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A anonimidade e a ausência de intermediários nas transações DeFi: Avaliação jurídica tributária

As transações em plataformas DeFi representam um desafio estrutural para os sistemas tributários tradicionais, que foram construídos com base na centralização e no controle dos intermediários financeiros. Diante da ausência desses intermediários e da natureza pseudônima das operações, é imprescindível que o arcabouço jurídico-tributário evolua para acompanhar essas inovações tecnológicas.

17/9/2024

As DeFi - Finanças Descentralizadas representam uma inovação no ecossistema financeiro, proporcionando a execução de transações financeiras diretamente entre pares (peer-to-peer – P2P), sem a necessidade de intermediários tradicionais, como bancos ou corretoras. Estruturado sobre a tecnologia blockchain, o DeFi emprega contratos inteligentes (smart contracts) que automatizam e garantem a execução dos termos previamente estabelecidos entre as partes.

No âmbito jurídico, o DeFi desafia conceitos estabelecidos no Direito Tributário, especialmente em relação à identificação dos sujeitos passivos da obrigação tributária e ao cumprimento das obrigações acessórias. A arquitetura descentralizada subverte a tradicional figura do intermediário financeiro, responsável, em muitos casos, pela retenção e recolhimento de tributos. Essa ausência altera profundamente a dinâmica da fiscalização, já que a execução das transações financeiras se dá de maneira automatizada e, muitas vezes, pseudônima.

Entre as características mais relevantes do DeFi, destacam-se a transparência, a interoperabilidade e a descentralização. A transparência, proporcionada pelo uso de blockchains públicas, permite que todas as transações sejam visíveis e auditáveis. Todavia, essa transparência, paradoxalmente, contrasta com o pseudonimato dos usuários, que são identificados unicamente por endereços criptográficos, sem qualquer vinculação necessária a uma identidade física ou jurídica, o que cria barreiras para a fiscalização tributária.

A interoperabilidade do DeFi refere-se à capacidade de diferentes plataformas descentralizadas se comunicarem e realizarem operações de maneira integrada, o que amplia a complexidade do monitoramento das transações, especialmente quando estas se realizam em múltiplas jurisdições. A descentralização, por sua vez, elimina a figura do intermediário financeiro central, transferindo a responsabilidade pela conformidade tributária diretamente para os usuários. Este modelo descentralizado desafia as normas tributárias tradicionais, que dependem de intermediários centralizados para garantir a retenção na fonte e o reporte das transações.

Contexto Econômico Global do DeFi

O mercado de finanças Descentralizadas tem crescido exponencialmente, com a capitalização de mercado dos tokens DeFi já ultrapassando 87 bilhões de dólares. Tal crescimento reflete não apenas o apelo financeiro dessa tecnologia, mas também os desafios regulatórios que surgem com sua adoção em massa. As jurisdições ao redor do mundo têm demonstrado dificuldades em adaptar suas normativas fiscais para abarcar essa nova realidade, dada a ausência de uma base territorial fixa para as operações e a dificuldade em rastrear a identidade dos contribuintes.

Em termos tributários, a globalização das operações DeFi evidencia um potencial significativo de evasão fiscal, uma vez que os usuários podem transacionar livremente entre diversas jurisdições sem a necessidade de se submeter às regras locais de reporte fiscal. Nesse sentido, a ausência de mecanismos robustos de controle e supervisão aumenta o risco de descumprimento das obrigações tributárias por parte dos participantes deste ecossistema, especialmente em países onde a regulação ainda não alcançou maturidade.

Normas Tributárias Aplicáveis

O arcabouço normativo tributário aplicável às DeFi está em constante desenvolvimento, refletindo a complexidade da matéria. A aplicação das normas tributárias tradicionais a este novo ambiente digital exige adaptações significativas, tanto no que concerne aos conceitos doutrinários de base territorial, quanto na implementação de instrumentos fiscais adequados à realidade das transações descentralizadas.

A nível internacional, a regulação tributária das finanças Descentralizadas encontra-se em estágios variados de desenvolvimento. Países como os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo, adotaram políticas fiscais que buscam abarcar as transações com criptoativos, ainda que, em muitos casos, essas políticas se revelem insuficientes para lidar com as especificidades do DeFi. A Internal Revenue Service (IRS), nos Estados Unidos, requer que os contribuintes reportem todas as transações envolvendo criptoativos, sendo que a falha em fazê-lo pode acarretar penalidades severas. No entanto, a descentralização inerente ao DeFi dificulta a obtenção de informações precisas sobre os usuários e suas respectivas atividades financeiras.

O Reino Unido, por meio do HM Revenue and Customs (HMRC), exige que as transações com criptoativos sejam tratadas para fins fiscais como propriedade e sujeitas a imposto sobre ganhos de capital. Todavia, as plataformas DeFi, muitas vezes, não fornecem a documentação necessária para o cumprimento dessas obrigações, dada a ausência de um intermediário que centralize e reporte tais informações.

em países como a China e a Índia, a abordagem é mais restritiva. A China, por exemplo, proibiu a negociação de criptoativos, enquanto a Índia propôs uma taxação punitiva de 30% sobre os ganhos com criptoativos, o que tem causado uma diminuição da atividade formal neste setor. Nessas jurisdições, a tentativa de regular o DeFi via proibições ou políticas punitivas acaba por incentivar o uso de meios anônimos e descentralizados para a realização de transações, o que agrava os desafios de fiscalização.

No Brasil, a Receita Federal, por meio da instrução normativa RFB 1888/19, regulamentou a obrigação de reporte de transações com criptoativos realizadas por exchanges domiciliadas no país. Tal norma estabelece a obrigatoriedade de reportar à Receita Federal todas as transações realizadas com criptoativos que excedam o valor de R$ 30.000,00 mensais, desde que realizadas por meio de exchanges domiciliadas no Brasil. Contudo, tal norma revela-se insuficiente para lidar com o cenário das DeFi, uma vez que estas operações são, por natureza, realizadas fora das plataformas centralizadas. Recentemente, a Portaria RFB 427/24 instituiu um Grupo de Trabalho para analisar formas de fiscalizar as transações com criptoativos e DeFi, evidenciando o reconhecimento, por parte das autoridades brasileiras, da necessidade de adaptação regulatória frente ao crescimento desse mercado.

A comparação entre essas jurisdições demonstra a falta de uniformidade na abordagem regulatória e tributária aplicada ao DeFi, sendo que os desafios de conformidade fiscal permanecem significativos. Enquanto alguns países buscam integrar as transações DeFi aos seus sistemas fiscais existentes, outros optam por abordagens mais restritivas, o que gera insegurança jurídica e facilita a evasão fiscal. A ausência de uma coordenação internacional efetiva sobre a tributação de criptoativos e DeFi agrava ainda mais esses desafios, criando um ambiente propício para o deslocamento das atividades econômicas para jurisdições com menor fiscalização.

Essa realidade reforça a necessidade de um diálogo multilateral para a criação de normas fiscais que abranjam as especificidades do DeFi e garantam a sua conformidade com os princípios tributários universais. Sem a implementação de mecanismos eficazes de monitoramento e reporte, a tributação no ambiente DeFi continuará sendo um desafio monumental para as administrações fiscais ao redor do mundo.

Impacto da Anonimidade nas Transações DeFi

A distinção entre pseudonimato e anonimato reveste-se de relevância jurídica de primeira ordem, especialmente no que tange à responsabilização tributária dos sujeitos passivos. O anonimato, entendido como a impossibilidade absoluta de se estabelecer qualquer vínculo entre as transações realizadas e a identidade dos usuários, é extremamente raro no ambiente DeFi, que, por suas características técnicas, opera predominantemente sob o pseudonimato.

O pseudonimato, por sua vez, implica a utilização de identificadores criptográficos — chaves públicas — que permitem a execução de transações sem que os dados pessoais do usuário sejam diretamente expostos. Todavia, isso não significa que o pseudonimato seja equivalente ao anonimato absoluto, pois, embora as transações possam ocorrer de forma dissociada de dados pessoais, é tecnicamente viável rastrear a atividade de uma determinada chave pública ao longo da blockchain. Ferramentas de análise de blockchain têm sido utilizadas por autoridades fiscais e órgãos de enforcement para estabelecer correlações entre endereços e identidades reais, especialmente quando combinadas com informações adicionais obtidas por intermediários centralizados (exchanges centralizadas que realizam procedimentos de know your customer - KYC).

Do ponto de vista jurídico-tributário, essa distinção entre anonimato absoluto e pseudonimato é central para o enquadramento da responsabilidade fiscal. Embora o anonimato completo crie uma barreira quase intransponível à identificação do sujeito passivo, o pseudonimato, embora dificulte a fiscalização, não a impede por completo. No entanto, a capacidade de vincular uma chave criptográfica a uma pessoa física ou jurídica em tempo hábil permanece limitada, exigindo inovações legislativas e tecnológicas que permitam maior controle sem violar a privacidade dos usuários.

Um exemplo clássico das dificuldades impostas pelo pseudonimato e pela descentralização em plataformas DeFi é o uso de corretoras descentralizadas (DEX), que permitem a negociação de criptoativos diretamente entre usuários sem a intermediação de uma entidade central. Em tais plataformas, não há a imposição de procedimentos de verificação de identidade, e, consequentemente, as autoridades fiscais enfrentam obstáculos substanciais para rastrear e monitorar as operações realizadas.

Um estudo de caso que ilustra essas dificuldades pode ser encontrado no uso de pools de liquidez, onde os usuários depositam seus criptoativos em contratos inteligentes em troca de recompensas (comumente denominadas yield farming). Essas operações, realizadas de forma descentralizada e sem qualquer entidade responsável por reportar ao fisco, geram rendimentos significativos para os participantes. Todavia, sem uma estrutura centralizada para reportar tais ganhos, as autoridades fiscais dependem unicamente da autodeclaração voluntária por parte dos usuários, um modelo comprovadamente ineficaz diante do pseudonimato e da complexidade técnica envolvida.

Além disso, em jurisdições onde não há uma regulamentação específica que obrigue os participantes a relatar tais atividades, as dificuldades de fiscalização são ainda maiores. A ausência de intermediários centrais e a incapacidade de monitorar diretamente as transações realizadas nas plataformas descentralizadas agravam o cenário de evasão fiscal, uma vez que as autoridades fiscais não conseguem acessar dados críticos sobre o volume de transações e os ganhos obtidos pelos usuários.

O Papel dos Stablecoins e sua Relevância Tributária

Os stablecoins emergiram como um pilar essencial dentro do ecossistema DeFi, oferecendo uma solução para mitigar a volatilidade inerente aos criptoativos. No entanto, sua relevância vai além do equilíbrio de valor; stablecoins apresentam um desafio único para a regulamentação tributária devido à sua natureza híbrida entre ativos digitais e moedas fiduciárias. Ao serem lastreados em moedas fiduciárias, os stablecoins deveriam, em teoria, facilitar a aplicação de normas fiscais, permitindo uma avaliação mais clara da base de cálculo de impostos, como o imposto sobre a renda de ganhos de capital. Entretanto, a realidade prática revela que, em transações que utilizam stablecoins, especialmente em ambientes descentralizados, a ausência de intermediários e a fragmentação da responsabilidade tributária mantêm os desafios regulatórios. Em uma transação envolvendo stablecoins, o valor nominal pode ser estável, mas as operações subjacentes continuam sendo anônimas ou pseudônimas, dificultando a atribuição direta de responsabilidade tributária e a determinação da base de cálculo de tributos.

Ademais, a interoperabilidade dos stablecoins em múltiplas plataformas descentralizadas, associada ao fato de que muitos desses tokens são emitidos fora de jurisdições que exigem conformidade regulatória rigorosa, aumenta os obstáculos à sua tributação. Por exemplo, transações entre pares que envolvem grandes volumes de stablecoins podem ocorrer sem que as autoridades fiscais tenham qualquer visibilidade ou capacidade de fiscalizar adequadamente tais operações.

Mixers e Ferramentas de Privacidade: Obstáculos à Conformidade Fiscal

Ferramentas conhecidas como mixers ou tumblers adicionam um nível adicional de complexidade para a fiscalização tributária nas transações DeFi. Essas ferramentas são projetadas para ofuscar as transações na blockchain, misturando os criptoativos de diferentes usuários, dificultando o rastreamento dos fluxos de capital. O objetivo dessas tecnologias é garantir um maior nível de privacidade, mas, sob a ótica tributária, tais ferramentas constituem um claro impedimento à identificação dos sujeitos passivos e à correta apuração da base tributável.

Mixers são especialmente problemáticos na perspectiva da conformidade fiscal, pois eliminam a trilha de auditoria que seria essencial para as autoridades fiscais determinarem a origem e o destino dos criptoativos. Em jurisdições com regulamentações mais robustas, o uso de tais ferramentas pode ser considerado como uma prática evasiva, passível de sanções. No entanto, em um ambiente global e descentralizado, o uso de mixers e outras tecnologias de privacidade é difícil de ser controlado, pois opera fora do alcance da maioria das legislações nacionais.

A Ausência de Intermediários no DeFi: Desafios Fiscais

A ausência de intermediários coloca diretamente nos usuários a responsabilidade de cumprir as obrigações fiscais associadas às suas atividades financeiras. Sob o prisma do princípio da capacidade contributiva, que estabelece que a tributação deve ser proporcional à capacidade econômica do contribuinte, o modelo DeFi fragmenta o controle dessas atividades, dificultando a avaliação precisa dos rendimentos obtidos e, por conseguinte, a correta aplicação do tributo.

Em um cenário onde os usuários têm plena autonomia sobre suas transações, a falta de intermediários responsáveis pela retenção e recolhimento de tributos implica que a conformidade fiscal depende quase que exclusivamente da autodeclaração. Essa autonomia, por um lado, promove a independência financeira dos usuários; por outro, cria um cenário de autogestão tributária, que, em muitos casos, leva à subdeclaração de rendimentos ou até mesmo à total omissão de ganhos. Esse comportamento contraria a aplicação plena do princípio da capacidade contributiva, dado que a ausência de supervisão facilita a evasão fiscal e compromete a arrecadação estatal.

A descentralização no DeFi, ao remover a necessidade de intermediários financeiros tradicionais, desestrutura os mecanismos clássicos de arrecadação tributária, criando desafios substanciais para as administrações fiscais. Em um ambiente tradicional, a presença de instituições financeiras como bancos e corretoras serve como uma salvaguarda para o fisco, garantindo a retenção na fonte dos tributos devidos em determinadas operações financeiras. No DeFi, a descentralização elimina essa camada de controle, transferindo a totalidade da responsabilidade tributária para os indivíduos.

A consequência direta dessa descentralização é o aumento da complexidade para as autoridades fiscais monitorarem e rastrearem as transações financeiras realizadas nas plataformas DeFi. Sem uma entidade central para coletar e reportar informações fiscais, o fisco enfrenta uma barreira quase intransponível para garantir a correta tributação dos rendimentos auferidos em ambientes descentralizados. A perda de controle sobre a fiscalização das operações financeiras impacta negativamente a arrecadação tributária, uma vez que muitos contribuintes simplesmente não reportam suas atividades ou rendimentos obtidos.

Outrossim, a fragmentação dos sistemas DeFi, operando em múltiplas jurisdições e utilizando diferentes tokens e criptomoedas, dificulta ainda mais a aplicação de normas fiscais nacionais, aumentando o risco de planejamento tributário agressivo e evasão fiscal transfronteiriça. No modelo tradicional, intermediários como corretoras e bancos centralizam a informação e realizam a retenção e o repasse dos tributos devidos ao fisco. No entanto, no DeFi, essa responsabilidade é difusa entre os próprios usuários, que muitas vezes não possuem o conhecimento técnico ou jurídico necessário para cumprir com suas obrigações tributárias.

Essa fragmentação gera um cenário de incerteza regulatória e ineficiência fiscal, onde a multiplicidade de partes envolvidas em uma única transação dificulta a correta identificação do sujeito passivo da obrigação tributária e, consequentemente, a aplicação dos tributos devidos. Além disso, a natureza global e descentralizada das plataformas DeFi torna a fiscalização ainda mais complexa, pois as autoridades fiscais têm dificuldade em rastrear e monitorar as transações realizadas em múltiplas jurisdições, exacerbando as lacunas na arrecadação e no cumprimento das obrigações fiscais.

Princípios Tributários no Ambiente DeFi

O princípio da territorialidade, um dos pilares tradicionais do Direito Tributário, estabelece que a incidência tributária se dá em razão de um vínculo geográfico entre o fato gerador e a jurisdição fiscal competente. Essa regra pressupõe a existência de uma fronteira delimitada, seja física ou jurídica, onde a atividade econômica ocorre, o que permite a aplicação de tributos de forma eficaz e clara.

As operações DeFi são realizadas em blockchains públicas e descentralizadas, nas quais não existe um "território" no sentido convencional. Nessas plataformas, a infraestrutura tecnológica e as transações financeiras podem se dar simultaneamente em múltiplas jurisdições, sem que exista um ponto físico de controle ou de registro. Por exemplo, contratos inteligentes operam de maneira automática em redes globais como Ethereum, com nós distribuídos ao redor do mundo. Esse fator de descentralização afeta diretamente a capacidade dos Estados de aplicar regras tributárias baseadas no critério geográfico.

Outro aspecto que agrava essa complexidade é a ausência de intermediários tradicionais, como mencionei anteriormente. O sujeito passivo da obrigação tributária pode estar operando a partir de qualquer lugar no mundo, e as plataformas DeFi não têm obrigação de reportar essas operações às autoridades locais, o que fragiliza a aplicação do princípio da territorialidade.

Diante desse cenário, surgem propostas de adaptação do princípio da territorialidade para o ambiente digital, como a adoção do critério da residência fiscal do contribuinte, em vez do local de realização da operação. Essa abordagem, no entanto, encontra obstáculos, como a mobilidade digital dos contribuintes, que podem adotar técnicas de evasão ao transferirem suas operações para jurisdições com menor carga tributária ou maior proteção à privacidade. Ademais, a falta de uma regulamentação uniforme entre as jurisdições favorece o chamado arbitragem regulatória, onde os contribuintes exploram lacunas legais entre diferentes sistemas fiscais.

Princípio da Capacidade Contributiva em Transações Descentralizadas

O princípio da capacidade contributiva, basilar na tributação, sustenta que a imposição de tributos deve ocorrer de maneira proporcional à capacidade econômica do contribuinte, ou seja, quem possui maior riqueza deve contribuir em maior proporção. Esse princípio é facilmente aplicado em sistemas financeiros centralizados, onde a coleta de informações é feita por intermediários

financeiros, e o fisco tem acesso a relatórios claros sobre a capacidade econômica de cada contribuinte.

No ambiente DeFi, os usuários operam sob pseudônimos, utilizando endereços criptográficos que não estão vinculados diretamente a informações pessoais. Essa dissociação entre identidade real e atividade econômica impede que as autoridades fiscais identifiquem de forma eficaz quem está realizando as transações e qual é a sua real capacidade contributiva.

Adicionalmente, a ausência de intermediários remove uma camada importante de controle, que no sistema financeiro tradicional é responsável pela retenção de tributos na fonte e pelo reporte das atividades financeiras às autoridades fiscais. No DeFi, os usuários têm total controle sobre suas transações, o que lhes permite ocultar ou subreportar seus ganhos de forma relativamente fácil. Isso cria um ambiente de autogestão fiscal, onde o cumprimento das obrigações tributárias depende da boa-fé dos contribuintes, um modelo que, como a experiência demonstra, é altamente suscetível à evasão.

Ademais, a própria natureza das transações DeFi, que frequentemente envolvem a utilização de ativos digitais voláteis ou de difícil avaliação, como tokens e yield farming, complica ainda mais a tarefa de determinar a real capacidade contributiva. Sem uma base de cálculo claramente definida, as autoridades fiscais enfrentam obstáculos consideráveis para aplicar a tributação de maneira proporcional. Isso é especialmente relevante em atividades que geram retornos em múltiplos ativos digitais de forma automatizada, como em protocolos de empréstimos descentralizados e pools de liquidez, onde os usuários podem auferir rendimentos significativos sem que haja uma estrutura centralizada para reportar tais ganhos ao fisco.

Princípio da Legalidade: Ajustes Necessários na Legislação Tributária

O princípio da legalidade, consagrado no art. 150, I da CF/88, assegura que nenhum tributo será instituído ou aumentado sem que haja previsão legal expressa. Esse princípio tem como objetivo garantir a segurança jurídica e a previsibilidade no âmbito tributário, resguardando os contribuintes contra a arbitrariedade do poder público.

Atualmente, a legislação tributária vigente foi criada para regular transações em um ambiente econômico tradicional, onde há intermediários, registros e transparência nas operações. O DeFi, por sua vez, opera fora dessas estruturas convencionais, o que cria uma lacuna legislativa considerável.

A ausência de normas específicas sobre a tributação de transações descentralizadas pode levar à interpretação de que essas operações estão, de certo modo, isentas de tributação, pois não há previsão legal clara que regule a forma como os tributos devem ser aplicados nesse ambiente. Isso abre espaço para a elisão fiscal, onde contribuintes exploram essas lacunas para evitar o pagamento de tributos devidos.

Para que o princípio da legalidade seja respeitado, é necessário que o legislador adote medidas proativas para atualizar o ordenamento jurídico tributário. Uma possível solução seria a criação de normas que estabeleçam o dever de reporte voluntário das transações realizadas em plataformas DeFi, bem como a instituição de mecanismos para a aplicação da tributação sobre ganhos de capital obtidos através de criptoativos. Também seria possível a codificação de regras tributárias diretamente nos contratos inteligentes, de modo que o cumprimento das obrigações fiscais ocorra de maneira automática, independentemente da vontade do contribuinte.

Regulação Internacional

EUA: A IRS - Internal Revenue Service exige que todos os rendimentos derivados de transações envolvendo criptoativos, incluindo aqueles realizados em plataformas DeFi, sejam reportados como parte da renda bruta do contribuinte. A não declaração desses rendimentos sujeita o contribuinte a penalidades severas, incluindo multas e, em casos extremos, processos criminais.

Para reforçar a fiscalização, a IRS tem utilizado ferramentas de rastreamento de blockchain que, em conjunto com informações de exchanges centralizadas, permitem mapear parte das transações realizadas no universo DeFi. Contudo, a eficiência dessas medidas é limitada, já que muitas operações ocorrem fora do alcance das plataformas centralizadas e não envolvem intermediários sujeitos a obrigações de compliance.

Reino Unido: O HM Revenue and Customs (HMRC) trata criptoativos como propriedade e sujeita as transações a imposto sobre ganhos de capital. Embora não exista uma regulamentação específica para as plataformas DeFi, as regras fiscais aplicáveis aos criptoativos abrangem os rendimentos e ganhos obtidos nessas plataformas. No entanto, assim como nos Estados Unidos, o maior desafio enfrentado pelo HMRC é a falta de intermediários capazes de reportar as transações diretamente às autoridades fiscais, o que impede uma fiscalização efetiva sobre as operações descentralizadas.

EUA e Reino Unido: Ambas estão investindo em tecnologias de análise de blockchain e colaborando com empresas especializadas para aumentar sua capacidade de monitoramento e identificação de contribuintes que não declaram seus rendimentos. Ainda assim, a natureza descentralizada e pseudônima das operações DeFi representa um desafio significativo para os esforços de conformidade tributária.

China e Índia: Adotaram posturas fortemente restritivas em relação aos criptoativos e, por extensão, às DeFi. Na China, a regulamentação do setor de criptoativos foi gradativamente endurecida até que, em 2021, o país proibiu completamente a mineração e o uso de criptoativos em transações financeiras. O objetivo principal é controlar o fluxo de capital e evitar a fuga de divisas, além de combater a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal.

Embora a China tenha implementado uma política de "banimento total" em relação aos criptoativos, essas medidas tendem a empurrar as operações para mercados paralelos e para plataformas descentralizadas que são mais difíceis de controlar. A abordagem da China, portanto, enfrenta um paradoxo: ao proibir o uso formal de criptoativos, o governo chinês cria um ambiente que incentiva o uso de plataformas como as DeFi, onde o anonimato e a descentralização oferecem maior proteção aos usuários.

Na Índia, a abordagem é igualmente restritiva, com a imposição de uma taxa de 30% sobre todos os rendimentos provenientes de criptoativos, sem a possibilidade de deduzir perdas. Embora essa política ainda não se aplique diretamente às transações DeFi, a tributação punitiva desincentiva a participação em atividades formalmente regulamentadas, empurrando os usuários para o uso de plataformas descentralizadas onde o controle do governo é limitado. Ao criar barreiras tão altas, a Índia pode acabar gerando um efeito adverso, promovendo o crescimento de um mercado informal e descentralizado, mais difícil de fiscalizar.

Propostas de Soluções para os Desafios Tributários no DeFi

Diante da constante evolução tecnológica inerente ao ambiente DeFi, a regulação tributária tradicional encontra-se defasada, carecendo de instrumentos que acompanhem as inovações desse setor. O conceito de regulação adaptativa traz uma proposta para lidar com os desafios impostos pela descentralização e anonimidade das transações. Este modelo regulatório não deve ser estático, mas sim flexível o suficiente para ajustar-se à rápida mutação das plataformas e serviços descentralizados, sem perder de vista os princípios basilares do Direito Tributário.

A regulação adaptativa pressupõe a criação de marcos normativos que permitam a constante atualização das regras fiscais conforme as inovações tecnológicas surgem. Isso inclui, por exemplo, a capacidade de ajustar o tratamento fiscal de novas formas de transações, como yield farming, staking e empréstimos descentralizados, bem como a introdução de novas categorias de ativos digitais. A legislação tributária deve ser capaz de incorporar novas práticas sem exigir reformas profundas, por meio da emissão de instruções normativas e atos administrativos que ampliem a aplicabilidade das leis vigentes. Essa flexibilidade garante que o fisco mantenha o controle sobre a tributação sem comprometer a inovação e o desenvolvimento econômico no setor de blockchain e DeFi.

IA - inteligência artificial e a análise de blockchain são dois instrumentos cruciais nesse processo. Ferramentas de IA podem ser aplicadas para monitorar transações em tempo real, identificar padrões suspeitos de evasão fiscal e prever comportamentos que sugerem a não conformidade. Por sua vez, a tecnologia blockchain, com sua transparência inerente, permite que as transações sejam registradas de forma imutável e acessível para auditoria.

A análise de blockchain pode ser utilizada pelas autoridades fiscais para rastrear o fluxo de criptoativos entre diferentes carteiras digitais, mesmo em redes pseudônimas. Essas ferramentas, já utilizadas em países como os EUA e Reino Unido, permitem a identificação de “padrões de vida digital” que podem revelar a verdadeira identidade por trás de uma chave pública. Além disso, o desenvolvimento de sistemas de IA que integram dados fiscais de múltiplas jurisdições pode ser uma ferramenta poderosa para a cooperação internacional, oferecendo soluções para a detecção de transações transfronteiriças não declaradas.

Quanto aos contratos inteligentes, a codificação de normas fiscais diretamente nos contratos que regem transações financeiras pode assegurar que a conformidade tributária seja cumprida de forma automática, sem depender da ação voluntária do contribuinte. Dessa forma, sempre que uma transação for realizada, o contrato inteligente poderá deduzir e alocar automaticamente a parcela devida ao fisco.

Esses contratos inteligentes poderiam ser integrados às plataformas descentralizadas, de modo que uma parte dos rendimentos obtidos por meio de atividades como staking, yield farming ou empréstimos fosse retida no momento da liquidação, garantindo a arrecadação do imposto devido. A vantagem desse sistema é sua imutabilidade e autonomia, uma vez que, programados corretamente, os contratos inteligentes asseguram que as normas tributárias sejam aplicadas de forma precisa, sem a necessidade de intervenções manuais, minimizando o risco de erros e fraudes.

Além das soluções tecnológicas e regulatórias, a educação tributária desempenha um papel crucial na conformidade fiscal no universo DeFi. Dada a complexidade e a rápida evolução das tecnologias subjacentes, muitos contribuintes que operam no DeFi não têm o conhecimento adequado sobre suas obrigações fiscais. Nesse sentido, campanhas de conscientização e programas educativos voltados para os usuários dessas plataformas são necessários para garantir que eles compreendam suas responsabilidades tributárias.

Desafios Fiscais Práticos e Ferramentas de Fiscalização no DeFi

Ferramentas como a análise de transações agregadas, que permitem o rastreamento de fluxos de criptoativos em diferentes carteiras, são essenciais para identificar grandes movimentações financeiras que possam estar ocultando ganhos não declarados. Além disso, o uso de softwares que monitoram redes descentralizadas e identificam interações com smart contracts pode fornecer dados críticos para as autoridades fiscais, permitindo uma fiscalização mais eficaz de transações complexas realizadas em plataformas como Uniswap, Aave ou Compound.

A transparência das blockchains públicas, muitas vezes vista como um benefício no ecossistema DeFi, também apresenta limitações consideráveis quando se trata de auditoria tributária. Embora as transações em blockchain sejam visíveis e imutáveis, o pseudonimato dos usuários cria barreiras à identificação dos sujeitos passivos da obrigação tributária. Essa dissociação entre a atividade financeira registrada na blockchain e a identidade real dos participantes dificulta a fiscalização direta.

Contudo, a oportunidade oferecida pela transparência blockchain não deve ser subestimada. Com a implementação de ferramentas de análise de dados em larga escala, é possível rastrear padrões de movimentação financeira que, em última instância, podem levar à identificação de usuários por meio de cruzamento de dados com exchanges centralizadas ou outras fontes de informações públicas. Além disso, a natureza pública e auditável das transações em blockchain pode facilitar investigações fiscais, desde que as autoridades possuam os recursos tecnológicos adequados para processar e interpretar essas informações.

A auditoria de contratos inteligentes representa um novo desafio tanto técnico quanto jurídico. O caráter automatizado desses contratos não isenta as partes envolvidas de cumprir com as obrigações tributárias. Aqui envolvea revisão do código-fonte para verificar se há mecanismos de conformidade tributária incorporados. Além disso, do ponto de vista jurídico, é essencial que o conteúdo dos contratos esteja em conformidade com as normas legais vigentes. A introdução de normas fiscais diretamente nos contratos inteligentes pode garantir que as obrigações tributárias sejam cumpridas de forma automática e segura, exigindo um esforço coordenado entre legisladores, desenvolvedores e advogados para garantir que as regras fiscais sejam corretamente programadas.

Uso de Plataformas DeFi no Brasil: Perspectivas Regulatórias Locais

No Brasil, o ambiente regulatório em torno das DeFi ainda está em um estágio inicial. Embora a Instrução Normativa RFB 1888/19 tenha representado um avanço na regulamentação das transações envolvendo criptoativos, essa normativa é voltada principalmente para exchanges centralizadas, obrigando-as a reportar as transações acima de R$30.000,00. O problema surge, no entanto, quando as transações são realizadas em plataformas descentralizadas, onde não há uma entidade responsável por fornecer esses dados ao fisco.

O uso crescente de plataformas DeFi por investidores brasileiros cria uma área cinzenta no que se refere ao cumprimento das obrigações tributárias. Sem uma regulamentação específica para as transações realizadas em plataformas como Uniswap, Aave ou MakerDAO, o fisco brasileiro não possui meios efetivos para monitorar ou fiscalizar esses fluxos de capital. Essa ausência de monitoramento pode resultar em uma subdeclaração generalizada de rendimentos, especialmente no que se refere a atividades como yield farming e staking, que envolvem ganhos complexos e frequentemente distribuídos em tokens de difícil avaliação.

Além disso, a falta de uma regulamentação detalhada para o uso de smart contracts no ambiente DeFi também cria incertezas jurídicas. Atualmente, o Código Tributário Nacional não prevê mecanismos específicos que abranjam a utilização de contratos inteligentes como forma de cumprimento de obrigações tributárias, o que significa que os ganhos realizados por meio dessas tecnologias podem não ser capturados pelo sistema fiscal de forma adequada.

Análise Final

As transações em plataformas DeFi representam um desafio estrutural para os sistemas tributários tradicionais, que foram construídos com base na centralização e no controle dos intermediários financeiros. Diante da ausência desses intermediários e da natureza pseudônima das operações, é imprescindível que o arcabouço jurídico-tributário evolua para acompanhar essas inovações tecnológicas.

Um dos principais desafios da regulação do DeFi é encontrar o equilíbrio entre a promoção da inovação e a necessidade de assegurar a conformidade fiscal. Embora o DeFi ofereça oportunidades significativas para a inclusão financeira e o desenvolvimento econômico, essas inovações não podem ser isentas de tributação, sob pena de gerar grandes lacunas na arrecadação fiscal.

A natureza transfronteiriça das plataformas DeFi exige uma cooperação internacional robusta para enfrentar os desafios fiscais. A harmonização das normas tributárias e o compartilhamento de informações entre diferentes jurisdições são essenciais para evitar a arbitragem regulatória e garantir que as operações em DeFi sejam devidamente tributadas em nível global.

Gilmara Nagurnhak
Pós Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil Pós Graduanda em Direito Tributário Uma advogada apaixonada pelo mundo empresarial!

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