A reta final dos mandatos dos presidentes das Casas é marcada por dois esforços simultâneos: a eleição dos sucessores, e a aprovação de projetos de lei que aguardam votação.
O senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) já encaminhou a eleição de David Alcolumbre (União Brasil-AP). Falta a aprovação de projetos herdados de sua caneta, dentre os quais o PL 2978/23 que altera a lei da SAF (lei 14.193/21), já aprovado no Senado e pendente do aval da Câmara dos Deputados.
Assim como o PL 2978/23, a lei da SAF é de autoria de Pacheco. A lei estimulou a profissionalização da gestão dos clubes de futebol mediante a conversão das associações civis em sociedades anônimas de futebol (SAFs), regidas pela lei da SAF e subsidiariamente pela lei das S.A. (lei 6.404/76).
Até o final de 2023, já existiam 58 SAFs no Brasil, incluindo os três clubes brasileiros finalistas das atuais Copas Libertadores e Sul-Americana - Atlético Mineiro, Botafogo e Cruzeiro. Isso ilustra que a lei da SAF “pegou”, ao contrário de tentativas anteriores (como a lei Zico e a lei Pelé) que fracassaram em modernizar a administração dos clubes.
De um lado, a lei da SAF conferiu segurança jurídica para a alocação de recursos no futebol brasileiro, como a previsão de que “(a SAF) não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição” (art. 9º, caput); e, de outro lado, assegurou que a gestão da SAF atenderia a elevados padrões de governança, como os deveres ao controlador e os administradores da SAF (arts. 4º-6º).
Em outras palavras: uma parte das regras da lei da SAF converte os clubes em ativos atraentes aos olhos dos investidores, e a outra garante que o clube, sua história e seus torcedores estarão protegidos independente de quem seja o eventual comprador do clube.
Mas se a lei da SAF vingou, então por que então alterá-la? Aliás, do futebol que vem a máxima “em time que está ganhando não se mexe”.
Na prática, contudo, não é bem assim. Mesmo após uma temporada vitoriosa, times multicampeões aproveitam a janela de transferência para reforçar posições carentes, sem abdicar do estilo de jogo que os consagrou.
O PL 2.978/23 faz justamente isto: reforça os fundamentos da lei da SAF por meio do ajuste em pontos específicos.
As principais alterações são de duas ordens: (i) o combate a interpretações do Judiciário que responsabilizam as SAFs pelas dívidas das associações; e (ii) o aprimoramento do sistema de governança das SAFs.
Combate a interpretações do Judiciário
Um dos princípios básicos da lei da SAF é a segregação entre a associação e a SAF já que, caso contrário, os investidores hesitariam diante do risco de que a SAF estivesse exposta às dívidas da associação.
Como outro lado da mesma moeda, a lei da SAF fixou a destinação obrigatória de receitas da SAF em favor da associação para o pagamento de obrigações anteriores à constituição da SAF (art. 10).
Por essa lógica, a lei da SAF estimula o aporte de recursos nas SAFs, e ao mesmo tempo garante que as obrigações das associações com os credores serão honradas.
A incompreensão dessa lógica pelo Judiciário, no entanto, já resultou em decisões que responsabilizam a SAF pelas dívidas da associação. Ilustra isso o caso do ex-preparador de goleiros do Cruzeiro que apresentou uma reclamação trabalhista em face da associação.
O juiz da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte reconheceu a existência de grupo econômico entre a associação e a SAF do Cruzeiro. Resultado: a SAF foi condenada solidariamente ao pagamento das verbas laborais (ver Reclamação Trabalhista 0010052-44.2022.5.03.0012, julgado em 17/3/22).
Na contramão disso, o PL 2978/23 alterou a lei da SAF em diferentes dispositivos para enfatizar que “(a) constituição da Sociedade Anônima do Futebol não implica a formação de grupo econômico entre ela e o clube ou pessoa jurídica original que a constituir” (art. 2º, §7º); “o clube ou pessoa jurídica original é exclusiva e integralmente responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima de Futebol” (art. 10); e “(é) vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas da Sociedade Anônima do Futebol, inclusive por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie, com relação às obrigações do clube” (art. 12).
Aprimoramento da governança das SAFs
Desde o momento em que se tornam “sociedades anônimas”, os clubes de futebol ficam sujeitos a rigorosas normas de governança.
Ao contrário do CC (onde estão previstas as regras aplicáveis às associações), a lei das S.A. disciplina detalhadamente a composição dos órgãos de administração, os instrumentos de prestação de contas e os deveres do acionista controlador, além de outros itens relevantes para a proteção dos acionistas minoritários.
Somado a isso, a lei da SAF criou regras adicionais sob medida para a empresa atividade futebolística. Exemplos disso são as ações ordinárias “classe A”, conferidas exclusivamente à associação que originou a SAF e com direito de veto sobre a alteração do nome, cores, símbolos e endereço da SAF (art. 2º, §4º); as regras de conflito de interesse com vedação de que o acionista controlador detenha participação em outra SAF, como um clube rival ou da mesma divisão (art. 4º); e as diversas exigências para a nomeação de membros do Conselho de Administração e Fiscal da SAF (art. 5º, §1º).
São regras que obviamente aumentam o custo de se tornar SAF. Razão de que o professor Carlos Portugal, em artigo, criticou a lei da SAF como “pensada apenas para os grandes clubes de futebol, para os quais tais custos não seriam muito relevantes”.
De fato, é louvável a intenção de favorecer a conversão de associações em SAFs por meio da eliminação de exigências custosas para boa parte dos clubes brasileiros.
No entanto, há razões de sobra para pensar duas vezes antes de flexibilizar uma regra que ainda está em vias de se consolidar. A recente crise no Vasco da Gama, causada pelos desmandos da controladora (777 Partners), ilustra didaticamente o abalo na confiança que um caso errado pode desencadear.
Em linha com isso, PL 2978/23 aumenta as exigências de governança das SAFs – e, assim, reforça ao espírito original da lei da SAF de proteção dos investidores como meio de formação de um sistema sustentável.
Caso aprovado, os Conselhos de Administração e Fiscal da SAF terão obrigatoriamente ao menos um conselheiro independente (art. 5º, §6º); um conjunto amplo de informações deverão ser disponibilizadas no site da SAF (art. 8º, V, VI e VII); e as ações “classe A” serão automaticamente convertidas em ações ordinárias comuns caso doadas, cedidas ou alienadas pelas associações (art. 2º, §3º).
Visto assim, o PL 2978/23 permanece fiel ao espírito da lei da SAF e faz jus ao princípio de “em time que está ganhando não se mexe”.