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Litigância predatória: As providências do Poder Judiciário

A garantia do acesso à Justiça é essencial, mas demanda cautela: Advogados devem evitar ações predatórias, mantendo a integridade legal e respeitando o sistema jurídico.

1/11/2024

A garantia constitucional do acesso à justiça, também denominada de princípio da inafastabilidade da jurisdição, está consagrada no art. 5º, inciso XXXV da CF/88, bem como no CPC em seu art. 3º, respectivamente. Logo, o acesso à justiça não é condicionado a nenhuma característica pessoal ou social, sendo, portanto, uma garantia ampla.

E em se tratando de um país com um notório abismo social, o advogado exerce papel fundamental na luta pelos direitos, tais como cidadania, saúde, dignidade da pessoa humana. Todavia, o que tem sido observado, principalmente pelas instituições financeiras, é que muitos advogados têm ajuizado demandas repetitivas e em massa, sem qualquer responsabilidade, sem base legal sólida ou evidências adequadas, utilizando-se de petições genéricas e sem ligação com situações concretas.

Por esse prisma, o princípio constitucional do acesso à justiça não pode ser considerado absoluto, devendo sofrer restrições em situações específicas onde se percebe um abuso de direito, como por exemplo nos casos de demandas predatórias. Deve ser levado em conta o dever de agir com honestidade, integridade e respeito ao sistema legal.

O que tem chamado a atenção é que as demandas são ajuizadas até mesmo sem o consentimento e conhecimento pela parte autora. Diante disso, os magistrados têm observado que as petições versam sempre sobre o mesmo tema, com a única variação da qualificação das partes envolvidas.

Diante desse contexto e para combater esse tipo de prática abusiva, o Poder Judiciário – através do CNJ, ao consultar os tribunais, criou o grupo operacional do CIPJ - Centro de Inteligência do Poder Judiciário e a Diretriz Estratégica 7, sendo inclusive decidido que cada Tribunal, com total autonomia, criaria um centro de inteligência, sendo o mesmo interligado ao CNJ. 

Nesse contexto, os Tribunais criaram os chamados NUMOPEDEs - Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demanda. Como exemplo, em São Paulo, o TJ-SP cumpre as diretrizes traçadas pelo NUMOPEDE, adotando boas práticas para tentar identificar e tentar coibir abusos e fraudes, principalmente na seara das ações contra instituições financeiras.

Atualmente, percebe-se um aumento na atuação de combate dos magistrados em todos os Estados a esse abuso de direito. Em mais um exemplo, por indícios de litigância predatória, a juíza Paula de Goes Brito Pontes, da Vara Única de Murici (AL), extinguiu a ação (0700715-29.2023.8.02.0045), de suposta contratação fraudulenta e oficiou a OAB-AL e MP-AL sobre atuação de advogada, que ajuizou 330 processos com a mesma lide no TJ-AL.

Já no Mato Grosso do Sul, tramita o Resp. 2021665/MS (2022/0262753-6), processo originário 0801887-54.2021.8.12.0029, que tem como tema repercussão geral 1.118 STJ. Nesse caso, a tese jurídica é no sentido de permitir que o juiz, com base no poder geral de cautela, possa exigir que a parte autora apresente documentos atualizados, sob pena de indeferimento da petição inicial. Vale frisar que a procuração apresentada nos autos é de 3 anos anteriores a propositura da ação, o que pode evidenciar o não conhecimento da ação pelo autor.

Outro exemplo ocorreu na 1ª Vara Cível de Araripina e na Vara Única de Ipubi, ambas em Pernambuco, onde foram extintas 3.488 ações judiciais de um único advogado, com o objetivo de impedir a prática da "advocacia predatória". Em Ipubi, foram extintos 1.917 processos e na Comarca de Araripina, 1.571 processos extintos.

Registre-se que, no Mato Grosso, o juiz Alexandre Meinberg Ceroy, da 3ª Vara Cível de Barra do Garças, passou a exigir procurações atualizadas de advogados ao suspeitar que as partes não haviam autorizado profissionais pleitearem ações de indenização. 

No TJMG - Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o CIJMG - Centro de Inteligência da justiça de Minas Gerais atua na frente que busca promover o alinhamento das cortes de justiça, de forma integrada, às políticas nacionais do sistema de precedentes e da gestão eficiente de demandas de massa, além de visar à redução das taxas de congestionamento de processos em tramitação no Poder Judiciário, que influenciam negativamente os indicadores de produtividade e celeridade.

Como se denota, as ações em massa estão abarrotando o Poder Judiciário, que recebe milhares de ações e todas com pedido de justiça gratuita. É importante ressaltar que, ao se beneficiar da gratuidade de justiça, tanto a parte, quanto o advogado, não estarão sujeitos a custas processuais ou ônus sucumbenciais, mesmo que o pedido seja julgado improcedente. Isso diminui o risco financeiro para as partes e seus representantes legais, o que beneficia o ajuizamento de ações em massa e desgovernado. 

Dessa forma, o uso indevido da máquina pública tem gerado uma conta que todos temos de suportar, tendo em vista que o ajuizamento indiscriminado de ações, sem o pagamento da contraprestação devida ao Estado pela prestação de serviços públicos, faz com que o erário sofra prejuízos.

Portanto, é inegável que a litigância predatória compromete severamente a atividade do Poder Judiciário. O elevado volume desses litígios não apenas causa danos significativos aos cofres públicos e prolonga indevidamente a tramitação dos processos, mas também mina a celeridade e a eficiência do sistema de justiça.

Para controlar e reduzir o ajuizamento de ações em massa realizadas sem o conhecimento da parte autora, é necessário, após identificar a suspeita de demanda predatória, aplicar a penalidade prevista para litigância de má-fé e encaminhar a representação à OAB.

Nessa linha, o Estatuto da Advocacia, lei Federal 8.906 de 1994, em seu art. 32, é bem claro ao aplicar a responsabilidade em caso de dolo ou culpa.

Como se vê, a litigância de má-fé caracterizada na relação processual incide sobre a parte ou terceiro interveniente que age de forma temerária, ilegal e em desrespeito aos princípios da probidade e lealdade, causando danos processual à parte contrária.

Não se olvide que o advogado pode ser responsabilizado por lide temerária desde que apurada em ação própria sua coligação para lesar a parte demandada.

Por fim, outro fator que chama atenção é que alguns advogados considerados agressores estão ajuizando ações (notícia crime) em face dos procuradores das instituições bancárias, alegando calúnia e difamação apenas pelo fato de os representantes peticionarem e chamarem a atenção do Judiciário para aplicação de multas e sanções previstas, diante do reiterado ajuizamento de ações de forma temerária, o que é um absurdo.

___________

1 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

2 Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

3 "Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.

Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria".

4 https://www.jusbrasil.com.br/artigos/da-advocacia-predatoria-e-do-abuso-do-direito-de-acao-no-direito-bancario/1811980298

5 https://www.migalhas.com.br/depeso/389610/advocacia-predatoria-e-a-necessidade-de-combate-a-essa-pratica

6 https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/litigancia-predatoria-compromete-garantia-constitucional

7 https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/centro-de-inteligencia-do-tjmg-discute-litigancia-predatoria.htm

Túlio Carvalho Salgado
Coordenador no escritório Rennó e Machado Advogados Associados, especializado em Direito Processual Civil, Direito do Trabalho e Direito Previdenciário.

Eduardo Fiorucci
Superintendente jurídico do Banco BMG, especializado pelo Insper e Fadisp.

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