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Ordem de lançamento do IPTU. Análise do acórdão proferido no Resp 11.10.551 e da súmula 399 do STJ

A antiga jurisprudência do STJ permitia aos municípios eleger o sujeito passivo do IPTU entre o proprietário, titular do domínio útil ou possuidor, simplificando a arrecadação.

15/10/2024

A antiga jurisprudência do STJ, inclusive sumulada dispunha que o poder público municipal pode eleger o sujeito passivo do IPTU no ato do lançamento, visando facilitar o procedimento da arrecadação tributária. Esse posicionamento é ainda adotado por vários juízos de primeira instância, donde a pertinência da abordagem dessa matéria. Vejamos.

Interpretando isoladamente o art. 34 do CTN o STJ decidiu que o município tem a faculdade de eleger o sujeito passivo do IPTU dentre as pessoas aí nominadas: proprietário, titular do domínio útil, ou o possuidor a qualquer título.

Essa decisão foi proferida sob a sistemática de recurso repetitivo (art. 543 do CPC e Resolução 08/08 do STJ), dando origem à edição da Súmula 399.

Para melhor exame da matéria transcrevemos a emenda do Acórdão, bem como o teor da Súmula 399:

“TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. IPTU. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. LEGITIMIDADE PASSIVA DO POSSUIDOR (PROMITENTE COMPRADOR) E DO PROPRIETÁRIO (PROMITENTE VENDEDOR). 1. Segundo o art. 34 do CTN, consideram-se contribuintes do IPTU o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título. 2. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que tanto o promitente comprador (possuidor a qualquer título) do imóvel quanto seu proprietário/promitente vendedor (aquele que tem a propriedade registrada no Registro de Imóveis) são contribuintes responsáveis pelo pagamento do IPTU. Precedentes: RESP n.º 979.970/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 18.6.2008; AgRg no REsp 1022614/ SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJ de 17.4.2008; REsp 712.998/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ 8.2.2008 ; REsp 759.279/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ de 11.9.2007; REsp 868.826/RJ, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ 1º.8.2007; REsp 793073/RS, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ 20.2.2006. 3. "Ao legislador municipal cabe eleger o sujeito passivo do tributo, contemplando qualquer das situações previstas no CTN. Definindo a lei como contribuinte o proprietário, o titular do domínio útil, ou o possuidor a qualquer título, pode a autoridade administrativa optar por um ou por outro visando a facilitar o procedimento de arrecadação" (REsp 475.078/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 27.9.2004). 4. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/08.” (Resp 1.111.202 / SP, Rel. Ministro Mauro Campbell, Primeira Seção, julgado em 10-06-2009, DJe 18-06-2009).

Súmula 399 STJ: “Cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do IPTU.”

Entretanto, no nosso entendimento, a autoridade administrativa competente não pode escolher aleatoriamente o sujeito passivo do IPTU para efetivar o lançamento tributário. Isso só seria possível se houvesse responsabilidade solidária entre o proprietário, o titular do domínio útil ou o possuidor, que não existe, conforme adiante veremos.

Primeiramente, é importante lembrar que o lançamento tributário é ato administrativo vinculado (parágrafo único do art. 142 do CTN), o que afasta a discricionariedade da autoridade administrativa competente para escolher a pessoa do contribuinte.

Em segundo lugar convém afastar, desde logo, o posicionamento de alguns autores no sentido de que a tributação do titular de domínio útil  e do possuidor a qualquer título como prescreve o art. 34 do CTN seria inconstitucional, porque a CF refere-se à “propriedade predial e territorial urbana”.

Ora, não se pode perder de vista que quando a CF se refere à “propriedade predial e territorial urbana” para deferir a competência impositiva do IPTU aos municípios (art. 156, I) não está se referindo à propriedade em seu sentido estritamente jurídico, ou seja, àquele que têm o título de transferência da propriedade registrado em seu nome (art. 1.245 do CC).

Pelo contrário, a palavra “propriedade” prevista no texto constitucional foi empregada em sua acepção comum, para abarcar prédios, fazendas, terras, lotes etc. com total abstração do aspecto jurídico da propriedade.

Em várias das passagens, a CF se refere à propriedade em seu aspecto comum. Quando a CF/88 se refere à garantia da propriedade (art. 5º, XXII), ao prescrever a função social de propriedade (art. 5º, XXIII), ao vedar a penhora de pequena propriedade rural (art. 5º, XXVI) etc., certamente, não deixou de dar proteção à enfiteuse e à posse. E quando a CF/88 prescreve que a propriedade deve cumprir a função social (arts. 182 e 186) não dispensou o titular do domínio útil (enfiteuse) ou o posseiro do dever de observar a exigência constitucional.

Portanto, o sujeito passivo não é apenas quem tem a escritura aquisitiva registrada no Registro de Imóveis competente. Se assim fosse esse proprietário seria o contribuinte do IPTU mesmo após a sua morte, por força das sucessivas transmissões decorrentes das cessões de direitos e obrigações do compromisso de compra e venda. Qualquer das pessoas referidas no art. 34 do CTN pode, em tese,  ser contribuinte do IPTU.

E terceiro lugar, o art. 34 do CTN não pode ser interpretado isoladamente como fez o Acórdão sob exame.

O aspecto subjetivo passivo do IPTU é figura dependente do aspecto material do fato gerador do IPTU. Sem a ocorrência do fato gerador (hipótese legal de incidência tributária) não haverá o aspecto subjetivo ativo/passivo; não haverá o aspecto quantitativo (base de cálculo é alíquota); não haverá o aspecto espacial (onde o fato gerador ocorreu); nem haverá o aspecto temporal (quando o fato gerador ocorreu) que define a legislação aplicável ao caso concreto.

Portanto, o mais importante é o aspecto material, objetivo ou nuclear, conhecido pela doutrina simplesmente  como fato gerador, isto é, a descrição genérica e abstrata da lei definindo a hipótese em que é devido o tributo. Acontecendo no mundo da realidade aquela situação genérica e abstrata descrita na lei surge, ipso facto, a obrigação tributária (§ 1º, do art. 113 do CTN), objeto de lançamento para constituir o crédito tributário (art. 142 do CTN).

Esse aspecto material está definido no art. 32 do CTN:

“Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.”

E aqui é importante afastar a doutrina que sustenta a tese de que o IPTU grava a propriedade. Se assim fosse, um imóvel sem dono deveria estar suportando o encargo financeiro do  IPTU.

Ainda que se diga que o IPTU é um imposto de natureza real, a verdade é que a obrigação de pagar o imposto é sempre de natureza pessoal.

Daí porque o IPTU grava a disponibilidade econômica do imóvel. Aquele que usufrui o imóvel retirando dele as suas utilidades será o contribuinte do IPTU que poderá ser o proprietário, o titular do domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título, conforme a hipótese. Nesse sentido é a jurisprudência do STJ que, nesse particular, acolheu a nossa doutrina (Resp 1740451).

Não é por outra razão que o STF editou a Súmula 583: “Promitente comprador de imóvel residencial transcrito em nome de autarquia é contribuinte do Imposto Predial e Territorial Urbano”.

Tributar quem não detém a disponibilidade econômica do imóvel ofenderia o princípio constitucional de capacidade contributiva, (§ 1º, do art. 145 da CF), pois o contribuinte teria que desfazer de outro patrimônio seu para pagar o IPTU e assim incidir, igualmente, na afronta ao princípio constitucional que veda o efeito confiscatório do tributo (art. 150, IV da CF).

Repita-se, somente quem detém a disponibilidade econômica do imóvel pode ser eleito como contribuinte do IPTU. O art. 34 do CTN há de ser interpretado em harmonia com o art. 32 do CTN que define o fato gerador do IPTU.

Em quarto lugar, eleger como contribuinte qualquer uma das pessoas referidas no art. 34, como entendia  o STJ requer a presença de solidariedade entre eles, quando o poder público poderá efetuar o lançamento contra todos, ou contra um deles.

E no IPTU não há solidariedade, senão no caso de co-propriedade. Quando duas ou mais pessoas são proprietários do mesmo imóvel, caracteriza-se a solidariedade na forma do inciso I, do art. 124 do CTN, ou seja, “pessoas que tenham interesse comum na situação que constituía o fato gerador da obrigação principal”. Neste caso, o lançamento poderá ser feito a um e a outro ou contra todos, à discrição do poder público.

A outra hipótese de solidariedade é a prevista no inciso II, do art. 124 do CTN, que decorre da expressa designação de pessoas por lei. Porém, a lei aí referida não poderá nomear como devedor solidário pessoa que nenhuma relação tenha com a situação configuradora do fato gerador. A responsabilidade tributária não pode ser atribuída por um ato urdido por terceiro.

Por isso, o STF declarou a inconstitucionalidade do art. 13 da lei 8.620/93 que dispunha que “o titular de firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à seguridade social” (RE 562.276/PR, relatora ministra Ellen Gracie, DJe de 10-2-2011). Em direito tributário não existe a chamada responsabilidade objetiva.

Outro fator que impede a solidariedade em matéria de IPTU é o disposto no art. 130 do CTN:

“Art. 130. Os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, e bem assim os relativos a taxas pela prestação de serviços referentes a tais bens, ou a contribuições de melhoria, sub-rogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, salvo quando conste do título a prova de sua quitação.”

Trata-se de obrigação ob rem ou propter rem em que o ônus do encargo financeiro do IPTU acompanha o imóvel, esteja na mão de quem quer que seja.

Concluindo, tanto o Resp 1110551 do STJ, quanto a sua Súmula 399 ofendem em bloco o arts. 32, 34, 124, I e 130 e 142 do CTN violando, em consequência a alínea a, do inciso III, do art. 146 da CF, que colocou sob reserva de lei complementar a definição do fato gerador, bases de cálculo e contribuintes de impostos previstos na CF/88.

Por fim, violam frontalmente o princípio da capacidade tributária (art. 145, § 1º da CF) e o princípio que veda a tributação com efeito de confisco (art. 150, IV da CF).

Contudo, o STJ em decisão mais recente superou a sua jurisprudência antiga retroanalisada, reinterpretando o art. 34 do CTN afastando a tributação do proprietário despido dos poderes inerentes à propriedade, conforme ementa abaixo:

“TRIBUTÁRIO. IPTU. SUJEITO PASSIVO. IMÓVEL OBJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CREDOR. RESPONSABILIDADE ANTES DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE. IMPOSSIBILIDADE.

1. O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento submetido ao rito dos recursos especiais repetitivos, consolidou o entendimento de que cabe ao legislador municipal eleger o sujeito passivo do IPTU, entre as opções previstas no CTN.

2. A jurisprudência desta Corte, interpretando o art. 34 do CTN, também orienta não ser possível a sujeição passiva ao referido imposto do proprietário despido dos poderes de propriedade, daquele que não detém o domínio útil sobre o imóvel ou do possuidor sem ânimo de domínio.

3. O credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse no imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 34 do CTN.

4. Agravo conhecido e provido o recurso especial. (AREsp n. 1.796.224/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 16/11/2021, DJe de 9/12/2021.)

Outrossim, em julgado deste ano, o STJ acolhendo a nossa doutrina firmou o entendimento de que o fato gerador do IPTU é a disponibilidade econômica do imóvel (Resp 1740451, relator ministro Afrânio Vilela, DJe de 22/3/24).

Logo, o proprietário despojado de posse do imóvel, porque a transmitiu ao compromissário comprador, não pode ser o contribuinte do IPTU.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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