Migalhas de Peso

Rompendo paradigmas da cultura do devedor

O TJ/SP decidiu que cláusulas proibitivas de cessão de crédito são nulas, alinhando-se à lei 13.775/18 e à LC 123/06. A decisão reconheceu a validade da duplicata mercantil e a autonomia dos créditos, invalidando restrições contratuais que impedem sua circulação.

23/8/2024

Pretendo, por estar animado, analisar e tecer considerações acerca de recente decisão de suma importância para o setor de Fomento Comercial: trata-se do judicial e inédito reconhecimento, por meio do Egrégio TJ/SP, sobre a nulidade das cláusulas non cedendo. Assim versa:

APELAÇÃO – Embargos à execução – Cessão de crédito – Cláusula proibitiva constante de contrato – Sentença que julgou procedentes os embargos à execução, reconhecendo a inexigibilidade do débito, reputando irregular a cessão de crédito realizada – Contrato firmado que expressamente proibia a cessão de créditos – Vedação, todavia, que restringe a emissão e circulação de duplicatas, em afronta ao art. 10 da lei 13.775/18 – Novel legislação que conferiu às duplicatas mercantis tratamento já previsto para a circulação de títulos de crédito relativos aos contratos com microempresas e empresas de pequeno porte, nos termos do art. 73-A da LC 123/06 – Reconhecimento da nulidade da cláusula proibitiva que é de rigor – Precedente deste E. Tribunal – Demais alegações da embargante que se referem exclusivamente à sua relação contratual com a credora originária – Apontamentos que são inoponíveis ao terceiro de boa-fé, sob pena de afronta ao princípio da autonomia e descaracterização da duplicata como título de crédito, o qual no caso circulou legitimamente – Precedente do C. STJ – Embargos à execução que devem ser julgados improcedentes – Condenação da embargante ao pagamento dos ônus sucumbenciais, incluindo honorários advocatícios fixados sobre todo o proveito econômico obtido pela embargada. RECURSO PROVIDO.  (TJ/SP; Apelação Cível 1022280-28.2022.8.26.0114; relator (a): Marco Pelegrini; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/8/24; Data de Registro: 16/8/24). Grifei.

Observe-se que, neste importante precedente, a Corte Regional afirmou que as cláusulas privadas, estabelecidas por grandes empresas para impedir a circulação de seus créditos, afiguram-se antieconômicas e, portanto, nulas de pleno direito. Fundamenta-se nos exatos e adequados termos do art. 73-A da LC 123, com redação emprestada pela LC 147/14, e o art. 10 da lei da duplicata escritural 13.775/18.

Transcrevem-se, por apropriado, verbis:

Art. 73-A.  São vedadas cláusulas contratuais relativas à limitação da emissão ou circulação de títulos de crédito ou direitos creditórios originados de operações de compra e venda de produtos e serviços por microempresas e empresas de pequeno porte.

(...)

Art. 10. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que vedam, limitam ou oneram, de forma direta ou indireta, a emissão ou a circulação de duplicatas emitidas sob a forma cartular ou escritural.

Imagino que meu entusiasmo não deva surpreender a muitos. Afinal, para quem não litiga e desconhece os conceitos e temas de direito que se discutem à miúde nesse caso, certamente parecerá pueril festejar uma decisão que, em última análise, nada mais faz do que dizer que o comportamento correto é aquele que está descrito na lei de regência.

Bem quisera que fosse assim tão fácil!

Para que se tenha a dimensão da importância desse precedente, basta lembrar que desde a publicação da LC antes referida, em 2014, posteriormente repetida em 2018, ou seja, por longos 10 anos, milhares de demandas versaram sobre o tema. Não obstante, somente poucos, em torno de apenas três precedentes, admitiram referir os dispositivos legais propalados de forma explícita para se tornar um adequado precedente jurisprudencial.

Essa dificuldade sempre chamou atenção: por que é tão difícil fazer com que a Justiça diga um simples: “cumpra-se a lei”?

Explicação há que se possa, mas, infelizmente, não se apresenta na moldura jurídica, mas no viés sociológico.

Tudo começa pela notória ignorância. Sim, insciência do tema, não no sentido pejorativo, naturalmente, mas no fato de que, quase nenhum dos operadores do direito têm a mais remota ideia do que ocorre, e qual a importância do fomento comercial. Desconhecem, por exemplo, o que seja uma securitização, bem assim sua inegável diferença em relação a operação de factoring, e nem imaginam qual a natureza jurídica de um fundo de investimento, atentem-se bem. Quanto mais, saberão qual operação jurídica realizam, e sua importância monetária quando associada à antecipação de recebíveis. Nem sequer desconfiam, sobretudo, que o mercado de securitização tem raízes constitucionais, radicado em políticas econômicas destinadas à desmobilização dos recursos da poupança popular, desconcentração e desintermediação do mercado de crédito bancário, e da democratização do acesso a fluxo de capital, por via de vendas de ativos circulantes que possa ser acessível a todos, absolutamente todos os empresários e prestadores de serviços brasileiros.

Nada disso lhes é inteirado de plena consciência, e talvez nunca ninguém lhes tenha sequer informado de modo adequado e completo sobre temas tão relevantes. O obscurantismo impede, modo efetivo, de se galgar profundidade e insciência ao tema de grande relevo social e econômico, por evidente.

E tudo tende a piorar, lamentavelmente. O evidente desconhecimento já seria ruim, se num mundo ideal, o juiz tivesse tempo para estudar e analisar disciplinas novas. Mas o que ocorre, em verdade, é que ele não tem esse tempo, nem a vontade necessária para romper a bolha do desconhecimento! E por quê? Por que no final das contas, é ele também vítima de um trabalho sufocante, precisando despachar 5, 10 ou 20 mil processos em tramitação sob sua responsabilidade, gerir equipe e dinheiro público, além de atuar em audiências e compromissos diversos. Excesso de trabalho, fadiga, falta de tempo e desconhecimento, acabam por relegar os cuidados desse conhecimento complexo e desafiador aos assessores, bacharéis ou advogados concursados, e um exército de estagiários nos primeiros anos de estudo e, portanto, não preparados, minimamente, para atuar em demandas com extremada complexidade.

Não é de surpreender a dificuldade de enfrentamento de temas tão simples, a priori.

Mas, não se cessam por aqui as dificuldades!

A temática acima enfrentada é frequentemente debatida em demandas executivas, nas quais, a despeito de tudo o que deveria representar, concedem-se as mais variadas formas de conforto e privilégios ao devedor, em absoluto detrimento dos credores.

Se quisermos ser realistas, é importante admitir que não há paridade de armas entre o devedor de má fé e o credor no atual sistema de execução cível do direito brasileiro. Nos encontramos, a olhos vistos, aquém da invejável efetividade da Justiça do Trabalho. E tudo começa porque ela é burocrática, lenta e cheia de recursos e expedientes protelatórios, constata-se. Com efeito, para o devedor, visivelmente acostumado à pressão, tornou-se o ambiente processual que menos teme; ao revés, para alguns, jocosamente, não se furtam em ameaçar abandonar mesas de negociação e mediação, sob o argumento de que “ou é desse jeito, ou me processa!”, como quem diz, “eu que devo, mas você não vai querer me enfrentar na justiça”, pois ela me é útil e favorável.

Para se ter uma ideia do mercado que essas patologias criaram, dados do CNJ apontam para somente 5% das execuções ajuizadas serem concluídas com alguma satisfação de crédito, e isso depois de vários anos de enfrentamento, o que importa dizer que 95% dos devedores acionados nunca foram forçados a pagar a dívida reconhecida judicialmente, o que escancara uma verdadeira aberração, idiossincrasia do próprio sistema jurídico nacional.

Em análise econômica, poderíamos chamar esse complexo conjunto de fatores de falha de governo, já que são estruturantes de uma patologia paradigmática do Direito, em que ele é útil e servil como ferramenta de um comportamento injurídico, de proteção do devedor de má fé. Um defeito do sistema que acaba estimulando falhas de mercado que, pasmem, precisam ser corrigidas com assimetrias informacionais, vilipendiando toda a lógica contratual que, em virtude de tais vícios, deixa forçosamente de ser pautada pelos princípios da eficiência, efetividade e da boa-fé objetiva.

Posso lhes dar um exemplo gritante: a proliferação do mercado de recuperações judiciais fraudulentas, que é o expediente em que o devedor, dolosa e conscientemente, passa longos meses e anos desviando patrimônio superavitário, blindando seus ganhos em locais impossíveis de serem identificados, até que soçobre a carcaça de um passivo de centenas de milhões em dívida, dos quais proporá pagar somente 10%. Faça o cálculo: você oculta 200 milhões, no mesmo tempo em que constitui 300 milhões em dívida. Ingressa com a recuperação judicial, alega que precisa do Estado para proteger os empregos e débitos fiscais, e então recebe o direito de não pagar ninguém por vários meses (stay period), para ao final do processo devolver apenas 30 milhões, em centenas de parcelas, atualizado com as menores taxas do mercado, pasmem!

Não é o melhor negócio do mundo? Alguém tem dúvida disso?

Mas há que se admitir, os credores também têm sua parte nessa cultura de proteção do devedor. Muitos desistem ao desacreditar no direito, entregando-se à máxima de Rui Barbosa, segundo o qual de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”

Por certo Rui Barbosa ficaria perplexo, ruborizado, atônito, em ver seu vaticínio realizado, se hoje visse o agigantamento do mercado jurídico de blindagem patrimonial sendo tratado com loas e honrarias dignas da nobreza, quando seu propósito mais usual é exatamente esconder, ocultar e blindar o patrimônio do Estado e de potenciais credores.      

Diante de tantas dificuldades, portanto, sobram razões para celebrar uma decisão que nada fez além do que simplesmente aplicar a escorreita e adequada norma jurídica para a obtenção da sempre esperada justiça, mas por vezes, não alcançada pelas razões acima expostas.

Ela sinaliza clara mudança de paradigmas.

Esta é uma vitória da coragem do enfrentamento a uma espécie de “tirania do devedor”, que se tornou possível pelo suporte, apoio e amparo de diretores e dirigentes do setor, que contra todos os desafios, mantêm-se firmes no enfrentamento de uma narrativa que a todos se afigura invencível, intransponível, inexpugnável, mas que ora se enfrenta de forma combativa.          

Me faz, inclusive, lembrar Churchill, quando discursou no Parlamento Inglês a famosa ode de sangue, suor e lágrimas, confrontando aqueles todos que antes mesmo de enfrentar a luta com a Alemanha de Hitler, preferiam assinar um acordo vexatório de rendição, momento no qual disse a sua nação: 

“Temos diante de nós um desafio dos mais graves. Temos diante de nós muitos, muitos e longos meses de luta e sofrimento. Vocês perguntam: qual é nosso plano de ação? Posso dizer: é travar a guerra pelo mar, pela terra e pelo ar, com todo nosso poder e com toda a força que Deus nos possa dar; travar a guerra contra uma monstruosa tirania jamais suplantada nos registros sombrios e lamentáveis do crime humano. Esse é o nosso plano de ação.”

Não mudaremos os paradigmas da cultura do devedor numa única demanda.        

Pelo contrário, ela ainda haverá de se abastecer nas máximas de ceticismo cultural com o futuro da nação, do tipo “o Brasil não é um país sério”, que, pasmem-se, foi dita por um diplomata brasileiro na Embaixada em solo francês, na década de 1960. E até mesmo na desconfiança geral com a integridade moral do brasileiro, elevada a certeza científica, tão bem reproduzida no cântico de louvor irônico do livro “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade.

O ceticismo e a desconfiança permanecem, mas não mais sozinhos, isolados, arfando-se vitoriosos. Agora haverão de compartilhar espaço com as narrativas de enfrentamento, cuja advocacia alvissareira, combativa e aguerrida, sedimentadas em decisões que, como as referidas acima, reproduzem o melhor que há no direito, sinalizando um norte de eficiência contratual e de segurança jurídica que a todos haverão de aproveitar.

Ricardo Ferraz
Consultor jurídico da ABRAFESC (Associação Brasileira de Factoring, Securitização e Empresas Simples de Crédito) e sócio-diretor da FZ | Advogados Associados.

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