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Por que os Tribunais de Contas podem adotar soluções consensuais?

A partir da discussão em torno da ADPF 1.183 que discute a constitucionalidade da Instrução Normativa 91/22 do TCU, os artigo analisa o microssistema/regime jurídico próprio das soluções consensuais administrativas que se espalha em diversas normas do nosso ordenamento.

2/10/2024

Tramita no STF a ADPF - Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.183 proposta pelo Partido Novo em face da instrução normativa 91, de 22 de dezembro de 2022, do TCU - Tribunal de Contas da União, que instituiu, na estrutura organizacional da citada Corte de Contas, os procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidade da administração pública federal e criou a SecexConsenso - Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos.

A citada instrução normativa 91/22 regulamentou os procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos relacionados a órgãos e entidades da administração pública federal, bem como criou a SecexConsenso.

Nos termos da ADPF, seria a IN 91/22 do TCU inconstitucional por violar: (1) o princípio da legalidade administrativa (pois a norma infralegal não estaria embasada em nenhuma das competências previstas no art. 71 da CF/88 e no art. 1º da lei 8.443/92, exorbitando o poder regulamentar assegurado no art. 3º da já mencionada lei 8.443/1992, que é a lei orgânica do TCU); (2) o princípio da separação de poderes (devido à criação de nova atribuição à Corte de Contas Federal por ela mesma) e (3) o princípio da moralidade administrativa e o princípio republicano (uma vez que a atuação do TCU, por meio do SecexConsenso, promoveria “uma proteção deficiente da própria moralidade administrativa e da forma republicana de se governar o Brasil”).

Ao fim e ao cabo, a ADPF 1.183 defende que a instrução normativa 91/22 viola a CF/88 por inovar no ordenamento jurídico, distorcendo e distanciando o TCU da sua atividade constitucional precípua de órgão de controle externo de fiscalização concomitante e posterior ao exercício da atividade administrativa, pugnando pela “procedência do pedido para declarar a inconstitucionalidade total da instrução normativa TCU 91, de 2022, com a consequente extinção da Secex Consenso e declaração de prejudicialidade de todos os acordos celebrados no âmbito da referida secretaria, assim como para impedir a criação pela Corte de Contas de novas unidades de solução consensual e prevenção de conflitos nos moldes na prevista no ato normativo impugnado”.

No atual curso da marcha processual, o Ministério Público junto ao TCU e a ATRICON (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) foram admitidos como amici curiae.

Na sua manifestação nos autos, a ATRICON destacou a existência estruturas infranacionais nos Tribunais de Contas locais para obter soluções consensuais em conflitos que envolvam seus jurisdicionados, do que são exemplos os Tribunais de Contas de Pernambuco, Mato Grosso, São Paulo, Rondônia, Sergipe e Bahia.

Já o Ministério Público de Contas com atuação no TCU destacou, dentre outras coisas, em sua petição de amicus curie que: (1) a IN/TCU nº 91/2022, tem objetivo semelhante ao Centro de Mediação e Conciliação criado no âmbito do STF pela Resolução/STF nº 697/2020; (2) não há participação do TCU no ajuste de vontades inerente à solução consensual construída, seja por meio de seus auditores, seja por parte de seus Ministros julgadores, e que estes últimos desempenhariam papel tipicamente homologatório; (3) nas soluções consensuais homologadas pelo TCU há um fortalecimento da segurança jurídica vez que se afasta, a princípio, o risco de futuros questionamentos quanto à legalidade, legitimidade ou economicidade do ajuste e mesmo de responsabilização dos gestores no âmbito daquela Corte de Contas, haja vista que, por dever de boa-fé objetiva, resta vedado ao órgão de controle externo a adoção de um comportamento contraditório e (4) a IN/TCU 91/22 em momento algum condiciona a busca de soluções consensuais para controvérsias existentes no âmbito da Administração Pública Federal a sua submissão ao procedimento ali estabelecido ou, de qualquer outro modo, à anuência prévia do TCU.

Bom, trazido o panorama da ADPF 1.183, questiona-se: os Tribunais de Contas (não) podem adotar soluções consensuais?

E, indo direto ao ponto, entendemos que sim, os Tribunais de Contas podem adotar soluções consensuais.

De imediato, é preciso ter em mente que atualmente há um progressivo abandono do direito administrativo imperativo e adversarial propulsionado por mudanças legislativas que indiciam um processo de desverticalização do direito administrativo brasileiro, propiciando um incremento na dialética entre a Administração Pública e os particulares1-2.

Aliás, mesmo antes, em espaços e questões talvez menos afeitos à possibilidade de negociação, já há muito existiam disposições prevendo ajustes, a saber, os termos de ajustamento de conduta decorrentes da lei 7.347/85 (lei da Ação Civil Pública) e seus assemelhados nas leis 6.938/80 (lei da política nacional do meio ambiente) e 6.385/76 (lei da comissão de valores mobiliários).

De toda a sorte, há hoje um verdadeiro microssistema ou um regime jurídico próprio das soluções consensuais administrativas que afasta a percepção autoritária, adversarial, autocentrada, inflexível, complexificadora, punitivista e formalista da atuação da Administração Pública (v.g. lei 13.105/15, lei 13.129/15, lei 13.140/15, lei 13.655/18, lei 13.867/19, lei 14.133/21 e lei 14.230/21).

O conteúdo da ADPF ora tratada, por melhor que se presume seja o objetivo de seu autor, vai de encontro não apenas à referida bem-vinda tendência de desenvolvimento do direito administrativo, mas também à concepção do sistema processual como um conjunto de instrumentos voltado à solução de conflitos3, à ideia de processos estruturantes, à compreensão de que mais importante do que apontar culpados é construir soluções que façam efetivas as entregas do Estado à população. Mas não só, convém destacar, de maneira mais ampla, que o sistema democrático precisa, com urgência, para combater uma série de riscos que o põe em risco, investir em mais entendimento e colaboração, menos divergências inconciliáveis e mais abertura dialógica, afastando-se da desconfiança generalizada para adotar um saudável ceticismo esperançoso, tal como propugna, para as relações humanas em geral, Jamil Zaki, diretor do Laboratório de Neurociência Social da Universidade de Stanford e autor do recente "Hope for Cynics: The Surprising Science of Human Goodness4".

Cabe lembrar, ainda, que o CPC (lei 13.105/15) previu expressamente (art. 3º, § 2º) queo “Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e ainda, mais uma vez de forma expressa,em seu art. 174, que União, Estados e Municípios deveriam criar câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo, com o objetivo de dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública; e promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

Já com a alteração da lei de arbitragem, pela lei  13.129/15, foi facultado ao Estado “utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”, o que nos leva a concluir que se existem direitos patrimoniais disponíveis que a administração pode submeter a um juízo arbitral, resta evidente que tais direitos também podem, por óbvio, ser objeto de medidas para a busca de uma solução consensual.

A lei de mediação (lei 13.140/15) aprofundou a possibilidade de ajustes negociais por parte da Administração Pública, cogitando, em seu art. 32, da criação de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, inclusive, nos termos do respectivo parágrafo quinto, para “a prevenção e a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares”.

Também no campo das atividades de gestão e de controle se pode verificar a valorização das soluções consensuais. É o que se vê, por exemplo, também, no artigo 26 da LINDB5 (com a redação trazida pela lei 13.655/18), que autoriza,“Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”, a autoridade administrativa a “celebrar compromisso com os interessados”, necessariamente ouvido o órgão de orientação jurídica competente e eventualmente levando-se a questão ao crivo de audiência pública. E não é banal que dispositivo com tal amplitude tenha inserido exatamente na lei que regula, em estatura legal, a própria aplicação do Direito nacional, dela se devendo extrair vetores exegéticos das normas em geral.

Ora, mesmo no campo da desapropriação, onde claramente se percebe com maior acuidade uma imperatividade do Poder Público, que, detentor do monopólio legítimo do uso da violência, pode inclusive se valer de manu militari para atender o interesse público, a lei 13.867/19, veio valorizar a fase administrativa, impondo um procedimento em que está subjacente a priorização do diálogo com o expropriado, na forma do artigo 10-A que foi acrescido ao Decreto-lei 3.365/41. Além disso, a referida lei aprofundou a valorização da consensualidade no campo do procedimento expropriatório, ao prever também a possibilidade de submissão do tema à mediação e à arbitragem (ainda que, acertadamente, não as estabeleça como obrigatórias), conforme art. 10-B do mesmo Decreto-lei 3.365/41.

A NLGLC - Nova lei Geral de Licitações e Contratos, a lei 14.133/21 – que tem a pretensão de ser um verdadeiro Código Nacional de Compras Públicas, regulamentando não só os processos licitatórios e as contratações, como também o controle (interno e externo) sobre tais eventos - também reforça a possibilidade da adoção de soluções concertadas sobre direitos disponíveis, prevendo expressamente regras nesse sentido, indo na esteira do CPC/2015, da lei 13.129/15 e, claro, da LINDB. Tais soluções se encontram disciplinadas no capítulo XII da lei 14.133/21, tendo o caput do art. 151 estabelecendo expressamente que poderão ser utilizados nas contratações da Administração Pública “meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”.

Por fim, a lei 14.230/21 expressamente permitiu a celebração de acordo de não persecução civil, o que reforça o caráter consensual que vai substituindo o caráter adversarial do Direito Administrativo. O novo art. 17-B da lei de improbidade administrativa, já com a interpretação que lhe foi conferida pelo STF nas ADIn 7042 e 7043, estabelece que o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas poderão, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil, desde que dele advenham como resultado, ao menos, o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.

Diante de todo esse verdadeiro ecossistema de consensualismo administrativo presente nas leis 13.105/15, 13.129/15, 13.140/2015, 13.655/2018, 13.867/2019, 14.133/21 e 14.230/21 já parece meio que evidente não haver motivos para alijar os Tribunais de Contas de vir a integrá-lo.

Mas, reforcemos tal convicção voltando ao CPC, para ressaltar que o seu art. 15, permitiu expressamente que, na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, suas disposições lhes sejam aplicadas supletiva ou subsidiariamente. A aplicação supletiva fica reservada aos casos de omissões/lacunas das legislações de regência dos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, ao passo que a aplicação subsidiária há de se dar quando a utilização das legislações de regência dos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos não conduzirem a um resultado adequado.

O CPC/2015 foi erigido ao patamar de sistema normativo fundamental e gera efeitos amplos em sede processual, graças à sua aplicação transsetorial em caráter supletivo e subsidiário. Assim, a codificação do processo civil é o tronco-mãe dos demais ramos do direito processual, eliminando lacunas e servindo de instrumento de coesão, unicidade e uniformização de todo o sistema processual.

Sendo o CPC a principal fonte do direito processual brasileiro, sua aplicação supletiva e subsidiária aos processos administrativos não deve ser encarada como algo episódico, raro ou remoto. Na verdade, a incidência supletiva e subsidiária do CPC aos processos administrativos deve ser encarada com a perspectiva de que, sendo o processo civil ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 1° do NCPC), deve ser ele o principal reflexo do texto constitucional em sede processual, devendo os demais ramos processuais se conformarem aos seus parâmetros.

Destarte, toda a carga de consensualismo presente no CPC teria sim, independentemente até mesmo do restante do ecossistema de normas, uma aplicação supletiva e subsidiária nos processos dos Tribunais de Contas.

Assim, por força do microssistema formado, dentre outras normas pelas leis 13.105/15, 13.129/15, 13.140/2015, 13.655/18, 13.867/19, 14.133/21 e 14.230/21, os Tribunais de Contas podem adotar soluções consensuais.

Mas, para encerrar essa análise quanto à possibilidade de os Tribunais de Contas poderem se valer de consensualismo para dirimir conflitos administrativos que envolvam seus jurisdicionados, é preciso resgatar a ideia, já consolidada no STF, de que, para assegurar às Cortes de Contas o adequado desempenho de suas atividades, é de ser reconhecer a existência de poderes implícitos, como por exemplo o poder geral de cautela.

Pois, bem considerando que o princípio da celeridade processual está previsto no art. 5º, LXXVIII, da CF/88 e garante a todos os cidadãos a razoável duração do processo e os meios para que a tramitação seja célere, parece-nos que a adoção de soluções consensuais permite que conflitos (e, portanto, processos) sejam dirimidos de forma mais célere, garantindo-se assim o adequado desempenho das atividades das Cortes de Contas, razão pela qual, o uso do consensualismo poderia inclusive ser extraído do âmbito dos poderes implícitos dos Tribunais de Contas.

Assim, podemos responder ao questionamento do título afirmando que os Tribunais de Contas podem adotar soluções consensuais em razão de eles estarem inseridos no microssistema do regime jurídico do consensualismo administrativo (em especial a LINDB e o CPC) e em razão de a solução consensual de controvérsias poder ser extraída dos seus poderes implícitos.

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1 César Caúla e Aldem Johnston Barbosa Araújo também trataram do tema no artigo “Exame de normas que enunciam o progressivo abandono do direito administrativo imperativo e adversarial” para a Revista do Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria Geral do Estado de Pernambuco, disponível em https://www.pge.pe.gov.br/app_themes/RPGE-PE12_MIOLO_COORD2.pdf acesso em 24/09/2024.

2 Outro texto bastante útil para ampliar o debate é o de Juarez Freitas para a RDA (Revista de Direito Administrativo) sob o título “Direito administrativo não adversarial: a prioritária solução consensual de conflito” e disponível em https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/72991/71617 acesso em 24/09/2024.

3 Para aprofundamento, sugerimos a leitura do artigo “Justiça multiportas: mediação, conciliação e arbitragem no Brasil” escrito por Leonardo Carneiro da Cunha para a Revista da ANNEP e disponível em https://www.academia.edu/43921743/Justi%C3%A7a_multiportas_media%C3%A7%C3%A3o_concilia%C3%A7%C3%A3o_e_arbitragem_no_Brasil acesso em 24/09/2024.

4 Ver, a propósito, https://www.hubermanlab.com/episode/dr-jamil-zaki-how-to-cultivate-a-positive-growth-oriented-mindset acesso em 24/09/2024.

5 Não necessariamente sobre o art. 26, mas sobre a LINDB como um todo, Egon Bockmann Moreira e Paula Pessoa Pereira, trazem uma lição extremamente válida: “Estamos diante de uma Nova LINDB para um novo Direito Público; não só um Direito Público atual (gestão, políticas públicas, consequencialismo, segurança), mas também prospectivo (das fontes legislativas estáticas aos modelos dinânimos estruturantes); acolhedor (cooperação, compreensão, respeito); seguro (estabilidade, previsibilidade, ausência de sobressaltos) e eficiente (resolver problemas e estabilizar soluções). Enfim, foi inaugurado o Direito Público sustentável para as próximas gerações. Cabe a nós prestigiá-lo e garantir sua efetividade.” (Moreira, Egon Bockmann; Pereira, Paula Pessoa. “Art. 30 da LINDB: O dever público de incrementar a segurança jurídica”. Revista de Direito Administrativo. Edic¸a~o Especial: Direito Pu'blico na lei de Introduc¸a~o a`s Normas de Direito Brasileiro – LINDB (lei no 13.655/2018). Rio de Janeiro, 2018. Páginas 243-274)

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

César Caúla
Procurador do Estado e sócio de Mello Pimentel Advocacia.

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