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Democracia - Substantivo feminino

Uma breve análise da representatividade feminina no Congresso Nacional.

24/9/2024

O Estado Democrático de Direito é entendido como aquele em que se aplica a garantia e o respeito às liberdades civis, aos direitos humanos e às garantias fundamentais através do estabelecimento de proteção jurídica. A CF/88, como observa o prof. José Afonso da Silva , “...se propôs instituir (criar) não “o” Estado Democrático, mas “um” Estado Democrático”, onde o artigo indefinido “um”  traduz função diretiva que não é a simples soma dos princípios do estado democrático tradicional, mas conduz a que sejam assegurados os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.”

Para Kelsen a democracia pressupõe o “compromisso” como elemento de sua própria natureza: “A discussão livre entre a maioria e a minoria é essencial à democracia porque esse é o modo de criar uma atmosfera favorável a um compromisso entre a maioria e a minoria, e o compromisso é parte da natureza da própria democracia.”  

Rompido o compromisso, irremediavelmente falida estará a democracia.

O respeito à pluralidade de ideias e pensamentos divergentes deve, através do compromisso a que Kelsen se refere, conduzir à possibilidade de convivência entre os diferentes interesses da sociedade.

O Estado Democrático de Direito traduz a busca de uma sociedade livre, justa e solidária, onde o poder emane do povo, formado pelo conjunto de cidadãos – aqueles que têm capacidade de exercer os direitos políticos. 

O conceito de cidadão, porém, evoluiu através dos séculos. Em 1881, embora o Brasil contasse com mais de 12 milhões de habitantes, somente 150 mil homens estavam aptos a participar da vida política.

O fato é que o reconhecimento da mulher como cidadã foi precedida de muitas lutas, que começaram a dar alguns resultados nas primeiras décadas do século XX, mas ainda hoje, em pleno século XXI, há um longo caminho a ser percorrido.

Curioso notar, porém, que a mulher não esteve completamente ausente da política no decorrer dos séculos, embora em número infinitamente menor do que os homens. 

Nos regimes autocráticos, especialmente nas monarquias, a mulher esteve presente, mesmo que em proporção significativamente inferior ao número de homens. Para exemplificar basta que citemos algumas poucas personagens históricas que assim o comprovam, como Cleópatra, Elizabeth I, Diane de Poitiers, Izabel de Castela, e tantas outras, sem falarmos na intensa atividade das mães e esposas dos monarcas nas cortes absolutistas, como foi o caso de Catarina de Médici. 

A hereditariedade era fator determinante de acesso ao poder nas monarquias, e nelas identificamos com maior frequência a figura feminina na atividade política e nas questões de Estado. 

No Brasil, a Princesa Isabel, primeira Senadora do país por determinação expressa da Constituição de 1824, foi quem promulgou a lei Imperial 3.353, de 13/5/88 – a “lei Áurea”.

Com o advento da revolução francesa e o resgate dos regimes democráticos, iniciou-se a luta pela participação da mulher na política. Este movimento de emancipação feminina foi liderado inicialmente por mulheres aristocratas. 

No Brasil a primeira tentativa de conceder à mulher o direito ao voto foi em 1831. À época, José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Alves Branco, o Visconde de Caravelas, propuseram conceder às viúvas e às mães de família o direito ao voto. A proposta, como sabemos, não logrou êxito.

Foram necessárias mais de cinco décadas para que este cenário começasse a apresentar alguma alteração. Foram mulheres das classes média e alta, algumas filhas de políticos e intelectuais da sociedade brasileira que inicialmente lideraram a luta pelos direitos políticos da mulher.  

O voto feminino no Brasil foi implantado apenas em 1932, por ocasião da edição do decreto de Getúlio Vargas que instituiu o Código Eleitoral Provisório, prevendo o direito às mulheres de votarem e serem votadas. Este diploma, porém, trazia restrições ao voto feminino. Poderiam votar as mulheres casadas, desde que autorizadas pelos maridos, e as viúvas e solteiras, desde que tivessem renda própria.

As Constituições brasileiras promulgadas após 1932, diferentemente das duas primeiras cartas nacionais, trouxeram o vocábulo “mulher” em seu texto. A CF/34 ratificou o direito ao voto feminino, avançando no sentido de eliminar algumas das restrições originalmente previstas no Código Eleitoral Provisório.

Embora as Constituições precedentes trouxessem o vocábulo “mulher” em alguns dispositivos, foi somente em 1988 que houve a efetiva equiparação entre homens e mulheres, explicitada no inciso I de seu art. 5º que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. 

A igualdade de direitos e deveres, independente de gênero, está finalmente assegurada através de normas constitucionais de natureza propositiva e eficácia imediata. Resta-nos vê-las impregnadas no dia a dia da sociedade brasileira.

1. A presença feminina no parlamento

A CF/34 trouxe avanços significativos no que tange ao reconhecimento da mulher cidadã. Além de alçar o voto feminino mesmo que condicionalmente ao “status” de direito constitucional, eliminou as restrições previstas pelo Código Eleitoral da época, consagrando à mulher novas prerrogativas na participação política nacional.

Naquele mesmo ano foi eleita Carlota Pereira de Queiroz, a primeira deputada Federal do Brasil, que exerceu seu mandato até 1937, quando Getúlio Vargas fechou o parlamento, instituindo o Estado Novo, situação que perdurou até 1946. 

Médica e escritora, Carlota dedicou seu mandato à defesa das mulheres e das crianças. Em 13/3/34 proferiu discurso que muito revelou sobre sua atuação política. Transcrevemos abaixo breves trechos de seu pronunciamento: 

“Além de representante feminina, única nesta assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas. (…)As condições financeiras da família exigiram da mulher nova adaptação. Através do funcionalismo e da indústria, ela passou a colaborar na esfera econômica. E, o resultado dessa mudança, foi a necessidade que ela sentiu de uma educação mais completa. As moças passaram a estudar nas mesmas escolas que os rapazes, para obter as mesmas oportunidades na vida. E assim foi que ingressaram nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse pelas questões políticas e administrativas, pelas questões sociais. O lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do que o fruto dessa evolução.” 

Na Câmara dos deputados houve um significativo aumento da presença feminina na Câmara dos deputados a partir da assembleia nacional constituinte, eleita em 1986.

Já sob a vigência da lei 9504/97, que indicou a reserva, mas não obrigatoriamente o preenchimento das vagas, de 30% das candidaturas dos partidos ou coligações para cada sexo em eleições proporcionais nota-se que não houve crescimento, ao contrário, houve diminuição da representação feminina na 51ª legislatura, cujo sufrágio se deu 1998.

A presença feminina no Senado Federal foi bem mais tardia.  

Eunice Michiles foi a primeira senadora da república. Professora amazonense, eleita assumiu a vaga em 1979, foi recebida por seus pares com chocolates e flores, o que não significou que não encontraria ali uma resistência velada. Eunice tinha, no entanto, plena consciência da luta que se iniciava, conforme se denota de trecho do discurso que proferiu em sua posse: “...Como primeira senadora, sinto os olhares de milhões de mulheres na expectativa de que lhes saiba interpretar as reivindicações. O CC nos coloca ao nível do índio, da criança e do débil mental. Somos fruto de uma cultura patriarcal e machista, onde a mulher vive à sombra do homem e rende obediência ao pai, ao marido ou, na falta deste, ao filho mais velho. Em 1979, temos muito a melhorar...” 

Entre 1979 e 1991 outras cinco mulheres assumiram a cadeira de senadora, mas na condição de suplentes. 

Nas legislaturas que se seguiram a presença feminina cresceu. 

No Senado chama a atenção a significativa redução da representação feminina a partir de 2015. Também causa estranheza a completa ausência feminina durante os trabalhos da assembleia nacional constituinte 87/88. Nesta Casa a representatividade feminina também é pouco mais do que 18%.

2. As cotas partidárias

A busca pela igualdade faz com que o Direito busque formas de minimizar as desigualdades através da instituição de políticas compensatórias, destinadas a estabelecer um equilíbrio social justo onde todos os indivíduos tenham assegurados os mesmos direitos. Uma das maneiras pelas quais se busca atingir tal desiderato é através das chamadas leis de ações afirmativas, dentre as quais se destacam aquelas que cuidam das políticas de cotas de participação social. 

Em 1995, na IV conferência mundial da mulher em pequim, o Brasil foi signatário da resolução da ONU - Organização das Nações Unidas que recomendou ações afirmativas para acelerar a diminuição das defasagens de gênero na participação do poder político, ratificado pelo Brasil em 2002 através do decreto 4.377.

No mesmo ano foi aprovada a lei 9.100/95, projeto de iniciativa de Marta Suplicy, então deputada Federal, e onde se previu que 20% das vagas destinadas aos candidatos a vereador deveriam ser reservadas às candidaturas femininas. 

A inexigência de preenchimento das vagas reservadas à candidaturas femininas pela lei 9.504/97 resultou num decréscimo do número de deputadas federais eleitas no pleito de 1998. Das 40 deputadas federais eleitas para 50ª legislatura, apenas 37 foram eleitas para a legislatura subsequente.

O entendimento era de que se um partido podia indicar 100 candidatos e indicasse apenas 70, e estes fossem todos homens, não estaria ferido o dispositivo legal de reserva das vagas, não configurando ilegalidade, pois a previsão era apenas a reserva percentual das vagas, e não obrigatoriamente o seu preenchimento.

A efetiva correção legal das distorções verificadas na implementação das candidaturas femininas se deu através da lei 12.034/09, que finalmente tornou obrigatório o preenchimento de 30% das candidaturas por mulheres. Mesmo com a determinação legal em vigor, a letra da lei não foi suficiente para evitar desvios e fraudes relacionados às candidaturas femininas. Surgiram as candidaturas “laranjas”, onde mulheres eram registradas como candidatas apenas para garantir o preenchimento das vagas, com inúmeros relatos de distribuição irregular de verbas partidárias destinadas às campanhas eleitorais.

Na reforma política de 2015, consolidada pela lei 13.165, tornou-se obrigatória a destinação de recursos partidários para candidaturas femininas, além da criação de incentivos para o investimento em suas campanhas. O TSE - Tribunal Superior Eleitoral obrigou que 5% dos recursos partidários fossem obrigatoriamente destinados às candidaturas femininas.

Com a obrigatoriedade do preenchimento das vagas e a destinação de recursos partidários às mulheres, houve um expressivo crescimento na atual legislatura, que tem a maior representatividade feminina já registrada na Câmara dos deputados, mas ainda assim representa pouco mais do que 18% de sua composição.

Hoje as mulheres representam cerca de 52% da população brasileira e sua participação política nas casas do Congresso Nacional é inferior a 19%.

Este breve relato permite as seguintes considerações:

  1. O estabelecimento de políticas compensatórias destinadas a ampliar a participação feminina na política, especialmente a partir da última década do século XX, não trouxe de imediato os resultados esperados;
  2. O voto feminino não recai, obrigatoriamente, sobre candidaturas femininas, nem vice-versa;
  3. Entre o pleito de 2010 e 2019, o aumento no número de deputadas federais foi inexpressivo, tendo registrado um aumento apenas no pleito de 2022, ainda assim pequeno se considerado que 52% da população brasileira é de mulheres. No Senado não houve qualquer mudança significativa;
  4. A participação feminina, especialmente nos órgãos diretivos dos partidos políticos é, numericamente, inexpressiva;
  5. Embora a igualdade entre gêneros seja preceito constitucionalmente estabelecido, a condição social e política da mulher brasileira ainda enfrenta inúmeras batalhas no combate à desigualdade. 

Há um longo caminho a percorrer para alçar a mulher à condição de igualdade pretendida pela CF/88, especialmente naquilo que tange à sua atuação política.

Uma coisa, porém, permanece inalterada: Democracia é substantivo feminino!

Carmen Valio
Advogada especializada em Direito Constitucional e Legislativo, Assessora Jurídica ALESP (30 anos), participou da Comissão de Reforma Política da OAB-SP. membro do CONJUR-FIESP e do CSD-Fecomércio.

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