Nos últimos dez anos, o cenário dos crimes licitatórios no Brasil passou por significativas transformações, impulsionadas por mudanças legislativas, novos padrões de fiscalização e a crescente vigilância da sociedade civil e dos meios de comunicação. Essa evolução reflete um esforço contínuo para combater a corrupção e promover maior transparência e integridade nos processos licitatórios.
Assim, a aquisição pública de bens e serviços passaram a ter maior controle de legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, em respeito ao que aduz o art. 37 da CRFB/881.
Obras de grande porte ou serviços de elevado valor e prestação contínua, por exemplo, possuem regramentos rígidos quanto a modalidade de aquisição do bem ou serviço (leis 8.666/932 e 14.133/213).
O ponto nevrálgico, contudo, é que muitas dessas licitações, como a contratação para prestação de serviços públicos essenciais, possuem duração superior ao prazo da gestão do agente responsável pela sua contratação.
E mais, muitas dessas licitações possuem prazo superior, inclusive, a gestão das empresas vencedoras, sobretudo em virtude das fusões e aquisições de grandes empresas, em operações cada vez mais comuns no mercado contemporâneo.
Ou seja, é plenamente possível que, em um determinado contrato vigente, em uma licitação fraudada, as partes gestoras contemporâneas do contrato sequer tenham ciência da fraude realizada para a contratação entabulada.
Portanto, ocorrida operação policial em razão de possível ilicitude em um contrato público, o grande problema que surge para o gestor público é: “o que fazer com essa licitação fraudada?”.
Afinal, o ato fraudulento – nulo – deve ser assim reconhecido. Contudo, os serviços essenciais não podem ser interrompidos4 (imagine-se uma licitação de retirada de lixo urbano, ou de fornecimento de material hospitalar, por exemplo) e a empresa que presta o serviço, com exceção de eventual superfaturamento, deve ser remunerada de forma adequada, até mesmo para que possa cumprir sua função social5, tais como remunerar prestadores de serviços e colaboradores.
Sendo assim, considerando a necessidade de serviço e da justa remuneração, o gestor público do contrato possui, basicamente, duas alternativas6: a) manter vigente o contrato, até que sobrevenha decisão judicial determinando a interrupção deste, tendo em vista que a suspensão de serviço essencial pode conduzir ao reconhecimento de improbidade do gestor; b) cessar imediatamente o contrato, até a realização de uma contratação emergencial e seguir a uma nova contratação pela modalidade licitatória adequada.
Todavia, na hipótese de ser mantido o contrato (o que seria o mais lógico, já que há contrato vigente, cuja eficácia não fora questionada pelas autoridades de persecução penal), hipótese fundada na presunção de inocência (art. 5.º, inciso LVII, da CF/88 e de legalidade dos atos públicos7, o gestor público corre o risco de ser entendido que este “reiterou na prática criminosa”, ao realizar os pagamentos do contrato.
Já quanto a hipótese de operar a rescisão contratual, hipótese fundada na autotutela da administração pública8, esta pode ser interpretada pelas autoridades de persecução penal como uma atitude tendente a ocultar provas ou dificultar a investigação.
Em ambos os casos há fundamentação jurídica idônea, porém o resultado é mesmo, o gestor público está(ria) sob o risco da decretação de prisão preventiva, seja para evitar a reiteração criminosa, seja para garantia da instrução processual. É o famoso ditado, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
Não raras vezes, a própria procuradoria jurídica do órgão público é atraída para dentro das ações penais por pareceres, em um sentido ou no outro, ficando a atividade do advogado público cerceada, ou até mesmo criminalizada.
Portanto, a situação da existência de investigação em andamento, com deflagração de operação policial, pode colocar em risco os responsáveis pela gestão do contrato público, sendo eles originariamente investigados ou não.
Por isso, seria imperioso que os órgãos de persecução penal, sobretudo o MP, ao deflagrarem operações e investigações por suposta violação da ética nos contratos públicos, atentem-se para a realização de pedidos cautelares também com relação ao contrato, seja por meio de cautelar cível autônoma – no âmbito da ação civil pública –, seja no âmbito da própria ação penal, a fim de se resguardar o interesse público, a manutenção do serviço essencial, a função social da empresa e a segurança jurídica dos agentes públicos e particulares que lidam com a contratação pública.
A medida em questão, frisa-se, já pode(ria) ser pleiteada pelo MP nas investigações, já que existem medidas legais que atendem ao melhor interesse público que as autorizam. Todavia, eventual alteração legislativa exigindo, de forma mais explícita, que os agentes de persecução penal, ao evidenciarem a ilegalidade de contrato público, tenham de envidar medidas para garantir a continuidade do serviço e a cautela do erário, seria de muito bom alvitre, para preservação da segurança jurídica dos gestores públicos e privados.
Afinal, a busca pela moralidade e ética na contratação pública não pode servir de supedâneo para a quebra de empresas ou para a criminalização da gestão pública.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 9 set. 2024.
2 BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Dispõe sobre normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666.htm. Acesso em: 9 set. 2024.
3 BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui o regime jurídico das licitações e contratos administrativos e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l14133.htm. Acesso em: 9 set. 2024.
4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 37.ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 121.
5 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: volume 1. 25.ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
6 Aqui também haveria a possibilidade de encampação, mas deixamos essa de lado em razão de se tratar de procedimento realizado por processo administrativo ou judicializado, importando em demora excessiva, sobretudo quando se lida com serviço essencial.
7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 37.ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 82.
8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 37.ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 83/84.
9 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 9 set. 2024.
10 BRASIL. Lei nº 8.666/93. Dispõe sobre normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666.htm. Acesso em: 9 set. 2024.
11 BRASIL. Lei nº 14.133/21. Institui o regime jurídico das licitações e contratos administrativos e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l14133.htm. Acesso em: 9 set. 2024.
12 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: volume 1. 25.ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
13 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 37.ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.