A CF/88, de maneira clara, estabelece a soberania dos veredictos proferidos pelo Tribunal do Júri (“art. 5º, XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: (...) c) a soberania dos veredictos”). Aprovando-se ou não, a instituição do júri popular existe no Brasil, fazendo parte dos direitos e garantias fundamentais, portanto, cláusula pétrea. Desse modo, é preciso, em primeiro lugar, ressaltar que o termo soberania possui um significado forte, tal como superioridade, autoridade suprema, poder superior, enfim, uma qualidade daquilo que não admite contestação. Nota-se a indicação de ser a decisão dos jurados a última voz do julgamento de mérito (“culpado ou inocente”) no cenário dos crimes dolosos contra a vida.
Atuei como juiz presidente no Tribunal do Júri da Capital do Estado de SP por sete anos consecutivos e elaborei tese de doutorado em relação à instituição do júri, sempre defendendo a primazia dos princípios constantes do art. 5º, inciso XXXVIII, da CF/88. Dessa forma, no âmbito da soberania dos veredictos, apontei a irregularidade de ser viável o acolhimento da revisão criminal, por tribunal togado, para absolver o acusado, quando condenado pelo júri (mérito da causa). Por certo, cabe revisão criminal em relação a decisões condenatórias, proferidas pelo Tribunal do Júri, afinal, erro judiciário pode acontecer, assim como prova nova pode surgir. Entretanto, compete ao tribunal togado proceder ao juízo rescindente (desconstituir o julgado), mas não o juízo rescisório (proferir outro julgamento em lugar do primeiro). Havendo procedência da ação revisional, o tribunal togado remete o feito ao tribunal popular para que reveja a condenação, em estrita observância à soberania dos veredictos.
Após a reforma trazida pela lei 11.689/08, introduziu-se o quesito genérico de absolvição (“o réu deve ser absolvido?” – art. 483, III, CPP), motivo pelo qual, seja qual for a tese ou fundamento, os jurados podem fazer valer a sua soberania, respondendo afirmativamente. Afirmei, desde então, existir a viabilidade de fazê-lo até mesmo por clemência, embora possa haver um motivo diverso na concepção individual de cada jurado (decisão tomada sem contato ou conversa com outros jurados), até mesmo por entender que o acusado matou a vítima por razões legítimas ou justas, não merecendo cumprir pena.
Emerge, então, a questão relativa à possibilidade de recurso da acusação contra a decisão absolutória do tribunal popular ao afirmar esse quesito genérico, que não especifica qual a tese defensiva. Em minha visão, ainda que possa conceber o acolhimento de pura indulgência na absolvição, ninguém está imune a erros – jurados podem se equivocar tanto quanto magistrados togados. Em atenção ao princípio do duplo grau de jurisdição, que pode conviver com a soberania dos veredictos, tenho sustentado o seguinte: se a defesa alega apenas a negativa de autoria, por exemplo, os jurados a reconhecem e, depois, afirmam o quesito genérico de absolvição, pode ter havido decisão manifestamente contrária à prova dos autos, onde se inclui, naturalmente, o que foi sustentado em plenário pelas partes. Seguindo o disposto pelo art. 593, III, d, do CPP, o órgão acusatório ingressa com apelação e o tribunal togado pode determinar novo julgamento pelo tribunal popular. Ocorre que, tornando a acontecer a mesma situação, o acusado estará definitivamente absolvido, sob o prisma de que os jurados confirmam ser ele o autor do homicídio, mas não merece cumprir pena. Não se trata de nulidade de quesitação, por ter havido, em tese, contradição (art. 490, CPP), situação na qual deveria o juiz presidente interferir e determinar novo julgamento.
Inexiste erro quanto ao procedimento, mas pode haver erro quanto ao mérito da causa. Afinal, não há cabimento em sustentar que o juiz presidente interfira, detenha o curso da votação e diga aos jurados que entraram em contradição, afinal, reconheceram que o acusado matou, mas, depois, o absolveram. Logo, devem votar novamente. Ora, assim agindo, além de conduzir o julgamento, influindo diretamente na soberania dos jurados, termina por apontar que o réu deveria ser condenado. Implicitamente, é exatamente o que faria se atuar desse modo. Por que não poderia haver a conclusão de ter o réu matado, mas merecer a absolvição? Isto é soberania popular, goste-se ou não da instituição do júri. Enfim, nulidade alguma nasce da permissão de votar os quesitos indicativos de materialidade e autoria para, depois de reconhecê-los, optar pela absolvição.
Volto ao ponto anterior: pode-se avaliar se, nessa hipótese, quanto ao mérito, existiria um erro, em contraste com a prova dos autos e levando em conta a tese da defesa, exposta em plenário e constante em ata. Um novo julgamento pode ser determinado, não porque o primeiro é nulo, mas pelo fato de o veredicto, em princípio, entrar em conflito com as provas e as teses do processo. Havendo apelação, por esse motivo, ocorrerá somente uma única vez. Confirmada a absolvição – em idêntica votação, por exemplo – cabe ao juiz absolver o réu. Essa decisão é definitiva. Isto é soberania, aproveitando-se a viabilidade do duplo grau de jurisdição.
Somente para argumentar e demonstrar a inexistência de nulidade, nessa situação, porque o juiz não teria utilizado o disposto pelo art. 490 do CPP (obrigar nova votação), suponha-se tenha a defesa sustentado que o réu matou a vítima, mas o fez em legítima defesa. Inexistiria dúvida quanto à materialidade e autoria. No entanto, os jurados decidem negar a autoria. Pode-se determinar nova votação porque a conclusão popular não coincide com as teses das partes? Parece-me que, quanto ao mérito, sim (decisão manifestamente contrária à prova dos autos), mas jamais porque teria ocorrido nulidade da votação (contradição com a tese). Se negar a autoria, quando as partes a reconhecem, é mérito do julgamento, o mesmo se dá caso os jurados afirmem a autoria e, depois, absolvam o réu.
Recordo-me do julgamento de um réu, autor de homicídio, que, após o fato, converteu-se a determinada religião e, por conta disso, surgiu no distrito policial e admitiu ter cometido o crime (até aquele momento, inexistia pista quanto à autoria). Acusado confesso nas fases policial, judicial e em plenário do júri, o defensor levantou a tese de negativa de autoria. Critique-se ou não, foi uma proposta interessante e o argumento se concentrou no fato de que o matador era outra pessoa. Aquele réu, em julgamento, mudou completamente seu comportamento e a condução da sua vida. Era um novo homem. Por isso, quem matou a vítima desapareceu, emergindo uma outra pessoa. Eis por que os jurados deveriam negar a autoria. Cuidava-se de época em que a votação completa era descortinada, razão pela qual, por 4 x 3, eles afirmaram a autoria. Note-se que três jurados acolheram a tese da defesa. O acusado terminou condenado. Todavia, para argumentar, caso os jurados negassem a autoria, ele seria absolvido, mesmo tendo afirmado em todas as fases da persecução penal que, realmente, desferiu tiros no ofendido, para matá-lo. Não se trata de nulidade de quesitação, mas, sim, de mérito da decisão tomada pelos jurados. Aliás, nessa hipótese, se tivesse havido absolvição, creio que o tribunal togado nem mesmo poderia determinar outro julgamento, pois a tese defensiva de um novo homem fora acolhida, dentro da mais pura soberania dos veredictos.
Em plenário, no dia 3 de outubro de 2024, o STF decidiu, por maioria de votos, ser possível apelação do órgão acusatório, mesmo com o acolhimento do quesito genérico de absolvição, fundando-se em decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Eis a tese: "1. É cabível recurso de apelação com base no artigo 593, III, d, do CPP, nas hipóteses em que a decisão do Tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos. 2. O Tribunal de Apelação não determinará novo Júri quando tiver ocorrido a apresentação, constante em Ata, de tese conducente à clemência ao acusado, e esta for acolhida pelos jurados, desde que seja compatível com a Constituição, os precedentes vinculantes do STF e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos".
Observe-se, segundo me parece, constituir exatamente o enfoque exposto linhas acima. O Pretório Excelso admitiu a viabilidade de se levantar a tese de clemência, pela defesa, bem como o seu reconhecimento pelos jurados. Eis um ponto a ser sustentando, sempre que possível, pelo defensor do réu. No mais, admitiu, ainda, ser cabível apelação, por decisão manifestamente contrária à prova dos autos, quando nenhum fator apontar para o acolhimento de mérito da indulgência, mas, sim, emanar de possível erro judiciário. Se a defesa não aventou clemência, mas outra tese – inclusive a negativa de autoria –, caso o Conselho de Sentença afirme a autoria e depois reconheça o quesito genérico, absolvendo o acusado, em contraste com as provas e teses dos autos, torna-se viável supor um erro. Se houver apelação e o tribunal togado determinar novo julgamento, a outros jurados competirá apreciar o caso. Tome-se como possível que o Conselho de Sentença, novamente, faça exatamente o mesmo. Nessa situação, deduz-se, com nitidez, que, embora tenha o acusado matado a vítima, com ou sem tese de clemência pela defesa apontada, os jurados querem absolvê-lo e, constitucionalmente, podem assim agir. Estão se valendo da soberania que lhes foi outorgada.
Em síntese, cuida-se de compatibilidade admissível que princípios constitucionais igualmente relevantes possam ser harmonizados e aplicados. Reconhece-se a soberania dos veredictos: somente os jurados podem julgar o mérito da causa dos crimes dolosos contra a vida; eles têm o poder constitucional de absolver o réu, por qualquer motivo, sem fundamentação explícita; a tese de clemência não foge ao âmbito de sua competência. Admite-se o duplo grau de jurisdição, que pode sanar eventual erro quanto ao mérito da questão: aceita-se, uma vez apenas, apelação do órgão acusatório por decisão manifestamente contrária à prova dos autos; o tribunal togado, notando inexistir tese defensiva para afirmação do quesito genérico de absolvição, pode determinar novo julgamento pelo júri; em nova apreciação, o Conselho de Sentença proferirá decisão definitiva a respeito. O único caminho que não me parece viável é considerar nulo o julgamento por defeito de votação do questionário, pois representaria a suposição de que o juiz presidente se equivocou e deveria ter interferido na votação, obrigando os jurados a votar novamente até que cheguem a um veredicto compatível com o que ele – magistrado togado – considera adequado.
A soberania do Tribunal do Júri tem sido prestigiada pelo STF, em atenção a expressa norma constitucional, independentemente da análise de ser conveniente ou inconveniente o julgamento popular no Brasil. Esta foi a vontade do constituinte de 1988 e deve ser fielmente respeitada.