Em 30 de setembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promulgou a Resolução n. 586, que dispõe sobre “métodos consensuais de solução de disputas na Justiça do Trabalho”.
Considerando o “volume da litigiosidade na Justiça do Trabalho”, a existência de novos métodos de composição de interesses e a possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais, instituída pela Reforma Trabalhista de 2017, o CNJ resolveu que, dentro de certos limites (que incluem a assistência por advogados e a previsão expressa de ampla quitação), os “acordos extrajudiciais homologados pela Justiça do Trabalho terão efeito de quitação ampla, geral e irrevogável”.
A resolução aponta no sentido da ampliação dos espaços de autonomia no direito do trabalho por meio de instrumentos que garantam seu exercício pleno e efetivo. Amplia-se, assim, o âmbito da solução consensual, que tende a ser, conforme já destacava Ada Pellegrini Grinover, “mais econômica em tempo e custos”.1 Nesse sentido, levou-se em conta, como consta de um dos consideranda da Resolução n. 586, que “o acordo a ser levado à homologação pode resultar de negociação direta entre as partes ou de mediação pré-processual”.
Transação trabalhista por escritura pública
A remissão da Resolução n. 586 aos acordos extrajudiciais e à sua homologação faz recordar do Projeto de Lei 4.894 (PL 4894/2019), de autoria do Deputado Hugo Motta, do Republicanos, que tramita no Congresso Nacional. Esse projeto pretende alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para, dando um passo adiante em termos de autonomia, “permitir que o acordo extrajudicial seja celebrado por escritura pública, prescindindo da homologação judicial”.
Desde a Reforma Trabalhista de 2017, instituída pela Lei n. 13.467, acordos trabalhistas passaram a contar com regulamento de jurisdição voluntária, estabelecido entre os arts. 855–B a 855–E da CLT. O processo se inicia por petição conjunta das partes, assistidas por advogados distintos, e se encerra com o juízo de conformidade — a homologação propriamente dita — do juiz. A Reforma infelizmente não faz referência a quais trabalhadores ou quais direitos podem ser objeto de acordo.
O PL 4.894/2019 dá um passo adiante ao determinar que o acordo celebrado com assistência do notário, por escritura pública, “não dependerá de homologação judicial e constituirá título executivo extrajudicial com eficácia liberatória geral, exceto quanto às parcelas expressamente ressalvadas”. Prevê-se, ainda, que a “escritura e demais atos notariais serão gratuitos aos hipossuficientes econômicos”.
A proposta, lemos em seus motivos, insere-se em contexto de estímulo à “desburocratização” e à “desjudicialização”, e parte do reconhecimento da “eficiência da realização da escritura pública em transações consensuais”, à luz dos exemplos do inventário, da partilha, da separação consensual e do divórcio consensual, que, desde a Lei n. 11.441, de 2007, podem ser realizados por via administrativa.
Definida como o contrato por meio do qual interessados podem prevenir ou terminar litígios “mediante concessões mútuas”, nos termos do art. 840 do Código Civil (CC), a transação só pode envolver “direitos patrimoniais de caráter privado” (art. 841 do CC). A expressão “direitos patrimoniais de caráter privado” evidencia a disponibilidade das posições jurídicas que serão objeto das mútuas concessões: “todo direito de que o titular não pode dispor é insuscetível de transação”.2
O alcance da transação trabalhista
Direitos trabalhistas podem ser objeto de transação?
Em 2015, ao julgar o RE 590.415/SC, que lidava com os limites da autonomia coletiva e com a extensão da quitação em acordos coletivos, o Supremo Tribunal Federal (STF), nos termos do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, salientou que “regras autônomas juscoletivas podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo, mesmo que sejam restritivas dos direitos dos trabalhadores, desde que não transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta”.3
Nesse sentido, ainda de acordo com o Min. Barroso, entende-se que “estão protegidos contra a negociação in pejus os direitos que correspondam a um ‘patamar civilizatório mínimo’, como a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos”.4 Se tal “patamar civilizatório mínimo” deve ser observado no âmbito de acordos coletivos, os mesmos limites devem, com ainda maior razão, ser preservados nos acordos celebrados no contexto de relações interindividuais.
É duvidoso que esse raciocínio possa ser aplicado de modo justo e efetivo a quaisquer relações trabalhistas. Afinal, o “patamar” referido pelo STF corresponde, no mais das vezes, ao teto dos direitos transacionados, e não ao seu piso. Relações trabalhistas estabelecidas entre figurantes hipersuficientes, por outro lado, envolvem, essas sim, posições jurídicas que extrapolam aquelas identificadas pelo STF. Essas relações são o objeto por excelência das transações trabalhistas.
Vantagens da colaboração notarial
Isso não significa, por outro lado, que tais relações possam ser reduzidas ao arbítrio individual. Com a inovação do PL 4.894, a certificação da incolumidade das “parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta” poderia ser atribuída ao notário, que as verificaria antes da formalização dos acordos, e não depois, como ocorre no regime atual. Trata-se, aqui, de mais uma hipótese de colaboração notarial, vale dizer, de participação de terceiro neutro habilitado a garantir não apenas a conformidade com o direito posto, mas sobretudo o efetivo consenso das partes.5
Mais ainda: o notário poderia certificar o pagamento integral das verbas trabalhistas devidas mesmo diante da ausência de transação. Nesses casos, a certificação notarial funcionaria não apenas como medida de proteção do trabalhador, que teria a certeza de que todos os seus direitos foram respeitados, mas também como salvaguarda para o empregador, que receberia quitação de seus débitos com muito mais rapidez, sem necessidade de recorrer ao Judiciário.
Vale lembrar que as vantagens da colaboração notarial não se limitam a aspectos jurídicos. A experiência comparada mostra, por exemplo, que exigências de forma — mais propriamente, de colaboração — desempenharam, na Europa e na América Latina, papel decisivo na contenção de bolhas equivalentes àquela que deu azo à crise de 2008.6 A escritura pública funcionou, nesses casos, como mecanismo de contenção de negócios sistemicamente nefastos.
A recente expansão das competências notariais, notadamente no que toca à certificação de condições e à gestão de contas vinculadas, somada à silenciosa multiplicação de arbitragens trabalhistas, mostram que é hora de avançar na discussão sobre a conveniência e o alcance do PL 4.894. Autonomia não é sinônimo de vale-tudo. Sua expansão deve ser acompanhada de cautela e prudência.
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1 Ada Pellegrini Grinover, Os métodos consensuais de solução de conflitos no novo CPC, in: Ada Pellegrini Grinover et al., O novo Código de Processo Civil: questões controvertidas, São Paulo: Atlas, 2015, p. 21.
2 Orlando Gomes, Contratos, 26ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009 [1959], p. 545.
3 STF, RE 590.415/SC, Pleno, rel. Min. Roberto Barroso, j. 30/04/2015, DJe 29/05/2015, p. 16.
4 STF, RE 590.415/SC, Pleno, rel. Min. Roberto Barroso, j. 30/04/2015, DJe 29/05/2015, pp. 16–17.
5 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7–13, dez. 2023, p. 11.
6 Osny da Silva Filho, A qualificação do consensualismo: escritura pública e colaboração notarial, Revista do Advogado, São Paulo, n. 160, p. 7–13, dez. 2023, p. 12.