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O Tribunal de Contas da União e o princípio da unicidade da interrupção prescricional

A não aplicação da unicidade dos marcos interruptivos da prescrição pelo TCU gera deturpação do instituto, além de consequente insegurança jurídica.

30/10/2024

Em 11/10/22, o TCU - Tribunal de Contas da União aprovou a resolução 344/22-TCU, que estabelece normas atinentes à prescrição no âmbito da Corte de Contas, buscando uma sintonia com a jurisprudência do STF sobre a matéria1 (Temas 666, 897 e 899)2.

À época, a grande novidade foi a fixação do prazo quinquenal para a prescrição – considerado um avanço grandioso –, referente às pretensões ressarcitória e punitiva no âmbito do TCU. Enquanto a primeira era imprescritível para a Corte de Contas3, a segunda ocorria no prazo de 10 anos4.

A despeito do grande avanço na aprovação da referida resolução, a Corte de Contas instaurou uma sistemática com mecanismos que flexibilizam demasiadamente a finalidade prescricional. A polêmica reside no § 1º do art. 5º da resolução do TCU, ao prever que a “prescrição pode se interromper mais de uma vez por causas distintas ou por uma mesma causa”. O referido dispositivo permite que a prescrição seja interrompida diversas vezes, sem qualquer limitação.

A ausência de limites é potencializada ao ser conjugada ao inciso II, do mesmo art. 5º, o qual dispõe que a prescrição será interrompida por qualquer ato inequívoco de apuração do fato. O enquadramento de um ato como apto à “apuração do fato” consiste em um conceito subjetivo que será definido em cada caso concreto.

Como consequência, o TCU estabeleceu um regramento que, por via oblíqua, gera um cenário em que o prazo prescricional passa a ser indefinível e potencialmente infinito, em razão da possível incidência ilimitada de marcos interruptivos. No modelo atual, o processo poderá se estender por infindáveis anos, desde que, a cada três anos, se tenha um ato apuratório promovido pela Corte.

Com isso, há uma inegável desvirtuação da finalidade da prescrição, a qual, conforme leciona Anderson Schreiber, consiste em “impedir a eternização de conflitos na vida social, extinguindo posições jurídicas que seus respectivos titulares não façam valer após certo lapso temporal”5

Os subterfúgios previstos pelo TCU acarretam uma afronta à segurança jurídica6, ao passo que, na prática, não se tem critérios objetivos para sequer se delimitar o prazo prescricional em processos perante a Corte. Geram também, com frequência, prejuízo à defesa dos responsáveis, que se veem obrigados a recuperar documentos e rememorar fatos ocorridos há diversos anos. 

Dado o prejuízo causado pela possibilidade de um recomeço reiterado da recontagem do prazo prescricional, a incidência dos múltiplos marcos interruptivos praticados no TCU passou a ser questionada perante o Poder Judiciário.

Em meados de 2023, o STF afastou a incidência dos mencionados dispositivos da resolução do TCU e aplicou o princípio da unicidade da interrupção prescricional nos processos em trâmite na Corte de Contas. Este princípio, oriundo de outras fontes do direito que serão expostas adiante, tem por objetivo delimitar as regras prescricionais ao estabelecer, de forma objetiva, que a prescrição poderá ser interrompida uma única vez. 

Nesse sentido, em julgamento pioneiro e emblemático, a 2° turma entendeu que, ao se admitir “que o prazo prescricional possa ser interrompido por um número indeterminado de vezes, bastando que para isso se verifique a ocorrência de uma das causas previstas no art. 2º da lei 9.873/99, seria o mesmo que, na prática, chancelar a tese da imprescritibilidade das apurações levadas a efeito pelo TCU” 7. Desse modo, a turma julgou, por maioria, a adoção do princípio da unicidade no caso concreto, nos termos do voto vogal do ministro Gilmar Mendes. 

Destaca-se que o conceito da unicidade não é uma novidade trazida para processos na Corte em Contas. Em verdade, este princípio existe há décadas em outras searas jurídicas. Cita-se, a seguir, dois exemplos. 

Nas relações de direito privado, a tese da unicidade é normatizada pelo art. 2028, do CCe consagrada pelo STJ10. Do mesmo modo, o art. 8º11, do decreto 20.910/32 – que regula a prescrição do direito de ação contra as fazendas Federal, Estadual e municipal –, igualmente dispõe de forma expressa sobre a unicidade da interrupção prescricional. Em verdade, o princípio da unicidade é inerente ao regime prescricional. 

Ademais, ressalta-se que não se confunde a limitação de marcos interruptivos com eventual defesa de impunidade: admitindo-se a tese da unicidade dos marcos interruptivos, o TCU pode ter até 10 anos (5 anos + 5 anos), a partir do conhecimento do fato, para julgar um processo, sem considerar eventual fase recursal, o que poderá estender ainda mais este prazo.  

Portanto, a adoção da tese da unicidade dos marcos interruptivos consiste em uma medida que assegura ao TCU tempo razoável para análise e julgamento dos casos. Por outro lado, a manutenção da tese da multiplicidade dos marcos interruptivos possibilita a ilegal perpetuação infindável dos processos, ao criar subterfúgios à regra prescricional e ao afrontar a segurança jurídica e o direito à ampla defesa e ao contraditório dos responsáveis.

No STF, a despeito do citado julgado de relatoria do ministro Gilmar Mendes, tem ocorrido uma divergência de entendimento entre as turmas. A 2° turma, desde 2023, tem adotado firme e reiterado entendimento ratificando a tese da unicidade do marco interruptivo nos processos em trâmite no TCU12.

A 1° turma do STF, por sua vez, tem entendimentos divergentes. Em um primeiro momento, a turma também acolheu a tese da unicidade do marco interruptivo, conforme retratado nos julgamentos dos MS 34.705 AgR13 e MS 38.672 AgR14, ambos de relatoria do ministro Cristiano Zanin15, julgados à unanimidade pelo colegiado. Entretanto, em julgamento ocorrido em 27/05/24, por maioria mínima (3x2), prevaleceu a tese suscitada pelo ministro Alexandre de Moraes, em que se defende a legalidade da multiplicidade de marcos interruptivos16.

Assim, considerando esta divergência entre as turmas, é essencial uma posição do plenário do STF para unificar a tese.

À luz do exposto, entende-se que o princípio da unicidade consiste em uma premissa indispensável para se cumprir efetivamente os preceitos da prescrição nos processos em trâmite na Corte de Contas, de modo a garantir a segurança jurídica e a assegurar o efetivo direito ao contraditório aos cidadãos. 

Ademais, considerando o atual entendimento divergente sobre a matéria, é primordial uma breve pacificação da tese pelo STF e pelo TCU. No cenário atual, além de não serem assegurados direitos fundamentais dos cidadãos, tem-se uma reiterada anulação de acórdãos da Corte de Contas pelo Poder Judiciário, o que acarreta a infrutífera utilização da máquina administrativa e submete a Fazenda Pública ao risco de eventual condenação em sucumbência. Em outras palavras, a presente conjuntura ocasiona, ao cabo, desperdício de recursos públicos.

___________

1 Vide: TCU aprova normativo sobre a prescrição de seus processos. Acesso em 21.09.2024.

2 A pesquisa jurisprudencial utilizada como base para este artigo foi atualizada até 09.10.2024.

3 “As ações de ressarcimento movidas pelo Estado contra os agentes causadores de danos ao erário são imprescritíveis” (Súmula nº 282/TCU).

4 TCU, Acórdão nº 1441/2016, Rel. Min. Benjamin Zymler, Plenário, julgado em 08.06.2016.

5 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 285.

6 “O fundamento básico para a limitação temporal do exercício da competência punitiva é o princípio da segurança jurídica (...)” (FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 266).

7 STF, MS 37.941 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 13.04.2023, DJe 01.06.2023.

8 Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á: (...).

9 Consigna-se que o TCU, antes da edição da Resolução nº 344/2022, utilizava o citado art. 202 para fundamentar o seu entendimento de que a interrupção da prescrição da pretensão punitiva ocorria de forma única (TCU, Acórdão nº 1885/2022, Rel. Min. Bruno Dantas, Plenário, julgado em 17.08.2022).

10 “(...) eternização do direito de ação mediante constantes interrupções da prescrição, evitando, desse modo, a perpetuidade da incerteza e da insegurança das relações jurídicas.” (STJ, REsp nº 1.786.266/DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 11.10.2022, publicado em 17.10.2022).

11 Art. 8º A prescrição somente poderá ser interrompida uma vez.

12 STF, MS 37.751 AgR, Rel. Min. Nunes Marques, Segunda Turma, j. 09.05.2023, DJe 29.06.2023; STF, MS 37.940 AgR, Relator p/ Acórdão Min. Nunes Marques, Segunda Turma, j. 09.05.2023, DJe 30.06.2023; STF, Rcl 68.131 MC-Ref, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 18.08.2024, DJe 03.09.2024; STF, MS 37.316 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 02.09.2024, DJe 25.09.2024; e STF, MS 38.400 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 23.09.2024, DJe 09.10.2024.

13 STF, MS 34.705 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, Primeira Turma, j. 29.04.2024, DJe 02.05.2024.

14 STF, MS 38.672 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, Primeira Turma, j. 29.04.2024, DJe 03.05.2024.

15 “Não se pode admitir que o prazo prescricional seja interrompido por número indeterminado de vezes, sob pena de se chancelar, na prática, indevida perpetuação da imprescritibilidade” (STF, MS 34.705 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, Primeira Turma, j. 29.04.2024, DJe 02.05.2024).

16 STF, MS 38.735 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, Relator p/ Acórdão: Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. 27.05.2024, DJe 03.06.2024.

Lucas Nazif Rasul
Advogado - Silveira Ribeiro Advogados. Especialista em tribunais de contas

Yuorgnan Klismann
Advogado - Silveira Ribeiro Advogados. Especialista em tribunais de contas

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