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A responsabilidade parental pela prática do sharenting no ordenamento jurídico brasileiro

A viabilidade jurídica para a responsabilização parental pela exposição excessiva da criança e do adolescente nas redes sociais.

16/10/2024

A chegada da era digital, indubitavelmente, transformou as interações humanas em seu seio com o advento dos avanços tecnológicos surgidos entre o final do século XX e início do século XXI. Assim, diante do progresso tecnológico em larga escala e a maior conectividade entre as pessoas insurge a necessidade da proteção das relações dos usuários dentro do espaço virtual.

Essa facilidade de acesso, frequentemente, ocasiona a violação de direitos da personalidade seja pela lesão à imagem, privacidade ou honra da pessoa humana, especialmente no âmbito das redes sociais. Para uma geração que já nasceu conectada e habituada com os meios digitais é intangível imaginar uma vida fora das redes e com isso o público infantojuvenil carece da percepção de que a sua privacidade está se esvaindo. Entretanto, essa superexposição possibilita a extração de dados sensíveis concernente à criança e ao adolescente como a sua rotina diária, seu círculo de influência, suas predileções entre outros hábitos.

Apesar disso, na maioria das vezes, não há a intenção por parte do pai ou da mãe de expor seus filhos e respectivos dados. No entanto, muitas vezes os responsáveis legais não têm conhecimento das consequências que o seu comportamento online pode causar aos menores ao longo do tempo1.

O sharenting consiste na prática dos pais e mães regularmente utilizarem as redes sociais para compartilhar informações detalhadas sobre seus filhos. Esse hábito também pode ser observado quando os responsáveis gerenciam as redes sociais da prole, ou seja, alimentando-as com informações da criança ou do adolescente.

Por conseguinte, o fenômeno proporciona um rastro digital que permanece com o usuário durante toda a sua vida, ou seja, as postagens realizadas pelos genitores ou responsáveis, acompanharão a criança por toda a infância, adolescência e sucessivamente nas demais fases da vida2. Nesse caminhar, uma postagem despretensiosa poderá impactar e causar constrangimentos para a pessoa no futuro em decorrência de uma escolha de exposição do passado.

Nota-se que, como regra, a conduta dos pais de compartilhar intimidades dos filhos nas redes sociais é realizada de boa-fé, ou seja, ocorre sob o legítimo interesse desses de narrar a sua vida, em que os filhos são elementos centrais. No entanto, não se pode olvidar que o comportamento camuflado de boa prática de parentalidade possui outro ângulo, em que os pais ou responsáveis utilizam a imagem dos filhos para a obtenção de benefícios.

O exposto acima, não significa dizer que deve haver uma total e absoluta vedação proibitiva de compartilhamento por parte dos pais ou responsáveis em relação às informações dos filhos3. Essa afirmação é sustentada por dois pilares: A liberdade de expressão dos pais e o exercício da parentalidade. Primeiramente, porque a liberdade de expressão é um direito autônomo dos pais e pode envolver a manifestação de momentos com os filhos, havendo limites, como será abordado em tópico específico. Em segundo plano, porque deriva da autoridade parental o direito-dever de zelo com os filhos, inclusive na vida digital, visando o seu melhor interesse.

O exibicionismo proporcionado pelas redes sociais é a ferramenta utilizada para a autopromoção de influenciadores digitais, já que as redes sociais têm a capacidade de transmitir o conteúdo para milhares de seguidores de forma instantânea. Nesse compasso, os influenciadores são pessoas que se tornam famosas devido às atividades publicadas na Internet. Na maioria dos casos, os perfis dos influenciadores digitais monetizam as suas aparições para a divulgação de serviços e produtos.

O cerne da questão reside justamente quando os pais transformam as crianças em pequenas celebridades, dificultando o possível exercício do direito do esquecimento4. Assim, o rastro digital de um influenciador mirim pode ser traçado ainda nos primeiros meses de vida. Conforme elucidado, a exclusão de um dado inserido em plataformas digitais não garante obrigatoriamente o fim de sua circulação na rede, vez que as informações estão eternizadas5.

A esse respeito, o assunto vigorou como pauta de discussão na IX Jornada de Direito Civil do CJF através do Enunciado 691, de seguinte teor “A possibilidade de divulgação de dados e imagens de crianças e adolescentes na Internet deve atender ao seu melhor interesse e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição”.

Nesse caminhar, uma das consequências do sharenting é justamente a colisão entre direitos dos filhos e dos pais. Assim, cabe analisar a possibilidade de responsabilizar civilmente os genitores por eventuais danos causados aos direitos da personalidade da prole.

Em sentido jurídico, a responsabilidade civil está atrelada à noção de desvio de conduta, ou seja, pressupõe a ideia de violação de um dever jurídico que acarreta dano a outrem. Dessa forma, insurge da conduta danosa um dever jurídico de reparação do dano e por consequência uma obrigação secundária de indenizar o prejuízo6.

A doutrina é unânime no entendimento de que à luz do princípio da responsabilidade civil, a vítima de uma ofensa, violadora de direitos ou interesses, receberá por parte do ofensor uma reparação7. Portanto, extrai-se que o elemento nuclear da responsabilidade civil é a conduta violadora de um dever jurídico que ocasiona o dano a outrem, conforme preceituado no art. 186 do CC.

Na particularidade do fenômeno ora abordado, o elemento de maior relevância para o debate é o ato ilícito. Compreende-se o ato ilícito como todo o ato praticado por terceiro que tenha reflexões no patrimônio da vítima ou em seu aspecto intersubjetivo como ser moral8.

Nesse compasso, analisando o art. 187 do CC observa-se a previsão da responsabilidade civil em decorrência do abuso do poder. Explica-se, quando a conduta contiver violação funcional ao direito em excesso manifesto. Em outros dizeres, a configuração do abuso de poder se respalda na prática de um ato ilícito que não depende da comprovação de culpa. Em verdade, basta que a conduta tenha extrapolado a boa-fé, bons costumes e os limites econômico ou social imposto, conforme a redação do referido dispositivo.

Nota-se, ainda, uma violação ao limite social, vez que os pais são detentores de um poder-dever de guiarem os filhos em matérias relacionadas à educação e criação. Apesar disso, esses são os divulgadores das intimidades e individualidades da própria prole. Portanto, a exposição infantil nas redes sociais caminha em via contrária ao bom exercício da autoridade parental, que visa em última instância o melhor interesse da criança e do adolescente. A título exemplificativo da violação social, é o caso de postagens compartilhadas pelos genitores de cunho abusivo ou constrangimento9.

De igual raciocínio, há o abuso da função econômica, como no caso dos influenciadores digitais, que exploram a imagem da criança ou do adolescente visando extrair uma vantagem própria. Essa violação é nítida quando a narrativa dos perfis passa a ser elaborada em cima da imagem da criança ou do adolescente, sem o seu consentimento, objetivando o engajamento nas redes sociais ou aplicativos. Ademais, o abuso da função econômica concerne a conduta intencionalmente lesiva frente à terceiros ou a exploração abusiva10.

Importante esclarecer que a exposição dos filhos pelos pais nas redes sociais pode não ser reprovável do ponto de vista moral, já que na maioria das vezes aparentam ser momentos ingênuos ou descontraídos da criança e do adolescente. Entretanto, a captura eternizada na Internet tem o condão de tornar-se um importuno futuro, caso a postagem viole a imagem do infante.

Diante do exposto, infere-se que que há a violação aos direitos da personalidade dos filhos quando expostos excessiva e reiteradamente pelos pais ou responsáveis legais, ou seja, caracterizando uma conduta danosa surge a necessidade de adoção de medidas para a sua coibição. Dentre as medidas estão a exclusão do conteúdo vinculado, a restrição do alcance da publicação e até mesmo o uso de ferramenta de edição de imagem capaz de borrar a imagem da criança ou adolescente.

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1 EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, p. 256-273, 2017.

2 EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017.

3 EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017.

4 GODINHO, Adriano Marteleto et al. Autoridade Parental: Dilemas e Desafios Contemporâneos. Editora Foco, 2021. p. 356.

5 TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor. O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotá. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 341.

6 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559770823. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559770823/. Acesso em: 20 maio 2023.

7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559644933. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559644933/. Acesso em: 20 maio 2023.

8 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Dano Moral. 8. ed. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2016. E-book. ISBN 9788530972295. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530972295/. Acesso em: 20 maio 2023.

9 BOLESINA, Iuri; FACCIN, Talita de Moura A responsabilidade civil por sharenting. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 27, p. 208–229, 2021. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/285. Acesso em: 1 maio 2023.

10 BOLESINA, Iuri; FACCIN, Talita de Moura A responsabilidade civil por sharenting. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 27, p. 208–229, 2021. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/285. Acesso em: 1 maio 2023.

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BOLESINA, Iuri; FACCIN, Talita de Moura A responsabilidade civil por sharenting. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 27, p. 208–229, 2021. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/285. Acesso em: 1 maio 2023.

EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017.

FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559770823. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559770823/. Acesso em: 20 maio 2023.

GODINHO, Adriano Marteleto et al. Autoridade Parental: Dilemas e Desafios Contemporâneos. Editora Foco, 2021.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Dano Moral. 8. ed. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2016. E-book. ISBN 9788530972295. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530972295/. Acesso em: 20 maio 2023

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559644933. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559644933/. Acesso em: 20 maio 2023

TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor. O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotá. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 341.

Júlia de Andrade Marado
Advogada no escritório Tavares e Chacur de Miranda Advogados, Especialista em Direito dos Contratos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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