1. No final de 2023 publiquei artigo no boletim Migalhas1 – com o título ‘O mistério dos arts. 23 e 24 da lei 9.514/97 (ou a casa da mãe Joana legislativa)’ – apontando algumas óbvias incongruências nas transcrições da predita lei, especificamente quanto à redação vigente dos arts. 23 e 24, que suportaram revogação, inclusão e transformação de parágrafos originados na MP 1.162, depois convertida – com emendas e supressões – na lei 14.620, ambas de 2023, publicadas nos portais do Governo Federal e da Câmara dos Deputados, repositórios comumente utilizados pelos operadores de direito para consulta e reprodução da legislação nacional. Desde então, o portal do Executivo corrigiu grande parte das impropriedades apontadas; o portal do Legislativo mantém na íntegra o texto contraditado.
2. Há alguns dias, em busca de elementos doutrinários de sustentação à tese que desenvolvia para um parecer sobre a contagem do prazo conferido ao credor fiduciário para a efetiva entrega ao fiduciante da importância sobejante à dívida, obtida em leilão público realizado nos termos da lei 9.514/1997, compulsei o excelente e atualizado Manual de Direito Civil do professor Flávio Tartuce2e deparei-me com o seguinte parágrafo:
“Ainda quanto ao leilão, nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel nesse ato extrajudicial, o credor entregará ao devedor fiduciante a importância que sobejar ou sobrar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos, o que importar em recíproca quitação. Nessa atual redação do comando, o seu trecho final prevê que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil (art. 27, § 4º, da lei 9.514/97, na redação da lei 14.711/23). Não incide, assim, a regra relativa à preempção ou prelação convencional, segundo a qual direito de preempção caducará, se a coisa for imóvel, não se exercendo nos sessenta dias subsequentes à data em que o comprador tiver notificado o vendedor. Causa estranheza a inclusão dessa previsão, uma vez que a preempção ou preferência convencional depende de previsão no instrumento negocial.”3
Depois de alguns minutos de meditação, sem conseguir integrar o exercício da preempção e sua caducidade no assunto abordado, aventei a possibilidade de defeito na impressão do tratado (uma espécie de maldição do referido dispositivo legal que, na segunda edição do meu livro sobre a alienação fiduciária, recentemente lançada4, desapareceu por completo do texto final, sem qualquer explicação) e resolvi conferir a matéria em outra obra do nosso jurista – Direito Civil: Direito das Coisas5 – e lá encontrei o mesmo parágrafo, pleno, inclusive quanto à ‘estranheza’ do autor da alentada obra.
Buscando socorro, então, no texto oficial e integral da lei 14.711/23, reli cuidadosamente o supramencionado parágrafo legal que compõe o art. 2º da lei, nos seguintes termos:
Art. 2º A lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, passa a vigorar com as seguintes alterações:
[...]
“Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta lei.
[...]
§ 4º Nos 5 dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao fiduciante a importância que sobejar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos de que trata o § 3º deste artigo, o que importará em recíproca quitação, hipótese em que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).6
3. ‘Lux Venit’. Apreendi de imediato que, para desconforto do eminente professor Flávio Tartuce, o desleixado legislador – que deveria apenas e tão somente especificar que o destinatário do valor sobejado é o fiduciante e não o devedor, como erroneamente indicado na redação original – aproveitou a oportunidade para atualizar a redação ‘lincando’ o artigo de lei do código civil de 1916 ao código civil vigente.
O citado dispositivo vigeu, desde a promulgação da lei 9.514/97 – anteriormente ao atual código civil – com a seguinte redação:
[..]
§ 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.7
Após a intervenção do estulto legislador passou, inadvertidamente, a vigorar, desde 30/10/23, da seguinte forma:
[...]
§ 4º Nos 5 dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao fiduciante a importância que sobejar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos de que trata o § 3º deste artigo, o que importará em recíproca quitação, hipótese em que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Redação dada pela lei 14.711, de 2023)8
O problema é que o citado art. 516 do Código Civil revogado em 2002 corresponde ao art. 1.219 do Código vigente; “o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”9
Assim, restaria compreensível, por conta da mútua quitação, a ressalva da não aplicabilidade do disposto na parte final do art. 516 do Código Civil de 1916 e repetida no art. 1.219 do Código Civil vigente, que permite ao possuidor de boa-fé exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.
Um mínimo de cuidados na elaboração e, principalmente, na revisão do texto legislativo final, já distanciada do mormaço dos interesses pessoais e políticos, seria suficiente para evitar erros grosseiros como o relatado, mas, bem diziam os germânicos que “quanto menos as pessoas souberem como são feitas as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite”.
4. Pelo exposto, tomo a liberdade de repetir o que escrevi no artigo publicado em dezembro de 2023:
Os desacertos apontados podem parecer desimportantes, mas revelam a incúria e o descaso do legislador no tratamento da norma, resultantes, dentre outros fatores, do desnecessário aproveitamento da urgência das medidas provisórias e da avidez com que representantes das entidades e dos mercados financeiros avançam contra os direitos dos fiduciantes, o que restou claramente evidenciado na redação final da lei 14.711/23, fragilizando o instituto e proporcionando relevantes argumentos para a judicialização de seus procedimentos.
Está na hora da eclosão de um movimento de depuração da lei, para o efetivo aprimoramento do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel e para a correção dos desvios e exclusão dos malfeitos na lei 9.514/97, tão importante para a garantia dos negócios jurídicos em geral.
------------------
1 Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.738, de 02 de dezembro de 2023.
2 Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 14. ed. Rio de Janeiro: Método, 2024.
3 Op. cit. p. 1177/1178.
4 Rocha, Mauro Antônio. Alienação fiduciária de bem imóvel: da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. 2. ed. Leme - SP: Mizuno, 2024. p. 715.
5 Tartuce, Flávio. Direito Civil: Direito das coisas. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
6 www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14711.htm. Texto vigente e acessado em 10/11/2024.
7 www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm. Texto acessado em 10/11/2024.
8 www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm. Texto vigente e acessado em 10/11/2024.
9 www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Texto vigente e acessado em 10/11/2024