelados.
A relevância do nexo de causalidade nos processos da pessoa jurídica ganha especial relevância nas imputações penais, devendo ser demonstrado para a eventual responsabilidade penal.
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1 Autos 0002725-15.2016.4.01.3822.
2 RAMOS, Samuel Ebel Braga. Causalidade corporativa: a possibilidade de atribuição de resultados puníveis à pessoa jurídica. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. Orientador: Paulo César Busato – Curitiba, 2024.