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A exclusão de sócios no direito societário: Repensando o papel da perda da Affectio Societatis como justa causa ou falta grave

A exclusão do sócio por falta grave ou justa causa pressupõe o descumprimento ilícito da lei ou do contrato por meio de ações ou omissões que prejudiquem a atividade social. O fim da affectio societatis deve ser visto como consequência dessas ações, mas não como o motivo principal para a exclusão.

3/10/2024

Conflitos entre sócios, por vezes, surgem de divergências em aspectos cotidianos da gestão empresarial, como a alocação de recursos. Um sócio pode priorizar a inovação e a expansão do negócio, enquanto o outro prefere adotar uma postura mais conservadora, focando na reserva de capital para emergências ou na mitigação de riscos.

Além das divergências sobre a alocação de recursos, também surgem conflitos relacionados à forma de lidar com clientes e fornecedores, políticas internas de contratação e a gestão do tempo e prioridades na empresa. Diferentes abordagens na comunicação, gestão de crises e até expectativas desiguais quanto à participação e dedicação dos sócios na rotina da empresa podem também alimentar tensões, especialmente quando não há um consenso claro sobre o que é prioritário ou mais benéfico para o futuro do negócio.

É natural que divergências subjetivas possam gerar pequenos desentendimentos entre sócios, os quais, em geral, devem ser superados em prol do fim comum da atividade empresarial. No entanto, quando ocorre um desalinhamento significativo de interesses ou uma quebra substancial de confiança e afinidade, poderiam esses conflitos subjetivos justificar a exclusão de um sócio da sociedade de forma judicial, nos termos do art. 1.030, ou extrajudicial, conforme art. 1.085, ambos do Código Civil?

Historicamente, a exclusão de sócios em sociedades de pessoas, em especial nas limitadas, fundamentou-se amplamente na quebra da affectio societatis. A perda dessa vontade de cooperação justificava a exclusão de um sócio, sendo vista como a própria "justa causa" para tal medida.

A ênfase dos tribunais no desentendimento entre sócios como critério principal para exclusão por justa causa dificultava a identificação de situações concretas, colocando a affectio societatis em primeiro plano e relegando a um segundo outros fatores essenciais. Com isso, o dissenso isolado era tratado como suficiente, dispensando a análise de outros elementos relevantes. Um trecho de antiga decisão do STJ destaca bem esta compreensão:

“Também irrelevante neste aspecto a asserção produzida pelo recorrente no sentido de a ré, ora recorrida, não se desincumbiu do ônus de evidenciar a justa causa para a despedida. Era suficiente, como referido, a desavença entre os sócios”

(STJ - REsp: 7183 AM 1991/0000263-1, Relator: Ministro BARROS MONTEIRO, Data de Julgamento: 13/08/1991, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 16.10.1991 p. 14481 RSTJ vol. 28 p. 454,DJ 16.10.1991 p. 14481 RSTJ vol. 28 p. 454)

Esse conceito, originário do direito romano, descreve a intenção de colaboração mútua entre os sócios e não surgiu como um elemento autônomo, mas como uma característica distintiva da comunhão ou do condomínio. Vale lembrar que o termo affectio também era empregado no contexto do matrimônio (affectio maritalis) e da posse (affectio tenendi)1.

Por essas e outras razões, a doutrina sustenta que a affectio societatis não deve ser considerada um elemento constitutivo das sociedades2, nem vista como uma modalidade especial de consentimento distinta daquela exigida para qualquer outro contrato. Assim, em sentido oposto, sua ausência não deveria ser interpretada como motivo para a extinção da sociedade3.

No direito societário contemporâneo, juristas como Marcelo Vieira Von Adamek e Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França questionam com veemência a utilização da “affectio societatis” como fundamento direto para a exclusão de sócios. Defendem que a aplicação irrefletida desse conceito no direito brasileiro gera decisões inadequadas, sobretudo quando usado como critério subjetivo para justificar a exclusão com base em simples divergências pessoais4. Os autores defendem que o que caracteriza a sociedade não é o consentimento, mas a causa do contrato, que consiste na busca pela realização de um fim comum.

O Professor Alfredo de Assis Gonçalves Neto observa que muitos doutrinadores ainda veem a affectio societatis como uma disposição contínua necessária para a convivência societária. No entanto, ele sustenta que esse conceito não é fundamental para a criação ou continuidade da sociedade. Se fosse, os sócios majoritários teriam o poder de excluir os minoritários a qualquer momento, impedindo-os de participar de oportunidades futuras vantajosas5. Para além, não consta dos elementos do contrato social previstos no Código Civil.

Essa perspectiva está em consonância com o entendimento de Maurice Cozian e Alain Viandier, que afirmam que "a affectio societatis é mais um sentimento do que um conceito jurídico".

Exclusão de sócios. Necessidade de Justa Causa Objetiva e o Papel da Segurança Jurídica

A mera perda do vínculo afetivo ou de afinidades entre os sócios não necessariamente reflete uma ameaça concreta ao bom funcionamento da sociedade, criando a possibilidade de exclusão injusta fundamentada em razões subjetivas e caprichosas.

Em outras palavras, a perda da affectio societatis não configura justa causa ou falta grave para exclusão de sócio6.

A crítica central reside na ideia de que a exclusão por essa motivação isolada pode disfarçar interesses pessoais da maioria, em vez de proteger os interesses sociais da empresa, resultando em abuso de poder. Afinal, a manifestação isolada e subjetiva de um sócio não deve prevalecer sobre a preservação da atividade empresarial. Nesse contexto de ideias, é fácil concluir que a exclusão de sócios com base apenas na ausência de affectio societatis pode resultar em decisões arbitrárias.

Conforme ressaltam Adamek e Valladão, a aplicação desse critério subjetivo corre o risco de subordinar a minoria aos caprichos da maioria, configurando uma verdadeira "denegação de direitos". A affectio societatis é um conceito subjetivo e de difícil avaliação, o que pode comprometer a segurança jurídica, permitindo interpretações equivocadas e decisões que não atendem aos requisitos de justa causa previstos na legislação.

Ao apoiar essa perspectiva, os autores destacam que a exclusão de um sócio baseada apenas na alegação de falta de affectio societatis enfraquece a lógica fundamental do sistema societário. Este sistema regula detalhadamente os direitos e deveres dos sócios e tem como objetivo proteger tanto as minorias quanto a continuidade e preservação da atividade empresarial. Portanto, o exercício do direito de pleitear a exclusão de outro sócio deve estar fundamentado em fatos objetivos e em comportamentos concretos que coloquem em risco o propósito final da sociedade, seu fim comum, como a violação de obrigações contratuais ou a prática de atos ilícitos, e não simplesmente na deterioração das relações interpessoais entre os sócios. Deverá, portanto, haver um verdadeiro inadimplemento contratual pela parte culpada. Situações pessoais entre sócios, salvo previsão contratual ou signifiquem infração a deveres de socio que possam trazer prejuízos à sociedade, não podem ser consideradas inadimplemento apto a gerar a exclusão7.

É nesse contexto de ideias que foi publicado o Enunciado 67 da I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal (CFJ), com o seguinte teor:

Arts. 1.085, 1.030 e 1.033, III: A quebra do affectio societatis não é causa para a exclusão do sócio minoritário, mas apenas para dissolução (parcial) da sociedade.

Por isso, deve ser realizada uma análise mais objetiva da justa causa, entendendo que a affectio societatis deve ser consequência da deterioração grave de outros fatores essenciais, e não o ponto de partida, sob pena de exclusões arbitrárias. O advento do Código Civil de 2002 (art. 1.030) reforça que a justa causa para exclusão de sócio deve estar sempre vinculada a fatos objetivos, como a prática de atos que coloquem em risco a continuidade da empresa ou o descumprimento de obrigações fundamentais para seu funcionamento. Embora o direito societário não exija que os sócios tenham amizade, a ausência de affectio societatis, portanto, não pode ser argumento isolado, sob pena de abrir margem para interpretações abusivas e decisões que privilegiem injustamente a maioria em detrimento dos direitos da minoria.

Decisões dos últimos anos dos Tribunais locais e do STJ8 têm se atentado a esta perspectiva, julgado ser insuficiente a mera desinteligência entre os sócios para fundamentar a exclusão por justa causa.

Flexibilidade na Aplicação da Justa Causa e Riscos de Abuso

Permitir a exclusão de sócio baseada em algo tão subjetivo como a perda da affectio societatis implica o risco de transformar conflitos interpessoais em litígios empresariais, muitas vezes sem prejuízo efetivo para a sociedade.

Simples divergências pessoais ou de foro íntimo não podem ser utilizadas como fundamento para a exclusão, pois isso abriria margem para que a maioria tomasse decisões oportunistas, prejudicando minoritários e comprometendo a segurança jurídica. Assim, a perda do vínculo afetivo entre sócios deve ser vista como uma consequência, e não como uma justificativa isolada para tal medida9.

O professor Gonçalves Neto na citada obra exemplifica uma situação em que a sociedade está prestes a firmar um contrato vantajoso, já celebrado ou em fase final de negociação, e que determinados sócios, visando beneficiar-se exclusivamente, desejam dividir os resultados apenas entre si, prejudicando os sócios minoritários. Para tanto, utilizam como justificativa a alegação de que não existe mais a affectio societatis com os demais sócios, promovendo sua exclusão. Esse tipo de argumento, no entanto, é claramente abusivo e demonstra a tentativa de disfarçar interesses pessoais sob o pretexto de uma justificativa subjetiva, sem fundamento jurídico suficiente para legitimar a exclusão.

Ora, se um sócio quer retirar outro sob a alegação desinteligência entre eles, quem devem ser excluído: o que alega, o que sofre a acusação, ou ambos? Ou todos os envolvidos, a ponto de se gerar uma dissolução total nos termos do art. 1.034, II, do Código Civil10?

Portanto, se o sócio considerar que a relação societária se tornou insustentável devido à alegada perda do affectio societatis, a medida adequada não é buscar a exclusão do sócio adimplente, mas exercer o potestativo direito de retirada. A exclusão do outro sócio só é possível em casos de inadimplemento grave que configure justa causa e comprometa a realização do objeto social. Na ausência de justa causa, o sócio 'inocente' tem o direito de permanecer na sociedade e exercer suas atividades empresariais.

A conclusão a que se chega é que  exclusão de sócios não deve se basear exclusivamente na perda da affectio societatis, dado o caráter subjetivo e difícil mensuração desse conceito. A jurisprudência e a doutrina modernas apontam para a necessidade de justa causa objetiva, fundamentada em comportamentos concretos que comprometam o fim comum da sociedade, como o descumprimento de obrigações contratuais ou legais. Dessa forma, preserva-se a estabilidade das relações empresariais e evita-se a arbitrariedade, protegendo tanto os direitos das minorias quanto a continuidade da atividade empresarial. O direito societário brasileiro deve evoluir para garantir a segurança jurídica, evitando que conflitos interpessoais prejudiquem o funcionamento das empresas, sempre fundamentando a exclusão de sócios em critérios objetivos e claros.

_______

1 SPINELLI, Luis Felipe. Exclusão de sócio por falta grave na Sociedade. Limitada. São Paulo: QIartier Latin, 2015. p 197

2 COMPARATO, Fábio Konder. Restrições à circulação de ações em companhia fechada: “Nova et vetera”. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, a. 28, n. 36, p. 65-76, out-dez 1979, p. 68-69.

3 ADAMEK, Marcelo Vieira von; FRANÇA, Erasmo Valladão. A. e. N. “Affectio societatis”: um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social, ‘in’ Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 149/150, p. 108-130, 2009.

4 ADAMEK, FRANÇA, op. cit.

5 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 147.

6 SPINELLI, op. cit., p. 88.

7 SPINELLI, op. cit., p. 179.

8 AREsp 1294318 SP (STJ),  07317408820188070015 (TJDF), AC 1025639-31.2022.8.26.0002 (TJSP).

9 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 577

10 SPINELLI, op. cit., p. 200-201.

Thomaz Carneiro Drumond
Procurador do Estado. Bacharel em Direito pela UFMG. Pós-graduado em direito Administrativo, Tributário, Processo Civil, e Empresarial. Advogado. dtr.adv.br

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