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A inconstitucionalidade da censura ao X

A decisão do STF de proibir o acesso ao X (antigo Twitter) e aplicar multa desrespeita princípios constitucionais, especialmente a liberdade de expressão garantida pelo art. 5º da CF.

5/9/2024

A decisão emanada do STF que proibiu o acesso ao X (antigo Twitter), cominando multa a quem o utilizar, desrespeita inúmeros dispositivos constitucionais e legais. E não se fundamenta em nenhum.

1 – O primeiro princípio constitucional afrontado pela decisão é o que garante a livre manifestação do pensamento, independentemente de censura ou licença, expresso nos incisos IV, V e IX, do art. 5ª, da CF.  A única exigência do texto é a vedação ao anonimato, para garantir a responsabilização do autor e o direito de resposta por parte do ofendido.

Não há previsão constitucional de exceção ao direito de se manifestar, presencial ou virtualmente. Em consequência, não pode a Suprema Corte criar restrições ao direito à livre manifestação, embora possa decidir sobre a ponderação entre este e outros direitos, como à imagem e à honra.

Reconhecer que nenhum direito é absoluto, nem mesmo à vida, não significa admitir que algumas pessoas possam ter seu direito suprimido em razão de uma conduta que o legislador ou julgador considerem indevida.

2 – O segundo dispositivo da CF ofendido é o inciso XIII, do mesmo art. 5ª, que garante o livre exercício de qualquer trabalho. A censura ao X impede que jornalistas e produtores de conteúdo exerçam sua profissão em uma importante rede social.

3 – O terceiro, é o inciso XIV, também do art. 5°, que garante a todos os cidadãos o acesso à informação, que é restringido quando um meio de comunicação é censurado ou mesmo quando usuários são impedidos de o utilizarem.

As decisões emanadas do inquérito secreto das fake news importaram em subtrair de toda a população o direito a decidir quais são as informações verdadeiras e relevantes.

4 – O quarto princípio constitucional ofendido é o da separação entre os poderes, pois a condução de inquéritos é atribuição das autoridades policiais, que fazem parte do Poder Executivo.

A alegação utilizada para justificar a abertura de inquérito, previsão no regimento interno do STF, desconsidera que os inquéritos internos do Poder Público devem se restringir à apuração de irregularidades administrativas. Uma vez constatada a gravidade dos fatos, cabe à autoridade remeter peças à delegacia competente ou ao Ministério Público.

5 – O quinto princípio desrespeitado pela decisão do STF é o direito ao juiz natural, associado à vedação a tribunais de exceção, previstos nos incisos XXXVII e LIII, do art. 5°, completados pelo art. 102, que trata das atribuições do Supremo.

Tal princípio significa que todos tem direito a serem julgados pelo órgão judicial competente para a causa, de acordo com lei anterior ao fato que gerou o processo.

O STF é um tribunal de atuação restrita às atribuições listadas nos três incisos do art. 102, da CF. Entre essas, não está a condução de inquéritos, principalmente os que versam sobre fatos cuja análise compete aos juízes de primeira instância. Também não está entre elas o julgamento sobre a veracidade das informações divulgadas nas redes sociais nem, muito menos, decidir sobre o direito coletivo de acesso a tais redes.

Sempre que um órgão jurisdicional se arvora a julgar questões estranhas às determinadas em lei surge um tribunal de exceção.

6 – O sexto princípio desrespeitado está expresso no inciso XLVII, alínea b, ainda do art. 5°, que proíbe a pena de banimento. A ordem descumprida, que gerou a censura coletiva, bania do X diversos jornalistas, juristas e influencers, o que para muitos deles tem os mesmos efeitos que o banimento territorial.

7 – O sétimo dispositivo constitucional afrontado é o inciso LX, do mesmo art. 5°, que garante a publicidade dos atos processuais, salvo quando a intimidade ou o interesse social justificarem restrições. 

Nenhuma das duas situações de exceção está presente no inquérito das fake news, até porque versa sobe informações já previamente públicas . O inciso LX aplica-se a ele porque assumiu uma função processual ao gerar medidas restritivas externas, o que somente por meio de processo judicial poderia ser determinado.

8 – O oitavo princípio ofendido é o LV, do art. 5°, que garante a todos os cidadãos o direito ao contraditório e à ampla defesa. O inquérito 4.781/19 é secreto e não permite qualquer discussão acerca do mérito da questão ou competência do órgão julgador.

O desrespeito à ampla defesa é agravado pela ausência de indicação de quais seriam as publicações inverídicas. Essa grave omissão impede que os interessados defendam a veracidade delas e, principalmente, que toda a população exerça seu inalienável direito a obter as informações e decidir acerca de sua veracidade e relevância. 

As ordens dirigidas às redes sociais se restringiram a impor a exclusão dos perfis, ao invés de determinar a retirada das matérias que o julgador considerava falsas. Mesmo em um processo regular, essa retirada só poderia ocorrer após o contraditório.

9 – O nono princípio constitucional desconsiderado pelo STF é o fundamental direito à livre iniciativa, previsto nos arts. 1°, inciso IV, e 170, da CF. A proibição de funcionamento do X, mediante a ameaça de prisão e, por fim, a suspensão de suas atividades, impedem o livre exercício de atividade econômica tanto pela própria rede social quanto por todos os que a utilizam com finalidade econômica.

Ainda que a lei exija um representante local (art. 1.138, do Código Civil) as consequências da omissão somente poderiam atingir a empresa no Brasil, nunca seus clientes. A legislação brasileira não autoriza a vedação ao acesso pelos cidadãos a sites e redes sociais, hospedados no Brasil ou no exterior, ainda que estes sejam devedores de multas ou tenham descumprido ordens judiciais.

A ameaça de multa dirigida a toda a população, que não faz parte do inquérito, constituiu uma arbitrariedade sem precedentes em nossa história, importando em constrangimento ilegal.

10 – O décimo princípio constitucional desrespeitado foi o da legalidade, essencial ao Estado Democrático de Direito. A CF garante, em seu art. 5°, inciso II, que ninguém pode ser obrigado a fazer ou não fazer alguma coisa senão em virtude de lei.    

Ocorre que não há lei no Brasil autorizando a vedação à postagem ou ao acesso a redes sociais, seja qual for a irregularidade cometida.  Também não há lei que atribua ao Judiciário (ou a qualquer autoridade) o direito de decidir sobre a veracidade de informações disponíveis na imprensa ou sites.

O princípio da legalidade também foi ofendido pelo desrespeito à lei que regula o abuso de autoridade, 13.689/19. O abuso ocorreu em várias outras condutas do gestor do inquérito 4.781/19, como a ordem geral de suspensão de acesso ao X (art. 33), negativa de acesso ao inquérito (art. 32), extensão imotivada do inquérito, com inclusão de fatos posteriores ao original (art. 31, parágrafo único) e a própria instauração de inquérito sem que haja crime previsto em lei (art. 27).

Além da desmoralização da Constituição e estímulo ao arbítrio por parte de outros julgadores, as decisões emanadas do inquérito das fake news geram enorme insegurança jurídica, o que deveria ser o efeito oposto da atuação do STF.

Fernando Lemme Weiss
Advogado, mestre e doutor em Direito Público pela UERJ

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