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Desvendando a complexidade e combatendo fraudes em ambientes empresariais

A inter-relação entre atos contábeis, investigações internas e a responsabilização jurídica.

29/8/2024

No universo corporativo, é comum associar empresas a organismos vivos, ao utilizar termos como “empresa saudável”, “DNA corporativo” e “longevidade empresarial”. Essas analogias não são meramente figurativas, mas sim indicativas de como as ações empresariais, muitas vezes vistas isoladamente, na realidade, fazem parte de um sistema interdependente e complexo, tal como os processos biológicos ocorrem no corpo humano. É dessa forma que o funcionamento contábil dentro das organizações reflete essa interdependência, já que os resultados financeiros divulgados ao mercado e aos stakeholders são o produto de múltiplos atos contábeis interligados.

A contabilidade, ao buscar retratar a realidade econômica da forma mais fiel possível, depende de informações oriundas de diversos setores, níveis de controle e hierarquias dentro da empresa. Essas informações devem ser precisas e adequadas para que as demonstrações financeiras sejam confiáveis. No entanto, é justamente na complexidade desse sistema que surgem oportunidades para a ocorrência de erros e, mais preocupantemente, de fraudes contábeis.

Diferentemente de um erro contábil, que pode ser resultado de falhas humanas ou, e.g., de defeitos de configurações nos sistemas, a fraude contábil é marcada pela intenção deliberada de manipular dados financeiros com o objetivo de obter benefícios indevidos, seja para o autor ou para terceiros. Em outras palavras, o elemento central que diferencia a fraude é o dolo, ou seja, a intenção consciente de enganar.

A detecção e a análise de fraudes contábeis requerem uma abordagem jurídica robusta. Primeiramente, é imprescindível que sejam individualizadas as condutas fraudulentas para se determinar a autoria e o grau de responsabilidade dos envolvidos. Esse processo de individualização não é meramente técnico strictu sensu, mas fundamental para garantir que as sanções sejam aplicadas de maneira justa e que os direitos constitucionais, como a presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo, sejam respeitados.

A quantificação do valor fraudado (materialidade) também é essencial, pois a aplicação indiscriminada de sanções pode gerar ineficácia no combate às fraudes, além de prejudicar injustamente os acusados. A materialidade deve ser calculada com precisão, permitindo que as investigações sejam focadas e eficazes. Nesse contexto, a literatura internacional, como nos estudos de Michael Levi e Mike Maguire sobre práticas fraudulentas e criminalidade econômica, enfatiza a necessidade de uma investigação criteriosa que leve em conta a complexidade das operações financeiras e a inter-relação entre os diferentes agentes envolvidos.

Por isso, é necessário que as investigações sejam conduzidas com rigor técnico e científico, despindo-se de preconceitos ou ideias preconcebidas, adotando, digamos, uma abordagem zetética. Tal postura investigativa busca não apenas aplicar as normas jurídicas, mas compreender a realidade econômica e organizacional do contexto em questão, permitindo uma interpretação mais próxima aos objetivos do legislador. Como destaca a doutrina de Beate Sjåfjell, editora do International and Comparative Corporate Law Journal, em seu estudo sobre governança corporativa sustentável, é essencial entender as interações entre as normas contábeis e a dinâmica interna das empresas para se atingir resultados mais justos e eficazes.

Seguindo nessa linha de pensamento, a investigação de fraudes contábeis deve ser realizada com base em critérios técnicos claros e bem definidos. A correta identificação dos atos fraudulentos e a precisa delimitação da autoria permitem uma responsabilização em consonância com os princípios jurídicos nacionais e internacionais. Nesse sentido, o conceito de “contabilidade forense” ganha destaque, sendo amplamente utilizado em jurisdições como Estados Unidos e Reino Unido, onde as práticas contábeis fraudulentas são rigorosamente investigadas e punidas, levando em consideração o contexto econômico e a intencionalidade dos atos. A obra de Howard Schilit, Financial Shenanigans, é um exemplo notável, que explora as várias formas de manipulações contábeis e a importância de uma abordagem rigorosa na detecção de fraudes.

A famosa alegoria da caverna de Platão serve como metáfora nesse contexto. É necessário lançar luz sobre as sombras projetadas pelas práticas contábeis inadequadas, rompendo com as correntes do senso comum e das ideias preconcebidas que por vezes dominam ambientes corporativos. Esse processo de iluminação pode ser desconfortável, especialmente para aqueles que preferem a obscuridade das práticas contábeis pouco transparentes. No entanto, é um esforço necessário para assegurar que as decisões empresariais sejam justas, informadas e alinhadas com os princípios éticos e legais. Nesse ponto, a literatura do professor Dennis Thompson, da “John Kennedy School of Governament”, da Universidade de Harvard, em “Ethics in Congress: From Individual to Institutional Corruption”, oferece insights valiosos sobre como a cultura organizacional e pressões internas podem influenciar comportamentos éticos, ou a falta deles, dentro de empresas.

Assim, a complexidade dos atos contábeis e a interdependência dos sistemas dentro de uma organização requerem uma abordagem investigativa e jurídica que vá além da mera aplicação de normas. É preciso compreender o contexto em que as fraudes ocorrem, identificar com precisão os responsáveis e garantir que as sanções aplicadas sejam proporcionais e justas. Somente assim será possível alcançar uma verdadeira transparência contábil e assegurar a confiança dos stakeholders nas demonstrações financeiras apresentadas.

Desta forma, as lições extraídas de investigações contábeis rigorosas e bem estruturadas devem ser utilizadas para aprimorar as práticas internas das empresas e fortalecer os mecanismos de governança corporativa. Ao reconhecer a importância de uma abordagem holística e integrativa, será possível não apenas prevenir fraudes futuras, mas também promover um ambiente empresarial mais saudável, ético e sustentável, como defendem autores como Jayne W. Barnard, em suas análises sobre o papel da governança corporativa na prevenção de fraudes.

A transparência contábil e a correta aplicação das normas jurídicas não são apenas uma obrigação legal, mas uma ferramenta essencial para a construção de um mercado mais justo e equitativo. Na era da informação, onde a confiança é um ativo valioso, é imperativo que as empresas assumam a responsabilidade de garantir a veracidade e a integridade de suas demonstrações financeiras, lançando luz sobre todos os aspectos de suas operações contábeis.

Francisco Petros
Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB - Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.

Bárbara Castellari Peixoto
Advogada do escritório Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.

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