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A indústria da recuperação judicial: Fraudes, abusos, desvios de finalidade

Recentes notícias econômicas destacam a recuperação judicial da Polishop, a crise da Coteminas com dívida de R$ 2 bilhões, e a recuperação do Madero. Esses casos mostram a importância da gestão financeira e o impacto da recuperação judicial nas empresas e credores.

22/8/2024

Por dever de ofício, estava acompanhando notícias econômicas quando me deparei com três delas mais recentes, isso sem esquecer o caso Americanas.

1 - Fora do Shark Tank e desconto de 90% a credores: A recuperação judicial da Polishop1

Documento do plano de reestruturação da rede fundada por João Apolinário, a que a Bloomberg Línea teve acesso, propõe ainda carência de 20 meses e prazo de pagamento de dez anos

(...) A varejista, fundada em 1995 e que no auge chegou a contar com 280 unidades, tem agora 48 lojas físicas e sofre ações de despejos movidas por administradoras de shopping centers. O grupo, presente no e-commerce e em televendas, tem atualmente 437 funcionários, segundo o plano.

2 - A crise da Coteminas: Da dívida com a Farallon Capital à venda da MMartan2

Bloomberg Línea – Com uma dívida superior a R$ 2 bilhões, o grupo têxtil Coteminas (CTNM4), do empresário Josué Gomes da Silva, Presidente da Fiesp, entrou em RJ - recuperação judicial na Justiça de Minas Gerais, segundo despacho publicado no último de 25 de julho, visto pela Bloomberg Línea.

3 - Madero amplia geração de caixa, paga dívida com bancos e avança em cartilha de IPO3

Bloomberg Línea – Não faz muito tempo, há dois anos, o Grupo Madero, fundado e controlado pelo chef Junior Durski, tinha uma das situações financeiras consideradas mais delicadas do varejo alimentar no país. Dívida na casa de R$ 1 bilhão, alavancagem próxima dos covenants (cláusulas financeiras com limite que, se descumpridos, causam o pagamento antecipado), queima de caixa e apenas R$ 40 milhões em reserva compunham o quadro.

Passados dois anos, o cenário mudou de forma significativa, e o Madero colhe os frutos de um trabalho de disciplina financeira, busca por ganhos de eficiência na operação, com novos processos, e reforço da estrutura de capital que incluiu renegociação e pré-pagamento da dívida com bancos, o que representou redução do seu custo e alongamento dos prazos. Além de volta do crescimento de forma sustentada.”

Essas notícias nos levam a discutir o instituto da recuperação judicial com maior cuidado, e como as empresas devem precaver-se diante dos riscos decorrentes dos processos de recuperação judicial, seja antes que aconteçam, seja durante ou depois desses processos.

Muitos empresários estão utilizando esse meio judicial para afastar os débitos gerados pela má gestão empresarial, causando sérios prejuízos aos vários fornecedores e trabalhadores, tudo agravado pela atuação dos fundos denominados de stress funds, que fomentam a indústria da recuperação judicial causando mais prejuízos aos credores.

Tal comportamento vem comprometendo esse mecanismo de recuperação de empresas e desvirtuando os seus propósitos.

A recuperação judicial, prevista pela lei 11.101/05, tem como objetivo principal permitir que empresas em dificuldades financeiras possam reestruturar-se e evitar a falência, preservando empregos e a atividade econômica.

Não obstante, a recuperação judicial, embora seja uma ferramenta essencial para a reestruturação de empresas em dificuldades, tem sido utilizada de maneira abusiva em alguns casos, causando prejuízos significativos aos credores, fornecedores e trabalhadores. A seguir, apresentamos alguns exemplos de como isso ocorre.

1. Desvio de Finalidade

Algumas empresas utilizam a recuperação judicial não como um meio de reestruturação genuína, mas como uma estratégia para evitar o pagamento de dívidas. Isso pode incluir a manipulação de informações financeiras para parecerem mais insolventes do que realmente são, com o objetivo de obter condições mais favoráveis nos planos de recuperação. 

2. Deságios excessivos

Os deságios, ou descontos aplicados sobre o valor das dívidas, são frequentemente abusivos. Em alguns casos, os planos de recuperação propõem deságios que chegam a 90%, o que significa que os credores recebem apenas 10% do valor original da dívida. Isso pode ser extremamente prejudicial para os credores, especialmente para pequenos fornecedores que dependem desses pagamentos para manter suas operações. 

3. Fraude e manipulação

Há casos em que a recuperação judicial é utilizada como meio para fraudar credores. Isso pode incluir a transferência de ativos para outras empresas controladas pelos mesmos proprietários antes de entrar com o pedido de recuperação, deixando a empresa em recuperação sem ativos significativos para pagar os credores. 

4. Participação de fundos de investimento

A participação de fundos de investimento na compra de créditos de empresas em recuperação judicial pode ser problemática. Esses fundos compram créditos com grandes deságios e, muitas vezes, pressionam por condições ainda mais favoráveis nos planos de recuperação, aumentando os prejuízos para os credores originais. 

5. Falta de fiscalização adequada

A fiscalização insuficiente por parte dos órgãos regulatórios e do Judiciário permite que esses abusos ocorram. A falta de uma análise rigorosa das condições financeiras da empresa e a ausência de penalidades severas para práticas fraudulentas contribuem para o uso inadequado da recuperação judicial. 

Abusos no uso da recuperação judicial podem, também, caracterizar a prática de crimes empresariais, além de questões éticas e morais, que devem ser analisadas.

Crimes Empresariais Potenciais

  1. Fraude contra credores (Art. 168 da lei de galências - lei 11.101/05): Se for comprovado que o empresário agiu de má-fé para prejudicar os credores, escondendo ativos ou manipulando informações para obter vantagens indevidas, ele pode ser enquadrado por fraude contra credores.
  2. Gestão temerária (Art. 64 da lei de falências - lei 11.101/05): Administradores que praticam atos de gestão temerária, prejudicando a empresa e seus credores, podem ser responsabilizados criminalmente. Gestão temerária inclui a tomada de decisões que coloca a empresa em risco desnecessário, sem consideração adequada aos impactos financeiros.
  3. Desvio de finalidade: Utilizar a recuperação judicial para finalidades que não sejam a reestruturação genuína da empresa pode ser visto como um desvio de finalidade, o que pode levar à anulação do processo e à responsabilização dos gestores.
  4. Crime de falsidade ideológica (Art. 299 do Código Penal): Se durante o processo de recuperação judicial forem apresentadas informações falsas ou omissas nos documentos e relatórios, isso pode configurar falsidade ideológica.
  5. Crime contra a ordem econômica: Práticas que visem manipular o mercado ou obter vantagens competitivas injustas podem ser enquadradas como crimes contra a ordem econômica, previstos na lei 12.529/11.

Questões éticas, morais e de sustentabilidade

  1. Responsabilidade social: A má utilização da recuperação judicial afeta não apenas os credores, mas também os trabalhadores e suas famílias, criando uma questão ética sobre a responsabilidade social dos empresários.
  2. Integridade e boa-fé: Empresas devem agir com integridade e boa-fé em todas as suas operações, especialmente em situações de dificuldade financeira. A manipulação do sistema judicial para obter vantagens injustas é uma violação clara desses princípios.
  3. Reputação e confiança no sistema: O abuso do mecanismo de recuperação judicial pode minar a confiança no sistema legal e econômico, afetando a reputação da empresa e do mercado como um todo. É uma questão de ética empresarial manter a integridade do processo.

Embora muitas das práticas abusivas na recuperação judicial possam ser enquadradas como questões éticas, morais e de sustentabilidade, há situações em que essas práticas também configuram, como acima mencionamos, crimes empresariais. A distinção entre o que é ilegal e o que é imoral pode depender das circunstâncias específicas e das intenções dos envolvidos. Portanto, é essencial que haja uma fiscalização rigorosa e uma aplicação justa da lei para coibir tal prática e garantir que a recuperação judicial cumpra seu verdadeiro propósito de reestruturação e salvamento de empresas viáveis. 

Uma decisão do TJ/SP entendeu que, em caso de utilização do processo de recuperação judicial como meio de fraudar credores, caberia a inclusão dos sócios como devedores solidários.

Essa polêmica, analisou a questão sob a perspectiva cível. Cabe indagar, entretanto, as consequências da conduta no campo penal: a utilização do processo de recuperação judicial como meio para fraudar credores configuraria crime falimentar? 

E a discussão ganha relevância quando analisamos os dados existentes sobre o número de recuperações judiciais que estão ocorrendo no país, coletados pela Serasa Experian, que cresceram quase 70% em 2023.

As recuperações judiciais registraram alta de 68,7% em 2023 na comparação com 2022, conforme o Indicador de Falência e Recuperação Judicial da Serasa Experian. Ao total, foram 1.405 pedidos ao longo do ano, o 4º índice mais alto registrado desde o início da série histórica, em 2005, e o maior valor desde 2020. 

"Em 2023, testemunhamos um surpreendente aumento no índice de recuperações judiciais no Brasil, ultrapassando o patamar de 1.400 pedidos, assim como os anos de 2017 (1.420) e 2018 (1.408). O ano passado foi marcado por um recorde de inadimplência das empresas, influenciando significativamente o panorama da recuperação judicial. Embora os sinais de melhoria tenham começado a surgir, como a queda da inflação e das taxas de juros, a reação no cenário de recuperação judicial mostra-se mais lenta”, comenta o economista da Serasa Experian, Luiz Rabi.

Setor de “serviços” lidera as solicitações no Brasil

O setor de “serviços” foi o responsável pela maior parte dos requerimentos de recuperação judicial em 2023, com 651 pedidos. “Comércio” apareceu em segundo lugar, com 379 solicitações. 

Já em relação aos portes, as MPEs - micro e pequenas empresas foram as que mais demandaram por recuperação judicial, com 939 pedidos. Em seguida, estavam os “médios negócios” (331) e os “grandes” (135).

Solicitações de falências fecha o ano com alta de 13,5%

Os pedidos de falências também tiveram alta em 2023: foram 983 pedidos ante 866 registrados em 2022, um aumento de 13,5%. Foram as MPEs que puxaram a alta (546), seguidas pelas “médias” (231) e pelas grandes companhias (206). O setor que mais demandou pelos pedidos foi o de “Serviços” (373), seguido por “Indústria” (311), “Comércio” (292) e “Primário” (7).

Análise mensal: 102 pedidos de RJs em dezembro de 2023

Em dezembro de 2023, foram registradas 102 requisições de recuperações judiciais, uma alta de 32,5% em relação ao mesmo mês de 2022. Na variação mensal, a indicação foi de queda de 41,7%.

Já no recorte dos pedidos de falências, o total foi de 48 no mês de referência, com variação anual de -7,7% e mensal de 23,1%. 

A saga dos credores em receber seus créditos nos processos de recuperação judicial é uma jornada complexa e frequentemente frustrante. A seguir, apresentamos uma análise detalhada sobre o que os credores enfrentam nesse processo.

1. Início do processo de recuperação judicial

Notificação e habilitação dos créditos

Verificação dos créditos

2. Negociação do plano de recuperação

3. Propostas de deságio e prazo

4. Assembleia de credores

5. Implementação do plano de recuperação

Monitoramento do cumprimento

6. Participação de fundos de investimento

Atuação na compra dos créditos mediante deságios previamente negociados com os credores.

Compra de créditos

7. Conclusão do processo

Recuperação ou falência

8. Desafios e impactos

Burocracia e morosidade

9. Impacto financeiro

Conclusão

A saga dos credores em processos de recuperação judicial é marcada por desafios legais, financeiros e burocráticos. O sistema, embora criado para permitir a reestruturação de empresas viáveis, muitas vezes acaba sendo mais benéfico para a empresa devedora do que para os credores, especialmente os menores. Melhorias na legislação e na fiscalização do processo são essenciais para assegurar que os direitos dos credores sejam mais bem protegidos e que a recuperação judicial cumpra seu verdadeiro propósito.

Ronaldo Corrêa Martins
Fundador e CEO do Escritório RONALDO MARTINS & Advogados, fundado em 22/03/1990. Formado em: Ciências Econômicas, Ciências Contábeis e Direito.

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