Migalhas de Peso

É confisco, sim!

Crítica à lei 14.973/24, vista como confisco inconstitucional de valores inativos. Defende o direito à propriedade e denuncia o paralelo histórico negativo.

11/11/2024

O governo aprovou, na lei 14973/24, a possibilidade de “incorporar ao tesouro nacional” valores não movimentados por pessoas físicas e jurídicas em instituições financeiras nos últimos 25 anos. O tema ferveu na mídia, e o Executivo se apressou em dizer que “não se trata de confisco”.

Na condição de alguém que estuda o tema do confisco há mais de 20 anos, quando publicamos a obra denominada “O Princípio do Não-confisco no Direito Tributário”, inclusive utilizada pelo próprio STF para embasar julgamentos sobre o tema, tomo a liberdade de esclarecer: é confisco, sim. Objetivamente, confiscar é o ato de apreender bens em prol do Fisco, exatamente o que está se fazendo aqui.

O governo deu 30 dias para o confiscado se manifestar, ou ainda 6 meses para contestar o confisco na justiça, o que não altera a natureza do ato, que consiste em tomar para si patrimônio alheio, sem compensação e de forma definitiva.

Sustenta ainda que tal prática está prevista em lei desde 1954, “esquecendo” que, neste meio tempo, sobreveio a CF/88, que repudia veementemente o confisco e garante de forma inabolível o direito de propriedade, inadmitindo, inclusive, qualquer inciativa “tendente” a ferir esse direito fundamental.

Pela Carta, a tomada da propriedade alheia pelo Estado somente pode ocorrer nas seguintes hipóteses: (i) em caráter de pena pela prática de um delito ou (ii) mediante justa e prévia indenização, via desapropriação. Fora dessas hipóteses, o cidadão somente pode ser chamado a contribuir para o custeio do Erário mediante a instituição de tributo, dentro dos limites impostos pela CF/88. Inexiste espaço constitucional para perda da titularidade de ativos financeiros por “transcurso do tempo”.

A existência de depósitos em que o interessado não tenha manifestado interesse ou sem movimentação não autoriza o seu confisco em favor da União. A legislação brasileira já disciplina exaustivamente o regime de aquisição de coisas vagas, jacentes ou de ausentes, que a 14.973/24 chama de “recursos esquecidos”. Para coisas vagas, aquelas em que se ignora o seu titular, a lei determina que esta seja entregue ao seu dono e, caso não localizado, seja o bem alienado em hasta pública e o resultado convertido em favor do Município (arts. 1.233 a 1.237 do CC). A herança deixada por quem não possui herdeiros e os bens de pessoa declarada ausente também devem, pela lei, ser destinados ao município ou ao Distrito Federal (arts. 22 a 25 e 1.819 a 1.823 do CC).

É inevitável o paralelo com o confisco da poupança praticado pelo governo Collor, do qual os brasileiros (e o mercado) jamais se recuperarão. Lamento dizer, contudo, que a situação lá era bem melhor, já que a medida utilizada, juridicamente, era um empréstimo compulsório, ou seja, uma iniciativa que já nascia com a afirmação de que o dinheiro era do particular, aliada ao compromisso legal de devolver os valores. Mesmo Collor jamais pretendeu se apropriar de forma definitiva dos ativos. E o brasileiro achava que nunca mais experienciaria o confisco de seus depósitos, já que a EC 32/01 passou a proibi-lo. No entanto, a proibição aludia apenas ao uso de “medida provisória” com tal objetivo, e o governo agora, “espertamente”, tenta emplacar o seu confisco por meio de lei ordinária.

Aqui, infelizmente, a única comparação possível é com a prática adotada por bancos suíços após a Segunda Guerra Mundial, quando tomaram a liberdade de “incorporar” ao seu patrimônio o dinheiro das famílias judias (e de suas empresas) exterminadas no holocausto. Afinal, não havia ninguém para reclamar do ato de confisco. Mesmo assim, vale dizer que a demanda proposta pelo World Jewish Congress para reaver o dinheiro (ou ser indenizado) foi vitoriosa e resultou no pagamento de bilhões de dólares em indenização.

No caso atual, o governo sequer tentou se utilizar da figura de um empréstimo compulsório, até mesmo porque a CF/88 somente autoriza a utilização de tal expediente para atender despesas com calamidade pública, guerra ou investimento urgente de relevante interesse nacional, não podendo ser instituído para sanar dificuldades financeiras decorrentes da má-gestão do caixa pelo Executivo.

Fica bastante óbvio que não há onde encaixar, na CF/88, a prática confiscatória adotada pelo governo federal, que viola o pacto federativo ao tomar para si recursos que são dos municípios e do Distrito Federal. A questão é simples: o governo está se apropriando de bens que não são seus, sem indenização e de forma definitiva para tapar buraco em sua contabilidade criativa. E, apesar de deter os meios para tanto, preferiu não envidar esforços adicionais para identificar os possíveis beneficiários das importâncias. Diga-se que os valores chegam a R$30,4 milhões para uma única pessoa jurídica; e R$11,2 milhões para uma única pessoa física; e totalizam 8,6 bilhões de reais. Mas quem se importa? Melhor dar esse assunto por “enterrado”.

Fabio Brun Goldschmidt
Sócio Administrador do Andrade Maia, fundador e coordenador da área tributaria. Mestre e Doutor em Direito Tributário.

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