Apesar de ser um instituto legal antigo, abarcado desde o antigo Código Civil Brasileiro de 1916 (art. 1.611, §2., do CC/1916), e delineado em artigo próprio no atual Diploma Civil, o direito real de habitação ainda gera polêmicas, na medida em que, em alguns pontos, ainda há divergência de entendimento doutrinário e jurisprudencial.
O que é o direito real de habitação, então? Trata-se de direito real gratuito sobre coisa alheia (imóvel - art. 1.225, VI, do CC/02) para fins de habitação/moradia do(a) cônjuge/companheiro(a) sobrevivente (somente ocupação), mesmo que esse não seja proprietário(a) do imóvel, e desde que o imóvel pertença integralmente ao falecido, e sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança ou meação. Referido direito, diretamente ligado à sucessão, está amparado pelo art. 1.831 do CC/02, que assim dispõe:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Está-se, pois, diante de um DIREITO DECORRENTE DA LEI (não sendo, pois, obrigatória a sua menção no inventário e partilha), de natureza PERSONALÍSSIMA e VITALÍCIA.
Vale ressaltar que, apesar do art. 1.831 assegurar referido direito de habitação ao cônjuge sobrevivente (casamento), o STJ já pacificou o entendimento de que esse direito também assiste ao companheiro(a) sobrevivente (união estável), por entender que o art. 7., da Lei n. 9.278/96 não foi revogado pela legislação civil. É o que retrata o REsp AgInt nº 1.757.984 – DF, estando em alinhamento Enunciado 117 da I Jornada de Direito Civil, a seguir:
117 - Art. 1831: O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei 9278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1831, informado pelo art. 60, caput, da CRFB/88".
O único requisito legal para assegurar o direito real de habitação é que o imóvel destinado à residência do casal seja o único daquela natureza a inventariar. Ou seja, que dentro do monte mor deixado pelo falecido exista apenas um único imóvel que serviu de residência familiar. Isto não significa que não possa ter outros imóveis deixados pelo “de cujus”.
Apesar do STJ reconhecer referido requisito legal, admite que ainda se trata de matéria controvertida doutrinariamente, razão pela qual abre-se brecha para afastar a literalidade da lei, caso a caso, como foi pontuado no bojo do acórdão do Resp nº 1.582.178 – RJ, principalmente, por se atrelar o direito real de habitação relativamente ao imóvel em que convivia o casal, ainda que haja mais de um imóvel residencial a inventariar, objetivando o direito à moradia com função social, afetiva. Nesse sentido, também foi o decidido no bojo do AgInt no REsp nº 1957776 - RJ.
Ademais, e no próprio acórdão do Resp nº 1.582.178 – RJ, o STJ também já se pronunciou afirmando que o direito real de habitação não está vinculado a existência ou não de patrimônio pessoal do cônjuge/companheiro.
Assim, mais uma vez, o STJ chama atenção sobre a parte final do art. 1.831 do Código Civil, o qual não condiciona à habitação a verificação de existência ou não de outros bens no patrimônio particular do cônjuge/companheiro sobrevivente. Isso porque o objetivo da lei não é tão somente o direito assistencial à moradia, mas, também o cunho social: humano, afetivo e psicológico.
Nesse mesmo raciocínio, pode-se trazer à pauta outro questionamento, que é a perda do direito real de habitação em caso de novo matrimônio ou constituição de união estável pelo cônjuge sobrevivente. Aqui, cabe abordar duas nuances: a do cônjuge sobrevivente e a do companheiro sobrevivente.
O mesmo art. 1.831 não traz exigência vinculada ao estado civil do cônjuge sobrevivente, e tão somente a característica vinculada ao imóvel, qual seja imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Portanto, a cessação do estado de viuvez do cônjuge em nada interfere na concessão ou permanência do seu direito real de habitação. Tal requisito era exigido quando do Código Civil de 1916, mas, nos casos em que a sucessão foi aberta na vigência do atual Código Civil de 2002, tal regra não mais persiste, pelo raciocínio de que o instituto visa garantir o direito à moradia e à dignidade da pessoa humana, e não perpetuar o luto. Em vista disso, o STJ já se manifestou favoravelmente, em recente acórdão publicado no REsp n. 2035547 - SP.
No entanto, percebe-se que, neste mesmo acórdão, o STJ direciona que o mesmo não se aplicaria nos casos de companheiro sobrevivente, que mantinha com o falecido união estável, e, após, passa a contrair matrimônio ou nova união estável.
Isso em razão do § único, do art. 7., da Lei 9.278/96 prever que há condicionante para a manutenção do direito real de habitação para os conviventes em união estável, que é enquanto o companheiro sobrevivente não só viver, como também não constituir nova união ou casamento.
Ou seja, é pertinente se atentar que, apesar do STF ter equiparado a união estável ao casamento, em sede de repercussão geral, o fez no aspecto do regime sucessório, concedendo ao companheiro (sob a união estável) o direito ao recebimento de herança com os mesmos direitos sucessórios que cabem ao cônjuge (sob o casamento).
Alguns doutrinadores divergem desse entendimento, como por exemplo, Conrado Paulino da Rosa e Marco Antonio Rodrigues, por alegarem existir privilégios em situações equiparadas, inclusive com relação ao aspecto vitalício ao sobrevivente, por entenderem que contrair novas núpcias acaba por desnaturar o propósito pelo qual foi criado o direito real de habitação, acabando por onerar, assim, os herdeiros proprietários do imóvel.
De fato, há que se ponderar mencionada visão, caso a caso, sob pena de endurecer a lei, e acabar desvirtuando do seu real propósito, em prejuízo do direito de propriedade; além de se refletir que impor condições mais restritivas a companheiros sobreviventes ao cônjuge, em situação jurídica de mesma finalidade sucessória, abre-se a válida discussão do viés discriminatório e, portanto, inconstitucional.
Além do mais, sobre o direito real de habitação, cabe destacar que outros três pontos já foram avaliados e externalizados pelo STJ. São eles:
- Para se ter o direito real de habitação, o imóvel residencial tem de ser de propriedade única do falecido (100%), não podendo haver, então, copropriedade anterior com terceiros, mesmo sendo filhos do “de cujus”, ou se, àquele tempo, o falecido era mero usufrutuário do bem, para que os demais condôminos e/ou nu-proprietários não fiquem prejudicados em seu direito de propriedade, em decorrência da sucessão (STJ – EREsp 1520294 SP);
- Imóvel residencial doado antes do casamento ou união estável, sem cláusula de reversão (retorno ao patrimônio do doador), não pode ser objeto de direito real de habitação (STJ - REsp 1.315.606 SP); e
- Possibilidade do cônjuge/companheiro sobrevivente reivindicar a posse do imóvel em que residia com o falecido, em eventual ação possessória, mesmo nos casos em que o companheiro sobrevivente não tenha buscado, antes da morte, o reconhecimento da união estável.
Vale ainda pincelar sobre a possibilidade de renúncia ao direito real de habitação, em que o sobrevivente pode renunciar ao seu direito de habitação, nos autos do inventário ou por meio de escritura pública, sendo aplicável, no que não lhe for contrário, as normas relativas ao usufruto, conforme art. 1.416 do CC/02. Assim sendo, é o Enunciado 271 da III Jornada de Direito Civil:
Enunciado CJF nº 271 – O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança.
Levando em consideração todos os aspectos aqui abordados, e mesmo diante de posicionamentos dados pelo STJ, é importante não desviarmos da finalidade do direito real de habitação, que visa não só garantir ao sobrevivente, de forma digna e protetiva, o direito constitucional à moradia, como também, de forma social e humana, não desconsiderando a existência de vínculo afetivo e emocional entre o falecido e respectivo cônjuge/companheiro firmado naquele imóvel familiar, onde se constituiu um lar, uma convivência.
Ao passo que devemos nos atentar ao objetivo protetivo da lei, é de se suspeitar que quando não atendidos não só os requisitos, mas também as reais motivações ao direito real de habitação, ou quando atendidos de forma excessiva, em desproporção à realidade, de forma a prejudicar os sucessores, legítimos proprietários, referido direito deverá ser sopesado, sob pena de uma análise essencialmente literal e rígida comprometer a função social do próprio instituto e fomentar injustiças.
Nesse sentido, podemos citar o recente e louvável entendimento da Terceira Turma do STJ, de 27/09/2024, nos autos do Resp n. 2151939 - RJ (2024/0220696-4), que, por unanimidade, relativizou o direito real de habitação em favor dos herdeiros (nu-proprietários), que, quando do falecimento do titular do imóvel, não receberam nenhum valor, e moram de aluguel com seus descendentes, ao passo que a viúva sobrevivente recebe pensão vitalícia por morte do falecido, em valor elevado, possuindo recursos suficientes para assegurar sua sobrevivência e moradia de forma digna, não necessitando manter seu direito real de habitação sobre o imóvel residencial deixado pelo falecido.