Migalhas de Peso

É constitucional a proposta de “só preto pode falar”?

O artigo analisa a liberdade de opinião de Tiago Leifert e critica o radicalismo identitário, apontando que todos têm direito de opinar, independente da cor.

5/11/2024

Todos estão acompanhando as discussões geradas após o resultado da Bola de Ouro, no qual Rodri, e não Vini Jr., foi premiado. Muitos apontaram que a escolha teria sido influenciada por racismo. Sem dúvida, Vini Jr. tem sofrido muitos ataques racistas, os quais já resultaram em alentadoras condenações dos criminosos.

O problema não é novo. Ano passado, escrevi o artigo “A Espanha diante de Vini Jr.: Cortéz ou Quixote ?” (O Dia, 26/05/2023), no qual disse que os espanhóis não racistas precisavam se manifestar e agir, sob pena de os racistas espanhóis deixarem em todo o planeta uma imagem negativa de seu povo e de seu país. Em suma, não se pode tolerar o racismo e ele é um problema real que envergonha a  Espanha.

Ocorre que, sem prejuízo disso, é legítimo debater se a votação foi uma reação racista ou se a derrota de Vini decorreu de outros motivos. Ou será que agora temos uma ditadura do pensamento único? Da mesma forma, é legítimo debater qual a melhor reação de qualquer pessoa diante de um episódio público. Ou agora a liberdade de opinião não protege a todos?

Qualquer pessoa tem o direito de opinar sobre os dois temas e, entre elas está Tiago Leifert. Este, por ser jornalista, também é protegido pela liberdade de imprensa. O art. 5º, inciso IX, garante a liberdade de expressão, afirmando que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. O art. 220 aborda especificamente a comunicação social e estabelece que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

A liberdade de opinião e a liberdade de imprensa são direitos essenciais em um Estado Democrático. Inexiste censura prévia ou necessidade de autorização de quem quer que seja para que uma pessoa possa dar sua opinião, ainda mais um jornalista. A liberdade de expressão de Tiago Leifert é a mesma de qualquer outra pessoa. Ele não precisa ser jornalista, nem falar regularmente sobre futebol, para ter direito de expor sua opinião.

Nada obstante, vale dizer que ele é jornalista, formado em Jornalismo e em Psicologia pela Universidade de Miami. Em 2009, assumiu o comando do “Globo Esporte” em São Paulo, onde se destacou por introduzir uma abordagem mais descontraída ao jornalismo esportivo. Tempos depois iniciou vários projetos independentes, incluindo um canal no YouTube sobre futebol e a narração de jogos da Copa do Brasil pelo Amazon Prime Vídeo. Logo, por seu perfil profissional, era esperado que Tiago comentasse a notícia da semana, talvez a do mês.

Aqui temos a incidência de um  terceiro dispositivo da Constituição Federal do Brasil: o art. 5º, XIII, que estabelece o direito à liberdade de exercício profissional. Diz ele que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Recentemente, vimos uma jornalista da Rede Globo tentar cercear o direito de opinião e de livre exercício profissional de Demétrio Magnoli. É a mesma lógica de fundo: alguns acham que podem impedir outra pessoa de falar em razão de alguma condição pessoal, algo que a Constituição não agasalha.

Pois bem, e o que Tiago disse?  Falou que em sua opinião Vini Jr. deveria ter ido ao evento. Segundo o jornalista, o atleta do Real Madrid deveria ter comparecido mesmo sabendo que o vencedor seria o espanhol Rodri. Para ele, teria sido "absurdamente legal" se Vini tivesse chegado "de peito estufado" etc.

A campanha de cancelamento contra Tiago

Apesar de estar protegido por três direitos assegurados pela Constituição, Tiago Leifert passou a ser hostilizado, ofendido e a sofrer  campanhas de cancelamento. Como de costume, hordas de ativistas, artistas e políticos cerraram fileiras para hostilizar o “malvado” da vez.  Postagens nas redes sociais destilaram ódio racial querendo o silêncio de todo e qualquer branco. Foram publicados vários vídeos com críticas. Após um deles, Tiago convidou para uma Live a sua autora, a ativista Sara Zarâ, ocasião na qual ela apontou a fala dele como “desumana e equivocada" e que isso “reforça o racismo”.

Na opinião de Sara, , não seria bom para Vini Jr., que sofre recorrentemente com discriminação, conviver com mais um episódio de racismo, em um ambiente hostil e racista.

Vini Jr., ao ser informado de que não venceria, tinha basicamente duas opções: ir ao evento ou não ir ao evento. Quem está certo? Tiago ou Rosa? O que a cor da pele tem a ver com isso? Para a lei, nada. Para boa parte do movimento negro, tudo.

Eu penso que Tiago e Rosa erraram e é um direito meu pensar diferente de ambos. O que não tenho direito é a, por achar que estou certo, querer calar a boca de um ou outro. Uma opinião. Agora, imagine se alguém dissesse que Sara, por ser mulher, não pode dar opinião em futebol masculino?

Será que as pessoas esqueceram que o art. 5° da Constituição estabelece que a lei é igual para todos.

Quem atrapalha quem

Sara disse ainda que o “argumento” de Tiago “só atrapalha nossa vivência", novamente sem apresentar qualquer fundamentação para isso. É que o mundo do identitarismo radical acha que não precisa de expor suas razões. Para esses novos supremacistas raciais, a fala de uma pessoa preta é sempre correta e quem discordar “é racista”. Aliás, sustentam que “todo branco é racista” e, sendo assim, quem precisa de analisar o mérito de qualquer assunto?

Vini Jr. exerceu sua liberdade, Tiago também. Todos são livres para opinar, ninguém é livre para amordaçar o outro. Tiago, hostilizado, chegou a ter que dizer que não pode  ser acusado de uma coisa que ele não é (racista) só porque discordava de Sara. Acrescentou que “nós estamos do mesmo lado e sempre defendi o Vini Jr."

Anotação importante: não é preciso estar do mesmo lado e/ou defender Vini Jr. para poder opinar. E não é preciso ser preto para poder falar sobre a Bola de Ouro e tudo que o evento envolve.

Uma outra ativista famosa chegou a dizer que “branco não tem que ensinar preto a como lidar com o racismo”. Esse chavão de censura prévia e racista foi repetido por muitos. Essas pessoas não conseguem mais discutir os fatos ou o conteúdo das sugestões, mas tão somente a cor da pessoa que emitiu a opinião. Contudo, e  se alguma pessoa preta disser que também acha que Vini Jr. deveria ter comparecido à solenidade? Aí pode? Isso revela a absurda pretensão: os brancos não poderem  dar sua opinião.

Afinal, há alguma razão moral ou dispositivo legal permite que a Sara diga o que pensa e o Tiago não?

Por fim, Rodri é branco. E se alguém disser que nenhum preto pode opinar sobre o caso já que por ser preto “não tem lugar de fala” em assunto que envolve um branco? Será que desse jeito vão perceber o racismo embutido no pretendido silenciamento de terceiros? E se alguém disser que pretos só devem opinar em assuntos de pretos? Como resolver o caso do Bola de Ouro, no qual há brancos e pretos envolvidos?

O que dizem as normas ?

Enquanto a militância identitária tenta criar novas normas, vale lembrar que, na forma da lei, é errado impedir ou querer impedir alugém de exercer um direito, qualquer que seja a cor da pele do autor ou da vítima. E se o motivo da tentativa de amordaçamento for a cor da pele ou etnia, estamos diante de racismo, na forma da Lei nº 7.716 e do Decreto nº 10.932/2022.

Além de termos em tese o crime de racismo, há outro tipo penal a ser averiguado. Sugerir uma campanha de cancelamento não deixa de ser uma grave ameaça. Isso pode em tese configurar mais um crime:

“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.” (art. 146 do Código Penal)

Logo, no episódio da fala de Tiago e da Live, a única vítima identificável de crime(s) é o próprio Tiago Leifert. Ele está protegido não por um, mas por três direitos assegurados pela Constituição e, mesmo assim, é vítima de não um, mas, em tese, ao menos dois crimes: racismo e constrangimento ilegal.

O episódio revela uma virtual histeria identitária. Foi dito que a fala é “desumana” e “reforça o racismo”. Mas como? Por que é “desumana”? Por que “reforça o racismo”? Não se diz. É o de sempre: qualquer pessoa que discorda dos dogmas e até das sandices identitárias é imediatamente acusado de, conforme o assunto,  ser racista, homofóbico, transfóbico ou misógino(a).

O movimento negro alega querer igualdade, ser contra racismo e a opressão, mas de suas entranhas é que está vindo a busca agressiva e hostil por silenciamento, opressão, e tratamento desigual em razão da cor da pele.

Isso é a busca de um “apartheid de opinião” e de uma vingança aleatória e inconstitucional contra todos os brancos. Alguém em sã consciência pode achar que isso é lícito ou produtivo?

Essa gestação de ódio racial gerou, não faz muito tempo, uma chuva de ataques raciais contra um bebê recém-nascido e sua mãe. Refiro-me ao caso da cantora Iza, uma mulher preta hostilizada por ter tido uma filha branca. Essa recorrência revela a gravidade do problema, que cresce como um câncer graças à  ação dos radicais e da omissão e conivência de outros. 

A visão de Leifert é que Vini Jr. não venceu a Bola de Ouro por outros motivos que nada tinham a ver com racismo. Isso é uma opinião, nada além disso. Porém, quando a  histeria identitária decide que algo “é racismo”, qualquer voz dissonante é tachada de “mais racismo” e de “prejudicar a causa”.

Em suma, para alguns não se pode mais debater um assunto ou discordar. E se a pessoa é branca, então, tem que se calar. Em casos assim, a pessoa mais sábia, sensata e experiente que existir deve ficar em silêncio se for branca, ao passo que qualquer preto, ainda que não tenha qualquer outro predicado, pode se manifestar. Isso é uma insanidade e um caso típico de racismo.

Mas e o "lugar de fala"?

Infelizmente, parece que a militância não leu, ou se leu não entendeu, ou se entendeu não gostou, do que Djamila Ribeiro ensina sobre o tema. Afinal, aplicam o conceito de forma completamente deturpada e contrária ao que Djamila escrevceu.

“Djamila Ribeiro, filósofa e ativista brasileira, desenvolveu  a ideia de “lugar de fala” como um conceito central para entender como as vivências pessoais de diferentes grupos impactam a maneira como as narrativas e conhecimentos são construídos e compartilhados. Segundo ela, o “lugar de fala” não significa que só quem vive uma experiência pode falar sobre ela, mas aponta que as pessoas em posições de opressão têm uma perspectiva específica e uma autoridade legítima sobre temas que afetam diretamente suas vidas. Ou seja, é um conceito para incluir pessoas no diálogo, não para amordaçar ou calar pessoas.

A autora traz o conceito como uma ferramenta para questionar o domínio histórico de grupos privilegiados na produção e circulação de conhecimento, ressaltando a importância de ouvir e valorizar as vozes das pessoas que pertencem a minorias e que historicamente foram silenciadas. Ela argumenta que as experiências de raça, gênero, classe e outras categorias influenciam o modo como as pessoas vivenciam o mundo, e que dar espaço a essas vozes é fundamental para uma sociedade mais justa e representativa. Nada obstante, a autora destaca que o “lugar de fala” não é um impedimento para que outros falem sobre questões sociais, mas sim um convite para que reflitam sobre como suas próprias posições sociais afetam suas visões e discursos.

A própria Djamila, anote-se, experimentou a fúria woke quando se opôs à inaceitavel ideia de "pessoas que menstruam" para se referir às mulheres. Mesmo sendo um ícone da esquerda e da negritude, foi atacada de forma desleal e rude por ter se posicionado defendendo os direitos da mulher. A irracionalidade e patrulhamento dos "woke" não poupam ninguém.  

Conclusão

Por fim, fica a pergunta: No caso do Vini Jr., foi ou não foi racismo?

Não responderei essa pergunta aqui, pois o direito de opinião protege a todos, até aqueles que estejam eventualmente equivocados em seus pensamentos. A pessoa não precisa estar certa para ter o direito de se manifestar nem ter uma “cor certa” para ter voz.

Noutro momento, podemos discutir o caso Vini Jr.  Aqui, estou apontando o racismo praticado contra Tiago Leifert e os absurdos que o identitarismo radical produz. Hoje, no Brasil, o discurso identitário radical defende e promove discurso de ódio, revanchismo, racismo e segregação. Espero que a sociedade não demore a perceber e a repudiar esse absurdo, algo que viola a Constituição Federal e o bom senso.

William Douglas
Professor de Direito Constitucional e escritor.

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