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Arbitragem na Disney: Letras miúdas, grandes problemas

Mais um caso nos EUA que questiona as cláusulas de arbitragem em contratos de adesão, bem como a extensão a terceiros que não são signatários dos contratos originais.

21/8/2024

Diariamente, clicamos cegamente em “concordo” quando nos inscrevemos em um serviço, mas o que está nessas letras miúdas pode causar danos inimagináveis. A última semana foi movimentada com a notícia de que a indenização pela morte de uma mulher em um dos parques da Disney não poderia ser processada na justiça estatal, mas sim por um tribunal arbitral, por força de cláusula de arbitragem inserta nos termos de uso da Disney Plus.

Jeffrey Piccolo, como representante pessoal do espólio de sua falecida esposa, Kanokporn Tangsuan, ajuizou uma ação contra a Walt Disney Parks and Resorts U.S., Inc. e a Great Irish Pubs Florida, Inc., operadora do restaurante Raglan Road Irish Pub and Restaurant, localizado em Disney Springs. Piccolo alega que sua esposa sofreu uma reação alérgica fatal após consumir alimentos no restaurante, apesar de terem sido feitas garantias sobre a ausência de alérgenos. O caso foi apresentado à 9ª Vara do Circuito Judicial da Flórida, sob o número de processo 2024-CA-001616-O.

Em resposta à ação, a Walt Disney apresentou uma Motion to Compel Arbitration and Stay Case, na qual argumenta que Piccolo estaria obrigado a submeter todas as suas reivindicações à arbitragem, conforme disposto no Federal Arbitration Act. A Disney fundamenta sua argumentação no fato de que Piccolo teria aceitado os termos de uso que incluem cláusula de arbitragem compulsória tanto ao criar uma conta no serviço de streaming Disney Plus em 2019, quanto ao comprar ingressos para o parque temático em 2023. A cláusula de arbitragem contida nesses contratos, segundo a Disney, abrange “todas as disputas” entre o usuário e a empresa, incluindo aquelas envolvendo “afiliadas” da Walt Disney Company, como é o caso da Walt Disney Parks and Resorts.

A Disney argumenta que a linguagem da cláusula compromissória é ampla o suficiente para cobrir as reivindicações de Piccolo:

You and Disney DTC agree to arbitrate, as provided below, all disputes between you (including any related disputes involving The Walt Disney Company or its affiliates), that are not resolved informally, except disputes relating to the ownership or enforcement of intellectual property rights. “Dispute” includes any dispute, action, or other controversy, whether based on past, present, or future events, between you and us concerning the Disney Services or this Agreement, whether in contract, tort, warranty, statute, regulation, or other legal or equitable basis.

A primeira linha de defesa da Disney é que os acordos firmados por Piccolo, ao clicar na opção “concordar e continuar” durante o processo de criação da conta no Disney Plus e ao adquirir ingressos para o parque, constituem contratos de adesão conhecidos como clickwrap agreements. Esses contratos, conforme a jurisprudência da Flórida, são amplamente reconhecidos como válidos e exequíveis. Decisões judiciais, como Temple v. Best Rate Holdings LLC e Massage Envy Franchising, LLC v. Doe, sustentam que os contratos de clickwrap são legalmente vinculantes, desde que o usuário manifeste assentimento de forma clara e inequívoca.

Ainda, a Disney sustenta que as cláusulas de arbitragem em questão delegam ao árbitro a autoridade exclusiva para resolver quaisquer disputas relacionadas à interpretação, aplicabilidade ou exequibilidade do contrato. Argumento respaldado por precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos, notadamente as decisões em Rent-A-Center, West, Inc. v. Jackson e Henry Schein, Inc. v. Archer & White Sales, Inc., que reforçam a obrigatoriedade de cumprimento das cláusulas que delegam ao árbitro a decisão sobre questões de arbitrabilidade.

A Disney também afirma que não renunciou ao direito de exigir arbitragem, pois sua participação no litígio foi mínima e limitada à apresentação de resposta à petição inicial e solicitação de documentos. A empresa invoca uma anti-waiver clause presente nos termos de uso, a qual estabelece que a falha em exercer qualquer direito não constitui renúncia a esse direito. A jurisprudência da Flórida, conforme demonstrado em casos como Nat’l Home Communities, LLC v. Friends of Sunshine Key, Inc., apoia a validade e a exequibilidade de tais cláusulas.

Além disso, como a legislação federal dos Estados Unidos favorece a arbitragem, os argumentos de renúncia exigem “um pesado ônus da prova”. De acordo com o Federal Arbitration Act, quaisquer dúvidas sobre o escopo de questões arbitráveis ??devem ser resolvidas em favor da arbitragem, seja o problema em questão a construção da linguagem do contrato em si ou uma alegação de renúncia, atraso ou uma defesa semelhante à arbitrabilidade.

Por outro lado, na Plaintiff’s Response in Opposition to Defendant’s Motion to Compel Arbitration, a defesa de Piccolo contesta a aplicabilidade das cláusulas de arbitragem. Primeiro, argumenta que o espólio da falecida esposa, que é o verdadeiro demandante na ação, não era parte signatária dos contratos que contêm as cláusulas de arbitragem.

O tema da extensão da cláusula compromissória a terceiros não signatários do contrato original suscita longas discussões. E não há nem uma posição comum entre diferentes jurisdições que estabeleça um regime para a extensão da convenção de arbitragem a partes não signatárias. No entanto, “a questão não é mais se uma convenção de arbitragem deve ser estendida, mas sim, em que circunstâncias ela pode ser estendida”1.

Nesse sentido, a defesa sustenta que é irrazoável sugerir que o acordo firmado por Piccolo ao criar uma conta no Disney Plus se estenderia automaticamente a qualquer disputa futura, especialmente em uma situação tão grave como a que resultou na morte de sua esposa. Além disso, a defesa alega que a Disney pode ter renunciado tacitamente ao direito de exigir arbitragem ao participar do processo judicial, ainda que de forma limitada, já que “entrou no processo”.

O advogado de Piccolo, Brian Denney, chamou o argumento da Disney de “absurdo” e disse que a noção de que se inscrever para um teste gratuito do Disney Plus impediria o direito de um cliente a um julgamento com júri “com qualquer afiliada ou subsidiária da Disney, é tão escandalosamente irracional e injusto que choca a consciência judicial”2.

Contudo, apesar da opinião pública manifestada na última semana negativamente à posição de levar o caso para a arbitragem, sobretudo pelo resultado morte, “a Disney poderia muito bem ter um argumento viável aqui”, disse a professora de direito da Universidade de Buffalo, Christine Bartholomew3. A Suprema Corte, repetidas vezes, tratou essas disposições de arbitragem como obrigatórias; não importa se está em letras finas e minúsculas em termos de condições.

Além disso, o argumento de extensão da cláusula compromissória não é sem precedentes. Em 2020, o 4° Tribunal de Apelações do Circuito dos EUA, em Mey v. DirecTV, LLC, entendeu que o contrato de um cliente com a AT&T foi assinado muito antes de a AT&T adquirir a DirecTV, no entanto, obrigou o autor a arbitrar uma reclamação não relacionada contra a empresa de satélite.

Por outro lado, o 9º Circuito chegou à conclusão oposta um mês depois, em Revitch v. DirecTV, LLC. O tribunal disse que seria “absurdo” fazer com que os clientes arbitrassem todas as disputas com qualquer entidade corporativa que venha a ser adquirida pela AT&T anos ou mesmo décadas no futuro.

Com efeito, o desenrolar do caso dependerá de como o julgador interpretará a cláusula de arbitragem e a identificação do nexo entre a reivindicação de Piccolo e a cláusula compromissória. O professor de arbitragem Imre Stephen Szalai, da Loyola University New Orleans College of Law, comentou que, no caso da Disney, um juiz pode considerar que “o objetivo dos Termos de uso da Disney era reger os direitos de propriedade intelectual online, mas não uma visita ao restaurante4.

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1 “The legal theories and decisions described show that there is currently no international regulation – under the UNCITRAL Model Law on Commercial Arbitration or the New York Convention – nor a common position among different jurisdictions that sets a regime for the extension of the arbitration agreement to non-signatory parties. It has however become clear that the question is no longer if an arbitration agreement should be extended but rather, under which circumstances it can be extended. The discrepancy in solutions and methods used by national courts should be known to the parties and practitioners, for instance when selecting the place of arbitration” (SESIN-TABARELLI, Andrea. Extension of the Arbitration Agreement to Non-Signatories. In: FIGUERES, Dyalá; FOURET, Julien et al. ICC Dispute Resolution Bulletin, Paris, n. 4, 2017).

2 VALINSKY, Jordan. Disney wants wrongful death suit thrown out because widower bought an Epcot ticket and had Disney. CNN, 14 ago. 2024. Disponível em: https://www.cnn.com/2024/08/14/business/disney-plus-wrongful-death-lawsuit/index.html. Acesso em: 20 ago. 2024.

3 GUYNN, Jessica. Disney wrongful death lawsuit over allergy highlights danger of fine print. USA Today, 15 ago. 2024. Disponível em: https://www.usatoday.com/story/money/2024/08/15/disney-wrongful-death-lawsuit-arbitration/74805949007/. Acesso em: 20 ago. 2024.

4 GREENE, Jenna. Disney’s bid to arbitrate husband’s wrongful death suit has a chance. Reuters, 16 ago. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/legal/litigation/column-disneys-bid-arbitrate-husbands-wrongful-death-suit-has-chance-2024-08-16/. Acesso em: 20 ago. 2024.

Davi Ferreira Avelino Santana
Graduando em Direito na Universidade Católica do Salvador com intercâmbio na Universidade do Porto e extensão na Pontificia Università Lateranense di Roma

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