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Tribunal multiportas: A transação tributária de créditos na falência como política pública eficiente na redução da litigiosidade

A transação tributária surge como uma solução inovadora para a litigiosidade nos processos falimentares, promovendo consensualidade entre União, Estados e credores.

20/9/2024

O conceito “Tribunal Multiportas” foi cunhado pelo Professor da Faculdade de Direito de Harvard, Frank E. A. Sander, como um modelo de uma “instituição inovadora que direciona os processos que chegam a um tribunal para os mais adequados métodos de resolução de conflitos, economizando tempo e dinheiro tanto para os tribunais quanto para os participantes ou litigantes”1.

No Brasil, desde 2012 as pesquisas sobre o tema se intensificaram, em busca de construir uma metodologia que possa conferir maior eficiência aos processos judiciais, em especial à cobrança dos créditos tributários retratada no relatório “Justiça em Números 2023”, (ano-base 2022), do CNJ2, com resultados absolutamente alarmantes, ante a taxa de congestionamento de 88,4% e o tempo médio de tramitação das execuções fiscais de seis anos e sete meses. 

Já em 1966, o Código Tributário Nacional contemplou, no art. 156, inciso III, o método de autocomposição denominado “transação” como forma de extinção do crédito tributário. Todavia, o dogma da legalidade estrita e o princípio da indisponibilidade do interesse público, durante um longo período, afastaram a possibilidade de se imaginar um modelo de consensualidade para o Poder Público.

Em 2002, o STF confirmou o princípio da eficiência na gestão pública como limite técnico que orienta o princípio da indisponibilidade do interesse público. Desde então, o CNJ, premido também pela agenda da ONU para 2030, em especial no que tange ao objetivo 16 – “Paz, Justiça e Instituições Eficazes” -, tem trabalhado enfaticamente no desenvolvimento de amplas modalidades de solução para os conflitos intersubjetivos de interesses. 

Em seus estudos sobre o tema “multiportas”, Freddie Didier Jr. e Leandro Fernandez3, apresentam como um dever do Poder Público a estruturação de procedimentos em condições favoráveis à autocomposição, não só porque permitem alcançar soluções mais adequadas, como também porque:

A evolução da atuação de cada uma das portas integrantes do sistema e a interação entre elas promovem recíprocas influências, como o desenvolvimento de novos arranjos institucionais e o trânsito de técnicas para a solução de problemas jurídicos. Isto é, a interação, direta ou indireta, entre portas de acesso à justiça influencia a configuração e o modo de operar de cada uma dessas portas e, de maneira geral, do próprio sistema.

Os novos aspectos de estrutura e dinâmica do sistema geram, em um movimento cíclico, novas formas de organização e atuação de cada uma das portas de acesso à justiça. O sistema, como se nota, torna-se progressivamente mais complexo, característica inerente aos sistemas auto-organizados.

A autocomposição, portanto, mostra-se, portanto, como motor de propulsão para o desenvolvimento das instituições, na medida em que possibilita transparência, diálogo e cooperação entre as partes, na maximização dos interesses. 

No cenário tributário, a autocomposição ganhou contornos legais a partir da MP 899/19, convertida na lei 13.988/20, que, regulamentando o art. 170 do CTN, desenhou dois modelos para a transação: 1) por adesão; e 2) por proposta individual. 

Em interessante artigo publicado por ocasião do I Congresso Nacional da Dívida Ativa, as Procuradoras da Fazenda Estadual e Nacional, Fernanda Gonçalves Braga e Paula Albuquerque Armstrong Sayão4, destacam que a noção de eficiência econômica de Pareto, como também da cooperação presente na Teoria dos Jogos, foram expressamente incorporadas no art. 3º da lei 13.988/20, que enfatiza que a autocomposição na transação dos créditos da União busca acolher e maximizar os interesses do Poder Público e do particular, pessoa jurídica ou física. 

Pois bem, e esse é o ponto de nosso artigo, na falência esses objetivos ficam claramente abalados, já que a consensualidade não traz impacto direto somente para duas partes. Não raro, em um cenário de múltiplos jogadores, interesses que se contrapõem, podem também se apresentar alinhados. Poderes Públicos – União, estados e municípios -, credores da pessoa jurídica falida e até mesmo seus antigos sócios, são atores em um palco com uma estrutura de consensualidade muito mais tênue, ante as particularidades dos inúmeros jogadores envolvidos. 

Dentre outras, essa é uma das razões para que a realidade “multiportas” nos processos de falência não tenha alcançado resultados expressivos. E os números falam por si. Em quatro anos da lei de transação tributária, quatro acordos de transação por proposta individual de massa falida foram celebrados5 com a União Federal. 

Uma das grandes dificuldades para se alcançar um acordo de transação dos créditos da União nos cenários de massas falidas, era a até então ausência de definição legal dos instrumentos adequados para a instrumentalização da capacidade de pagamento da massa falida. 

A capacidade de pagamento, vulgarmente denominada CAPAG ou rating, é o instrumento que a portaria PGFN/ME 6.757/22, que regulamenta a transação na cobrança de créditos da União e, com destaque, traz os parâmetros para a transação por proposta individual do contribuinte, cunhou para definir os parâmetros de benefícios que poderiam ser alcançados no acordo a ser celebrado (art. 24).

A inexistência de critérios legais para a definição da CAPAG da massa falida praticamente inviabilizou a estrutura de cooperação e consenso que se apresenta como vetor necessário para a negociação, dentro de um contexto que,  como enfatizaram as Procuradoras da Fazenda Estadual e Nacional, Fernanda Gonçalves Braga e Paula Albuquerque Armstrong Sayão, no artigo já citado, tem explicação racional, muito além de justificativas meramente morais.

Nesse contexto, celebramos a publicação, no dia 16 de setembro de 2024, da Portaria PGFN MF 1.457/24 que, no art. 49, contempla expressamente critérios para a definição da capacidade de pagamento de massas falidas.

Os critérios retratados no art. 49 foram negociados, com ampla demonstração de sua eficiência, no acordo disponibilizado pela Procuradoria da Fazenda Nacional no processo judicial da massa falida da Laginha. 

Fruto de ampla cooperação, os critérios se apresentam como resultado de negociações que se estabeleceram em meses de trabalho árduo de todos os envolvidos, com apresentação de diversos cenários possíveis.

O modelo desenvolvido para a negociação concreta se mostrou capaz de superar as dificuldades e se apresentar como aliado para a autocomposição em cenários adversos, como os de falência, tanto que sua tradução foi apresentada no art. 49 da Portaria MF 1.457/24. 

Sempre em evolução constante, característica dos sistemas auto-organizados, como ensina Didier, a transação nos créditos da União tem se mostrado com política pública eficiente na redução da litigiosidade, na da recuperação dos créditos públicos, na customização de acordos em que as partes se apresentam em grau de paridade, com redução de tempo e desgaste, não apenas físico e econômico, como também emocional.

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1 Tribunal Mul,portas: inves,ndo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil / Organizadores: Rafael Alves de Almeida, Tania Almeida, Mariana Hernandez Crespo. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. P. 27.

2 CNJ, Relatório de Jus,ça em Números 2023. Disponível em jus,ca-em-numeros-2023.pdf (cnj.jus.br) 3 “Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à cole,vidade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ul,mação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fá,co-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido”. (RE 253885, Primeira Turma, Ministra Ellen Gracie, DJe de 21/06/2002)

3 DIDIER JR., F.; FERNANDEZ, L. A JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO SISTEMA BRASILEIRO DE JUSTIÇA MULTIPORTAS. Revista da AJURIS - QUALIS A2, [S. l.], v. 50, n. 154, p. 145–184, 2023. Disponível em: hqps://revistadaajuris.ajuris.org.br/index.php/REVAJURIS/ar,cle/view/1407. Acesso em: 18 set. 2024.

4 O ar,go tem o stulo “Consensualidade no Direito Tributário e Transação: Teoria da Decisão Negocial Além da Barganha” e foi disponibilizado no endereço eletrônico hqps://www.gov.br/pgfn/pt-br/centralde-conteudo/publicacoes/i_congresso_nacional-da_divida-a,va_m.pdf

5 Dados extraídos dos acordos disponibilizados no endereço eletrônico: Termos de Transação Individual — Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (www.gov.br)

Eugênio Aragão
Advogado, Subprocurador-Geral da República aposentado; Ex-ministro da Justiça.

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