A imposição de bloqueio à Starlink, somada à derrubada da “X” (antigo Twitter) no Brasil e à fixação de multa para quaisquer pessoas que acessem referida rede social mediante VPN, acirrou o debate sobre uma politizada disputa jurídica que ultrapassou as fronteiras do Brasil. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, e o bilionário Elon Musk, acionista controlador da empresa responsável pela rede social “X”, têm protagonizado discussões cuja compreensão adequada foge ao alcance da técnica ensinada nos livros e nos cursos de Direito.
Deixando de lado, por ora, outros potenciais interesses em jogo, não há como desprezar o rigor da melhor técnica jurídica, responsável por coibir abusos e arbitrariedades, sem descuidar da proteção de bens jurídicos e da tutela da ordem pública. No caso, as recentes decisões do STF envolvendo a “X” e Elon Musk lançaram luz sobre uma prática crescente, adotada pelos tribunais brasileiros.
No curso de investigação destinada a apurar possível prática de crimes de obstrução de investigações de organização criminosa e de incitação ao crime, o ministro Alexandre de Moraes havia determinado à empresa Twitter Inc. (responsável pela rede social “X”) que realizasse o bloqueio de perfis indicados pelo STF. Na mesma oportunidade, o ministro impôs multa diária de R$ 50 mil para a hipótese de descumprimento da medida (Pet 12.404/DF).
Posteriormente, em virtude da retirada dos representantes legais da rede social “X” do Brasil, da extinção da subsidiária brasileira de tal rede social e da constatação de que a “X” permaneceria desrespeitando as determinações judiciais do STF, o ministro relator determinou o bloqueio de ativos financeiros da Twitter International Unlimited Company, da T.I. Brazil Holding LLC, da X Brasil Internet Ltda. e de Rachel de Oliveira Villa Nova Conceição, ex-representante legal da “X Brasil”. Ainda, como os valores alcançados com essa primeira ordem constritiva não eram suficientes à garantia da integralidade do montante correspondente às multas impostas à rede social “X”, foram determinados novos bloqueios, desta vez de ativos financeiros em nome das empresas Starlink Brazil Holding Ltda. e Starlink Brazil Serviços de Internet Ltda. Em 2/9/24, as medidas foram referendadas por unanimidade pela 1ª turma do STF, em Sessão Virtual.
Os bloqueios impostos à Starlink, empresa até então estranha ao caso, suscitaram inúmeros questionamentos: como pode uma empresa alheia àquela responsável pela conduta ilícita (isto é, a “X Brasil”) sofrer medidas constritivas? Poderia uma decisão, aparentemente proferida ex officio e sem contraditório, no curso de investigação criminal, ampliar a ordem de bloqueio a fim de alcançar empresas de um mesmo grupo?
A medida, ainda que não encontre expresso amparo legal, não é estranha à jurisdição criminal. Cabe, a respeito, ao menos três importantes apontamentos.
Primeiro, a decisão tomada pelo STF é amparada por outra decisão – proferida pelo mesmo ministro, é verdade – que reconhecera a existência de “grupo econômico de fato” entre a “X Brasil” e a “Starlink Brazil”.
Embora esse reconhecimento prévio de “grupo econômico de fato” represente uma particularidade da decisão proferida pelo STF quando comparada com decisões prolatadas por outros tribunais brasileiros, tal decisão levou em conta aspectos que potencialmente ampliam o alcance de medidas cautelares em matéria penal. Isso, pois o fundamento para concluir pela existência de um “grupo econômico de fato” foi a mera subordinação da “X Brasil” à “X Corp.” e, em última análise, ao poder decisório de Elon Musk.
Segundo, o reconhecimento da existência de “grupo econômico de fato” conduziu, automaticamente, à desconsideração da personalidade jurídica. O problema, nesse ponto, é que além de a adoção de tal procedimento colidir com o próprio art. 266 da lei 6.404/76 (prevendo a preservação de personalidade e patrimônios distintos entre as sociedades), essa “desconsideração automática” também afronta o próprio art. 50 do Código Civil (que dispõe sobre a desconsideração da personalidade jurídica) e viola garantias como ampla defesa e contraditório, vez que aparentemente a decisão foi tomada de ofício e sem oportunizar à Starlink contestação da medida.
Quanto ao tema, pende de julgamento perante o STF o RE 1.387.795/MG, com reconhecimento de repercussão geral, tratando da possibilidade de incluir no polo passivo de execução trabalhista pessoa jurídica reconhecida como de grupo econômico que não tenha participado da fase de conhecimento. Em voto proferido pelo relator, ministro Dias Toffoli — acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes — foi proposta tese exigindo prévio incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137, CPC) e demonstração de abuso da personalidade jurídica (art. 50, CC). Há quatro votos para a aprovação da tese, tendo havido pedido de destaque pelo ministro Cristiano Zanin. Não descuidando da relevância da execução trabalhista, dada a magnitude do bem jurídico em jogo no processo criminal, as garantias processuais da pessoa jurídica mereceriam ao menos o mesmo tratamento conferido no âmbito do processo do trabalho.
Terceiro, há que se questionar a natureza do bloqueio de ativos financeiros impostos à Starlink. Trata-se de astreintes, arresto ou sequestro? A natureza da medida é civil ou criminal? Partindo-se da premissa de que tanto a “X” quanto Elon Musk podem ser condenados por obrigações de natureza cível, as informações divulgadas dão conta de que tanto a rede social quanto seu acionista majoritário teriam praticado, também, atos de desobediência, com potencial repercussão criminal. Sendo assim, não há como desconsiderar princípios inseparáveis da esfera penal (em especial o princípio da culpabilidade) e simplesmente impor medida cautelar contra pessoa física e/ou jurídica estranha às investigações.
Independentemente da natureza jurídica das medidas, a decisão do Supremo Tribunal Federal, polêmica em tantos outros aspectos, acaba por exprimir certo descuido com a personalidade jurídica no processo penal. Afinal, independentemente da posição que se adote a respeito da natureza jurídica do ente moral, parece sedimentada a necessidade de se reconhecer independência à pessoa jurídica, principalmente de seu patrimônio àqueles dos sócios que a integram.
Ainda que a desconsideração da personalidade jurídica seja importante ferramenta — permitindo ao Direito adotar meios para a eficácia de seus atos na hipótese de pessoa jurídica ter sido constituída ou estar operando com finalidade de blindagem patrimonial —, decisões como essa, contra a Starlink, colocam em xeque a própria personalidade. Se a mera identidade ou semelhança na composição societária for considerada suficiente para, em matéria penal, desconsiderar a personalidade jurídica do ente moral do qual o acusado é sócio, controlador ou acionista, pavimenta-se tortuoso caminho em direção ao completo desrespeito à personalidade jurídica.
Deixar de separar pessoa jurídica “X” de pessoa jurídica “Y”, ambas detentoras de garantias fundamentais destinadas aos “acusados em geral”, viola os princípios mais basilares da esfera criminal, como legalidade e culpabilidade. A confusão de pessoas jurídicas com pessoas naturais, sobretudo sem um devido processo legal capaz de resultar na desconsideração da personalidade jurídica, igualmente fere garantias fundamentais.
Ainda que se reconheça ser o STF uma corte política, a sua condição de guardião da Constituição exige aderência ao Direito e à lei, pois serve de exemplo a toda a Jurisdição. Ao não aderir nem mesmo ao seu próprio entendimento quanto aos limites da desconsideração da personalidade jurídica, a Corte sinaliza a todo o Poder Judiciário que a personalidade jurídica pode ser livremente desconsiderada em matéria penal. Como resultado da equação, toda essa indistinção patrimonial e de personalidade pode, um dia, encarecer a conta de todos nós.
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1 ESTELLITA, Heloisa. Aspectos processuais penais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Bresser; NETO, Theodomiro Dias (coords.). Crimes econômicos e processo penal. São Paulo: Saraiva, 2008 (série GV Law). p. 234. No mesmo sentido: JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano; FERREIRA, Ana Lúcia Tavares. Responsabilidade penal da pessoa jurídicas e garantias processuais no ordenamento jurídico brasileiro. In: VALENTE, Manuel Gomes Monteiro Guedes; CHOUKR, Fauzi Hassan (coords.). O processo penal no âmbito da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Coimbra: Almedina, 2022. p. 64-67.
Guilherme Brenner Lucchesi
Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Presidente do Instituto dos Advogados do Paraná. Coordenador do Curso de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR.
Leandro Oss Emer
Mestre em Direito pela UFPR. Atualização em Compliance pela FGV. Professor de Direito Penal. Advogado coordenador da área de Direito Penal da Clivatti & Wengerkiewicz Advocacia Empresarial.