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Como se insere a Anatel na discussão sobre a regulação das BETs?

A Anatel agora deve certificar a legitimidade das casas de apostas no RJ, mas enfrenta limitações legais para bloquear sites, conforme o Marco Civil da Internet.

18/9/2024

Recentemente, a Anatel - Agência Nacional de Telecomunicações tem estado envolvida em várias ações relacionadas a sites de apostas esportivas.1

A Anatel e a certificação das casas de apostas no Rio de Janeiro

Recentemente, uma decisão judicial determinou que a Anatel deveria certificar a legitimidade das casas de apostas para operar dentro dos limites do estado do Rio de Janeiro. Caso essas casas de apostas estejam em desacordo com a legislação estadual, a Anatel deveria suspender suas atividades no estado. 

Em 07/8/24, a Loterj - Loteria do Estado do Rio de Janeiro ajuizou uma ação com pedido de tutela antecipada antecedente contra a Anatel, solicitando que esta notificasse os provedores de conexão para bloquearem ou suspenderem o funcionamento de centenas de sites de apostas indicados pela Loterj na ação.

Os sites de apostas alvo do bloqueio eram aqueles que não haviam solicitado a licença estadual, conforme estabelecido pelo decreto do estado do Rio de Janeiro 48.806/23.

Decisões judiciais e embargos

Inicialmente, o pedido liminar da Loterj foi indeferido em primeira instância. No entanto, essa decisão foi parcialmente reformada em sede de agravo de instrumento, autorizando a Anatel a verificar a legitimidade operacional das empresas listadas na inicial perante a Loterj e, em caso de irregularidade, tomar as providências cabíveis, dentro dos limites do estado do Rio de Janeiro, para suspender as atividades de loteria de apostas de quota fixa que estivessem em desacordo com a legislação aplicável.

Diversas casas de apostas apresentaram embargos de declaração e interpuseram recurso de agravo interno contra essa decisão, assim como a AGU - Advocacia Geral da União. Em 12/8/24, o relator revogou a medida pretendida pela Loterj, determinando que as casas de apostas regularizassem suas operações até 31/12/24.

Posicionamento da ANATEL sobre competência legal

Em 20/8/24, logo após a decisão, a Loterj apresentou manifestação desistindo da ação principal contra a Anatel.

Em 22/8/24, o juízo da 13ª vara Federal Cível da SJDF apreciou o pedido da Loterj e extinguiu a ação por falta de legitimidade recursal da Loterj. A petição inicial foi assinada pelo presidente da Loterj, que, apesar de ser advogado inscrito na OAB, está impedido de exercer a advocacia enquanto presidente da autarquia. Assim, nos termos da sentença, nem mesmo o pedido de desistência poderia ter sido apreciado.

Diante dessa decisão, ainda cabe recurso por parte da Loterj. Além disso, o agravo de instrumento interposto anteriormente está pendente de julgamento. No entanto, considerando que a ação principal foi extinta, o agravo de instrumento deverá ser julgado prejudicado.

Nesse cenário, a questão da competência para legislar sobre a regulamentação/autorização das casas de apostas, por ora, não será apreciada pelo TRF.

Com dito, a ação teve origem em um pedido da Loterj, que alegou que diversas plataformas de apostas estavam operando de forma irregular no estado.

E, como se posicionou a ANATEL?

No âmbito dos argumentos trazidos pela Anatel, vale a reflexão sobre a ilegitimidade passiva da agência, já informada na ação da 13ª vara da seção Judiciária do Distrito Federal, que foi reformada pelo TRF1. A Anatel destacou que sua função é regular a prestação dos serviços de telecomunicações e que não há qualquer dispositivo na LGT que autorize a agência a determinar que uma prestadora de serviço de telecomunicações efetue o bloqueio administrativo de conteúdo exposto na internet.

“É preciso ter em mente que há, de um lado, os aspectos técnicos e de infraestrutura, sobre os quais incide a jurisdição da Anatel. De outro lado, os conteúdos propriamente ditos, que trafegam pelas redes de telecomunicações, em relação aos quais a Anatel não possui ingerência. Como bem colocado no Ofício 103/24/PR-Anatel (ID 2125313418), a Anatel não possui competência legal para determinar às prestadoras de serviços de telecomunicações que procedam ao bloqueio de sites que operam ilegalmente apostas no território brasileiro, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro”, registrou a Agência.

Marco civil da internet e jurisdição

A Anatel também destacou que a imposição de bloqueio de conteúdos publicados na internet e a atribuição de responsabilidade a provedores de aplicação ou de conexão por conteúdos publicados por terceiros é um tema sensível e controverso, cuja regulamentação está nas disposições do marco civil da Internet (lei 12.965/14) e em precedentes do STJ. Em regra, o bloqueio de conteúdos ilícitos ou ofensivos é efetuado após a emissão de uma ordem judicial, o que também constitui pressuposto para a responsabilização do provedor de aplicação responsável.

A Anatel lista os casos previstos, como aqueles que violem os termos de uso da plataforma em algumas redes sociais, com conteúdos que propaguem desinformação ou expressem ofensas de teor discriminatório, divulgação de cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado e conteúdos que violem direitos autorais.

“Como se vê, o modelo legal em vigor no Brasil, tal como disposto no marco civil da Internet e interpretado pelo STJ, não comporta a hipótese de indisponibilização de conteúdo na internet mediante ordem proferida pela Anatel às prestadoras de serviços de telecomunicações, como pretende a autora nos presentes autos”, informa a petição.

Segundo a Anatel, a decisão do desembargador do TRF1 não se aplica às regras excepcionais previstas no marco civil da Internet, que autorizam o bloqueio de sites independentemente de ordem judicial. “Nesse contexto, resta demonstrada a absoluta incompetência legal da Anatel para determinar o bloqueio de sites que operam ilegalmente apostas no território brasileiro, mais especificamente no Estado do Rio de Janeiro, isso porque a hipótese de retirada de conteúdo na internet por ordem proferida pela Anatel, requerida pela autora, destoa do modelo legal vigente”, comenta a agência.

A petição também informa que a “Anatel não é operadora de serviço de telecomunicações e, portanto, não possibilita que os provedores de conteúdo de internet veiculem seus materiais, de maneira que, do mesmo modo, não possui condições técnicas de impedir suas atividades”.

Implicações jurídicas e regulatórias 

A discussão judicial, a par de questões técnicas que forma muito bem levantadas pela Anatel em sua manifestação, trouxe à tona várias questões jurídicas e regulatórias importantes: 

  1. Competência e jurisdição: A decisão destacou a competência da Anatel em regular e fiscalizar as atividades de telecomunicações, incluindo a certificação de plataformas de apostas online.
  2. Conflito de normas: A decisão judicial reunia em si o potencial de gerar conflitos entre as normas estaduais e Federais. A Loterj, por exemplo, lançou um edital para o credenciamento de empresas de apostas, permitindo que atuem mediante o pagamento de uma outorga de R$ 5 milhões, valor inferior ao exigido pelo Ministério da Fazenda, que é de R$ 30 milhões. Esse descompasso pode levar a disputas judiciais e administrativas. 
  3. Prazo para regularização:ANJL - Associação Nacional de Jogos e Loterias argumentou que todas as empresas de apostas têm até 31/12/24 para obter suas licenças, conforme a portaria 827/24 do Ministério da Fazenda. A decisão da Anatel de suspender atividades antes desse prazo pode ser vista como uma violação dos direitos das empresas de se regularizarem dentro
  4. Impacto econômico e social: A suspensão das atividades das casas de apostas pode ter um impacto significativo na economia local, especialmente considerando a popularidade das apostas esportivas. Além disso, a decisão trouxe o potencial de afetar os consumidores que utilizam essas plataformas, gerando incertezas e possíveis perdas financeiras. 

Vamos aguardar e acompanhar eventuais desdobramentos que envolve a indústria de maior destaque nos noticiários da atualidade: a indústria das apostas esportivas.

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1 Anatel inicia processo para bloquear 115 sites de iGaming não licenciados pela Loterj - Games Magazine Brasil (gamesbras.com)

2 Anatel recebe prazo para provar que bloqueou sites de apostas só no RJ | Metrópoles (metropoles.com)

Bruno Di Gioia
Legal, Ethics & Compliance - Compliance, Anticorrupção e Certificação CPC-A Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Pós-graduação em Direito do Trabalho e Previdenciário Universidade Cândido Mendes - Graduação em Direito

Rafael Pistono
Fundador - PDK Advogados Insper - Pós-graduação em Direito Digital PUC-RS - MBA em Administração, Finanças e Gestão PUC-RS Especialização em Equipes de Alto de Desempenho Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Graduação em Direito

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