Durante muitos anos, o STJ possuía o entendimento de que o imóvel alienado fiduciariamente não podia ser penhorado em execução de despesas condominiais do devedor fiduciante.
Tal entendimento guarda coerência com a regra legal pela qual o devedor fiduciante não tem mais a propriedade do imóvel, mas uma propriedade resolúvel, um direito aquisitivo que cresce na medida do pagamento da dívida. Consequência, então, a penhorabilidade desse direito aquisitivo, de liquidez e valoração questionável, vale dizer.
Dois recentes julgados, no entanto, causaram uma reviravolta inesperada nesse cenário e vem gerando diversos questionamentos não apenas sobre o ponto de vista material, quanto também processual.
O caso que motivou a revisão jurisprudencial foi analisado, no âmbito do REsp 2.059.278/SC, pela Quarta Turma do STJ. Os fatos noticiavam que o devedor fiduciante deixou de pagar as quotas condominiais incidentes sobre o imóvel alienado fiduciariamente, mas seguia adimplente com relação ao contrato de mútuo garantido pela alienação fiduciária celebrado com a instituição financeira.
O condomínio, então, ajuizou ação de cobrança contra o devedor fiduciante para recebimento dos valores e, uma vez frustrada a tentativa de penhora online de valores, requereu a penhora do imóvel originário do débito, o qual se encontrava gravado com alienação fiduciária.
O TJ/SC indeferiu o pedido de penhora do imóvel, tendo, no entanto, admitido a penhora dos direitos aquisitivos decorrentes do respectivo contrato de alienação fiduciária. Tal decisão pautou-se na então consolidada jurisprudência do STJ, a qual rechaçava pedidos dessa natureza, considerando a previsão contida no art. 789 do CPC e o fato de que, como já mencionado, o imóvel não se encontrava mais no patrimônio do devedor.
O condomínio, então, interpôs recurso especial para defender a penhorabilidade do imóvel gerador das despesas condominiais, ainda que alienado fiduciariamente em garantia, pois referidos débitos possuem natureza propter rem. Esse argumento central foi manejado no contexto dos efeitos indesejáveis e prejudiciais desse inadimplemento para os demais condôminos.
Assim, a Quarta Turma do STJ entendeu que merecia ser acolhida a tese do condomínio, reconhecendo uma mudança radical do entendimento da Corte sobre o assunto. O relator do voto vencido, ministro Marco Buzzi, seguiu a jurisprudência até então consolidada do Tribunal Superior e negou provimento ao recurso.
O ministro Raul Araújo, no entanto, abriu divergência para defender que o afastamento do imóvel garantido do patrimônio do devedor conferiria direitos de propriedade ao credor fiduciário superiores àqueles do devedor fiduciante, o que não encontraria amparo na legislação. Também dispôs em seu voto sobre o caráter propter rem das despesas condominiais, que prevaleceria sobre o direito do credor fiduciário, além dos demais elementos que decorrem do contexto acima resumido.
Diante da importância e controvérsia do tema, em 21/6/24, a Segunda Seção do STJ designou os REsp 1.874.133/SP e REsp 1.883.871/SP como casos representativos da controvérsia repetitiva no Tema 1.266.
Em setembro de 2024, em uma nova decisão, dessa vez monocrática, proferida no AREsp 2.684.988/SP, o ministro Raul Araújo voltou a reconhecer a possibilidade de penhora de bem alienado fiduciariamente, não apenas dos direitos aquisitivos, para pagamento de dívida condominial.
Balancear dois interesses igualmente legítimos sobre o imóvel, o crédito condominial e a garantia do credor fiduciário sobre o imóvel é, de fato, uma questão complexa. Tão importante quanto ponderar sobre a questão é avaliar o que dela decorre, para o tratamento de questões similares no futuro e, quiçá, evitar um desfecho indesejável que pode vir dessa atual interpretação.
Até então, nas execuções de dívidas condominiais em que o credor buscava expropriar imóvel alienado fiduciariamente, os tribunais costumavam, em sua maioria, autorizar apenas a penhora sobre os direitos à propriedade resolúvel desse bem, em atenção à previsão contida no art. 835, XII, do código processual.
O credor fiduciário, então, era intimado para informar os valores já pagos pelo devedor fiduciário, que, por sua vez, correspondiam ao valor de avaliação dos referidos direitos levados à venda em hasta pública.
Ao longo do tempo, porém, constatou-se que leilões de tais direitos tendem a ser frustrados, mormente pela duvidosa liquidez acima apontada de tais direitos, na medida em que, afinal, em havendo arrematação, o arrematante adquire tão-somente a propriedade resolúvel do imóvel, acompanhada de uma dívida muitas vezes superior ao valor de mercado do próprio imóvel, sub-rogando-se na posição contratual de devedor fiduciante.
Portanto, o arrematante inicialmente assume a dívida junto à instituição credora até que, futuramente, quitado o financiamento, adquira a propriedade plena do imóvel. Na prática, essa dinâmica acaba frustrando a expectativa de obtenção de um preço mais favorável em leilão, ou muitas vezes se mostra complexa para alcançar amplamente um púbico a participar de leilões.
Do outro lado, a instituição financeira se vê em uma situação pouco confortável, pois caso o leilão venha a ser exitoso, o devedor de um contrato intuito personae acaba sendo substituído sem qualquer avaliação prévia por parte do agente fiduciário sobre a capacidade do adquirente de assumir o pagamento das parcelas em aberto no contrato. De certa forma, ainda que a garantia não pereça, a expropriação representa uma interferência na relação contratual existente entre fiduciário e fiduciante.
Fato é que, sensíveis à oneração dos condôminos adimplentes, que acabam arcando com o débito do vizinho inadimplente, e, como já dito, prestigiando a natureza propter rem de obrigações condominiais, o STJ vem analisando alternativas. Nas discussões que antecederam o voto colegiado da Quarta Turma, considerou-se duas possibilidades: A que acabou prevalecendo e a possibilidade de penhora sobre os direitos à propriedade resolúvel, com a expropriação não dos direitos, mas do próprio bem imóvel.
Embora em um primeiro olhar pareçam atrair a mesma consequência, qual seja, a de que, ao fim e ao cabo, o bem imóvel seria liquidado para saldar uma dívida diferente daquela que se prestou a garantir junto ao credor fiduciante, há nuances bem distintas entre os dois cenários.1
A solução de penhora sobre direitos aquisitivos, seguida da expropriação do imóvel, parecia ser o reconhecimento de uma indissociabilidade entre os direitos à propriedade resolúvel e o bem imóvel, a demandar que o leilão atingisse ambos.
Nesse contexto, poderia ser aplicada a dinâmica estabelecida no art. 843 do CPC, com o entendimento já pacificado desde 2019 pelo STJ. Esse dispositivo foi introduzido para endereçar um problema muito parecido em casos de penhora de meação ou copropriedade em bem imóvel indivisível: À vista do baixo interesse em se adquirir em leilão uma copropriedade, o legislador optou por promover a expropriação sobre a totalidade do bem, adotando-se, contudo, medidas para se evitar que o coproprietário sofra prejuízos com a medida.
Nessas situações, o coproprietário ou meeiro da penhora, que possui direito de preferência na aquisição do bem, é intimado e, mais importante, os lances do leilão sempre devem preservar o valor atribuído a sua copropriedade. Assim, não havendo arrematante em uma primeira praça, a redução a ser aplicada ao valor de avaliação na segunda praça recai apenas sobre a meação ou parte ideal penhorada.
Transportada essa dinâmica para o caso analisado pela Quarta Turma do STJ, os direitos aquisitivos seriam penhorados, avaliando-se tanto os direitos à propriedade resolúvel quanto o imóvel. Sendo necessária uma segunda praça, apenas os valores referentes aos direitos à propriedade resolúvel (ou seja, correspondentes ao valor já quitado do financiamento) sofreriam redução.
Na prática, em caso de arrematação, o valor de arremate seria primeiramente utilizado para quitar o débito fiduciário (pois o credor fiduciário é o proprietário do imóvel e possui direito de preferência) e, posteriormente, o débito condominial e as custas processuais. Eventual saldo seria, então, restituído ao devedor fiduciário.
De acordo com as recentes decisões do STJ, no entanto, o credor fiduciário deve ser citado, facultando-lhe a oportunidade de quitar o débito condominial. Nessa linha, em caso de penhora do imóvel alienado fiduciariamente e posterior venda pública, o arrematante adquire a propriedade plena do bem, não apenas dos direitos aquisitivos.
Ademais, com base em uma aplicação analógica da Súmula 478 do STJ e de acordo com o referido acórdão da Quarta Turma, o pagamento das dívidas condominiais possuiria preferência frente ao crédito fiduciário, o que pode acarretar imenso prejuízo ao credor fiduciário nos casos em que o valor de mercado do imóvel for insuficiente para quitação da dívida executada e, ainda, do saldo do contrato de alienação fiduciária.
Nesses casos, nos parece que as melhores opções para o credor fiduciário seria quitar o débito condominial e ajuizar uma ação de regresso em face do devedor fiduciário, ou, ainda, fazendo uso da prerrogativa prevista nos art. 22, § 6º, e 26, §1º, da lei 9.514/97, excutir a garantia, tornando-se proprietário do imóvel.
Seja como for, essa evolução jurisprudencial vem gerando inúmeras discussões e, em um momento em que a administração pública tem feito um consciente esforço para reduzir a judicialização, acrescentar complexidade a uma lide já em curso, com a constrição de bem de terceiro que sequer integra a lide, parece ir na contramão desse movimento.
Um outro ponto de destaque é a determinação da citação do credor fiduciário no processo de origem, ao invés da sua intimação para ciência ou eventual quitação da dívida condominial, em atenção às previsões contidas nos art. 799, I, e 804, § 1, do CPC.
A citação do credor fiduciário implica sua inclusão formal no processo, conferindo-lhe o direito de defesa e participação ativa no litígio, equiparando-o a um litisconsorte necessário. Essa medida, que pode ser vista como uma proteção ao credor fiduciário, pode também ser questionada em termos de necessidade, pois tende a retardar o curso processual e criar impasses no cumprimento da execução de débitos condominiais, que, por sua natureza, têm caráter de urgência.
Esse cenário tem suscitado uma série de questionamentos para os quais ainda não há respostas. Seria a citação uma forma de garantir a ampla defesa do credor fiduciário ou a burocratização do procedimento? Seria assegurado o direito constitucional do credor fiduciário, agora parte da demanda, à ampla defesa e produção de provas? Em casos em que o imóvel se encontra alienado fiduciariamente em favor da Caixa Econômica Federal, diante da sua condição de empresa pública federal, sua inclusão no polo passivo da demanda ensejaria o declínio da competência para processamento e julgamento do feito para a justiça federal? Nos parece que sim.
De todo modo, a referida evolução jurisprudencial não é o único elemento a ser considerado, havendo, por exemplo, no Marco Legal das Garantias, lei novíssima que introduziu mecanismos diferentes que permitem novas formas de gestão das garantias. Ou seja, sob o ponto de vista negocial, essa mudança na jurisprudência até então consolidada requer atenção redobrada em contratos empresariais que tenham como pacto de garantia a alienação fiduciária, seja com relação à adoção de mecanismos que, com o advento do Marco Legal das Garantias, permitam afastar inadimplementos de verbas acessórias com a sua inclusão no valor devido, bem como, outros mecanismos para, se conveniente, uma melhor gestão da garantia ou, ainda, a adoção de outra modalidade de garantia.
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1 Em qualquer das hipóteses, caso se queira alterar nesse ponto os contornos da garantia da alienação fiduciária, seria bem-vinda uma alteração legislativa, em que pese não ser esse o ponto dessa análise.