Não há qualquer novidade em afirmar a crescente complexidade do mercado de consumo - atualmente marcado pela utilização de diversos recursos tecnológicos, aprofundamento do conhecimento em áreas específicas e aplicação intensa de conhecimentos associados às neurociências (e neurotecnologias).
Os efeitos são muitos e não cabem neste modesto texto. Podemos observar, apenas por exemplo, o fenômeno da especialização no setor de serviços, de modo que ir ao médico hoje pode significar um sem número de possibilidades relacionadas às partes do corpo humano.
Uma questão a se levantar, contudo, é: Até que ponto o consumidor está acompanhando o encadeamento desta complexidade, com a consequente asseguração dos seus direitos básicos?
É possível pensar o consumidor como uma entidade abstrata e mais ou menos passiva, dependente da atuação das instituições para que os seus direitos sejam atendidos.
Sem prejuízo, também é possível conceber o consumidor como um sujeito ativo, tomador de decisões cotidianas em relação ao mercado, muitas delas relacionadas aos preços e qualidades dos produtos fornecidos.
Paralelamente, é reconhecida a sua vulnerabilidade (art. 4º, inc. I do CDC), que está fundamentalmente atrelada à complexidade citada e que muitas vezes afeta suas mais relevantes decisões de consumo.
O certo é que, seja qual for o ângulo que é visto, deve-lhe ser assegurado o direito à informação, à transparência e à boa-fé (art. 6º, incisos III e IV do CDC).
Mas o que é verdadeiramente relevante informar? Sobre o que o fornecedor deve ser transparente?
O próprio CDC já é bastante elucidativo e existem alguns caminhos regulatórios que respondem razoavelmente a estas questões. Basta lembrar dos famigerados cigarros - rotulados com imagens chocantes das possíveis doenças relacionadas ao seu consumo.
Acontece que estas questões são persistentes e não conseguimos saciá-las tão facilmente. Em vários casos, vulnerável diante da complexidade e, portanto, limitado no acesso à informações relevantes, o consumidor pode estar abrindo mão do pleno exercício de direitos vinculados à sua segurança, saúde, privacidade, etc.
Basta imaginar as situações em que o consumidor sequer associa certos atos do cotidiano às práticas de mercado. É o que sucede, v.g., com relação ao uso das redes sociais, com políticas de privacidade e termos de uso que, honestamente, quase nenhum cidadão se dedica sequer a uma leitura rápida (quiçá pensar em direitos, etc.).
Note-se que apelo pode estar tão entranhado no senso comum (afinal, “é só uma rede social”) que a pessoa simplesmente adere ao que está posto e não observa o que está cedendo em troca.
Esta postura deixa lacunas para opiniões (e influências) que tanto santificam quanto demonizam certas práticas, quando o que pode ser mais eficiente é o melhor entendimento dos riscos em relação à integridade biológica, psíquica, social e espiritual dos envolvidos – apurando-se as consequências efetivas à luz da legislação consumerista – e dos também potenciais riscos ao próprio mercado.
Neste sentido, cabe mais um exercício para fortalecer o exemplo: está claro e culturalmente exposto no mercado de consumo o valor da privacidade?
Observe-se que, a compreensão do valor que está em jogo pode influenciar todo o processo de consumo e facilitar, em caso de riscos de danos, tanto a autocontenção do próprio consumidor quanto a atuação das instituições que dão suporte aos seus direitos básicos.
Por outro lado, se não há entendimento acerca do valor da privacidade, a apresentação da política mais bem redigida de todos os tempos não garante uma decisão consciente, tampouco a proteção efetiva de direitos.
De forma semelhante ocorre com a liberdade de expressão e a boa-fé. Não entendendo o que está em jogo, um usuário pode se valer dos recursos das plataformas virtuais tanto para cercear manifestações legítimas quanto para promover notícias falsas, destruir reputações, etc.
Do modo contrário, consciente da relevância social da liberdade de expressão e da boa-fé, pode apresentar manifestações que não violem políticas e leis, ou mesmo que promovam os valores em si e o consequente aprimoramento dos debates públicos e das interações ocorridas em perspectiva democrática.
Os valores, portanto, podem ser vistos como a base comum que viabiliza o equilíbrio possível no mercado (art. 4º, caput e inc. III) e a comunicação justa entre os agentes diante da crescente complexidade. Em termos de direto à informação, eles podem minimamente equalizar as assimetrias informacionais tão comuns no mercado.
Não por acaso o CDC também foi farto em relação à relevância da cultura de consumo e educação (Ex. art. 4º, incisos. IV e VIII e art. 6º, inc. I).
Curiosamente, parte dos agentes de fornecimento ainda entende esta dimensão cultural- educacional como mais uma firula, burocracia sem implicações reais ou mesmo como intervenção indevida nas suas atividades.
Todavia, este quadro visa a integridade de todos os agentes e a harmonia entre todos participantes do mercado - e não apenas do consumidor. Essencialmente, com as práticas mais adequadas, é o próprio mercado que sai vitorioso.
Daí porque a aplicação adequada de rotulagens, critérios para identificação de perfis de consumidores, políticas que envolvam aspectos educacionais relevantes e outras práticas devem prevalecer em detrimento da obscuridade e da deslealdade informacional.
Como último exemplo, anotem-se as graves consequências socioeconômicas com o funcionamento desregulado das apostas online (“bets”) e a manifesta ausência de uma base valorativa e cultural sólida que possibilite seu funcionamento adequado.
Os números divulgados pelo Banco Central foram, em certa medida, chocantes. Somente em agosto de 2024, os usuários do Bolsa Família gastaram mais de 3 bilhões em bets via Pix.
Neste sentido, para quem interessar, vale citar a Portaria SPA/MF 1.231, DE 31 DE JULHO DE 2024 do Ministério da Fazenda, a qual estabelece várias diretrizes para o jogo responsável – inclusive quanto a: a) colaboração com campanhas educativas do setor destinadas à sociedade em geral e aos grupos em risco de dependência e de transtornos do jogo patológico; e b) realização de ações e de campanhas educativas próprias com seu público consumidor em potencial (art. 3º, inc. II, “a” e “b”).
Tudo isso a ilustrar que a melhor compreensão dos valores em jogo no mercado de consumo possibilita a tomada de decisões mais conscientes e a prosperidade dos seus agentes,enquanto o desequilíbrio informacional e educacional acerca destes mesmo valores desnivela os fornecedores entre si e, certamente, estes e os consumidores.
Até que ponto o entendimento acerca dos valores orienta efetivamente as decisões dos diversos agentes no complexo mercado de consumo? Fica a reflexão.