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Alexandre de Moraes ressuscita Orlando Geisel: ‘liberdade com responsabilidade’

Decisões judiciais que utilizam a expressão "liberdade com responsabilidade" podem gerar um efeito intimidatório sobre a liberdade de expressão.

22/10/2024

Matar alguém pode envolver estratagemas variados, mas implica no fato físico do óbito. Matar as ideias ou impedir a sua livre circulação não é assim, não acontece necessariamente na vida real: acontece em nossas mentes.

Por isso é importante um cuidado maior e especial com as ideias, com a circulação das ideias.

Estudiosos mundo afora, escrevendo na língua franca de nossos tempos, o inglês, referem estratagemas de matança da livre circulação de ideias, como “sham litigation”, “SLAPP” (‘Strategic lawsuit against public participation’) ou o gênero dos “chilling effects”1 (‘efeito de congelamento’ da liberdade de expressão).

O STF conhece o ‘chilling effect’ e entende por sua nocividade jurídica no mercado de ideias, como se vê, em votos de diversos de seus ministros, em casos sobre os limites da liberdade de expressão (v.g. ADPF n. 187, ADI n. 4.815, ADI n. 5.537; ADPF n. 572; ADI n. 5.852).

Todos estes mecanismos desestimulam as pessoas de falar, de compartilhar pensamentos, de exercer o direito de crítica, ao inculcar receio sobre os custos e os riscos do exercício da livre expressão do pensamento. Isso é grave, pois a sociedade democrática só pode operar com as ideias circulando livremente, os cidadãos não podem ter medo de se manifestar. Aliás, mais importante! Precisam ter gosto, apreço e interesse pela livre circulação de ideias.

Se o Estado, ou agentes na sociedade civil, atuam para instilar receio, dúvida, ou até medo, estarão a violar a liberdade de pensamento e de expressão. Estarão a atacar a democracia e o seu efetivo funcionamento.

Por isso, quando nos deparamos com o emprego da expressão "liberdade com responsabilidade", no campo da livre expressão do pensamento, devemos nos preocupar. Trata-se de expressão tautológica, que só é empregada para desestimular o exercício de um direito.

É o caso, por exemplo, da Ordem do Dia do Exército, de 31 de março de 19702. Vivíamos uma ditadura e o Ministro do Exército, que participara da aprovação do A.I.-5 (a imposição oficializada da ditadura) disse para a sociedade:

“Neste Brasil renovado, somos e permaneceremos fiéis à nossa vocação de povo cristão e amante da democracia. Não a democracia romântica, tão apregoada pelos ‘burgueses progressistas’ e dos ‘intelectuais avançados’, mas a democracia representativa que se funda no amor à liberdade com responsabilidade, alicerçada nos valôres espirituais e morais que fazem do homem a suprema finalidade de tôdas as coisas.”

Esta formulação do General estava refletida na velha Lei de Imprensa, de 1967: a liberdade de expressão está garantida, salvo se o Estado escolher suprimi-la. Ou seja: não há liberdade. Ora, o General desejava inculcar o medo: exerçam sua liberdade, mas preparem-se para responder por isso! Na dúvida? Cala a boca!

Assim como o Ministro do Exército da ditadura, o Min. Alexandre de Moraes, do STF, tem usado a expressão da ditadura (“liberdade com responsabilidade"), aplicada à liberdade de imprensa e de expressão (v.g. A.D.I. n. 6.281; RE 1.075.412/PE (Tema 995 RG); Inq. 4.923, 5º Ag. Reg.).

A fórmula “liberdade com responsabilidade”, evocada tantas vezes pelo Min. Alexandre de Moraes é a mesma fórmula, de raiz autoritária e estatizante, do General Orlando Geisel. Agentes do Estado hoje dizem aos cidadãos: tenham responsabilidade, quando exercerem sua liberdade. Que querem dizer? Querem instilar o medo, desestimular a atividade cidadã, ou seja: na dúvida, cale a boca!

Ao repetir a fórmula ambígua da ditadura, a qual a Constituição de 1.988 deixou para trás, decisões judiciais que falam de ‘liberdade com responsabilidade’, em matéria de liberdade de expressão, causam o que a doutrina internacional chama de ‘chilling effect’, um efeito de pavor, um congelamento da sociedade, da imprensa e da liberdade de expressão.

Não pode ser assim. Não é assim que funciona o regime democrático, não é o que diz a Constituição. Ao contrário, como consagrado nos votos do próprio S.T.F., na decisão da A.D.P.F. n. 130, a liberdade de expressão tem um status constitucional especial tal que assegura seu exercício com franca expansão. O Supremo enfrentou delicados conflitos aparentes entre liberdade de expressão e proteção à infância, o ódio religioso, a intimidade das pessoas, a paridade de armas no processo eleitoral, mas decidiu pela ampla liberdade de expressão, em termos claros e harmônicos, que propiciam à sociedade civil e ao estado brasileiros conviverem, em ambiente de livre expressão de pensamentos e de manifestação de opiniões.

E não adiantam as torções intelectuais, que manipulam truísmos para destruir liberdades fundamentais: a liberdade de expressão é para ser exercida sob o manto protetor da Constituição, para a livre circulação de ideias; os casos de abuso são apurados, caso a caso, e deverão ser julgados com prioridade para liberdade de fazer circular ideias (boas ou más). A fórmula democrática é: liberdade com a Constituição, ou seja, liberdade de expressão com primazia sobre outros direitos e liberdades individuais, como decidiu o S.T.F. O intérprete da Constituição não pode esquecer que lida com ideias, com pensamentos, cujo fluxo livre é crucial para o desenvolvimento humano, em relação aos quais o ‘chilling effect’ da expressão do Gen. Geisel (repetida pelo Min. Alexandre de Moraes) é nefasto.

Portanto, estejamos atentos: quando empregarem a expressão "liberdade com responsabilidade" em matéria de liberdade de expressão, saibamos: trata-se de ataque à liberdade de expressão.

________

1 “De um posto de vista jurídico, efeito de congelamento pode ser definido como o efeito negativo que qualquer ação estatal tem sobre pessoas naturais e/ou jurídicas e que resulte em dissuadi-las preventivamente de exercer seus direitos legais ou de cumprir suas obrigações profissionais, pelo medo de se tornarem sujeitas a procedimentos estatais formais que possam levar a sanções ou a consequências informais como ameaças, ataques, ou campanhas difamatórias” (Nossa tradução livre do original em “The Concept of Chilling Effect Its Untapped Potential to Better Protect Democracy, The Rule of Law, And Fundamental Rights in the EU”, Laurent Pech, Projeto Open Society Foundations, do European Policy Institute, p. 4). Confira também o estudo “Weaponizing the Law: Attacks on Media Freedom”, da Thomson Reuters Foundation sobre o tema.

2 “Ordem do Dia baixada pelo Exmo. Sr. Ministro do Exército, General Orlando Geisel, pela passagem do sexto aniversário da revolução de 31 de março de 1964”, transcrita no Livro I dos Anais do Senado, Ano de 1970, p. 148, publicado pela Subsecretaria de Anais do Senado Federal, da Secretaria Especial de Editoração e Publicações, disponível em https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/Anais_Republica/1970/1970%20Livro%201.pdf , acesso em 11/10/2024.

Walter Vieira Ceneviva
Advogado. Foi membro do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional.

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